Comentário sobre o depoimento de Dirceu a Sergio Moro. Por Miguel do Rosário
“Não sou um homem, sou dinamite”, diz Nietzsche, em Ecce Homo. Me parece uma citação apropriada para falar de José Dirceu, que se tornou uma espécie de judeu errante da política brasileira, indo de prisão em prisão, de acusação em acusação, alvo de uma campanha diuturna na imprensa há mais de dez anos.
O seu depoimento a Sergio Moro é um tanto chocante, por sua banalidade.
O juiz não tem acusações a fazer contra Dirceu. Então ele se fixa, por horas a fio, em perguntas mesquinhas, perguntas de contador, pedindo detalhes triviais sobre o patrimônio do ex-ministro.
Ele fornece os detalhes: tem uma casa em Vinhedo, onde morava, adquirida antes de entrar no governo; uma outra, no mesmo condomínio; um terreno; uma casa comprada para sua mãe em Passa Quatro.
Nenhum dos imóveis são de alto valor.
O tal “condomínio de luxo” em Vinhedo, explica Dirceu, só começou a ser mencionado assim pela imprensa depois que ele voltou a residir por lá.
E é só.
Ecce Homo.
Em suas contas bancárias, não se encontrou praticamente nada.
Não se encontrou contas de Dirceu no exterior – e se contas de Eduardo Cunha foram encontradas tão rapidamente, imagine o esforço que os procuradores não devem ter feito para acharem uma conta de Dirceu lá fora.
Eis o homem apresentado como a encarnação maior do mal em nosso país.
O satanás da corrupção!
O Globo, mestre na arte da mentira e da manipulação, pega uma frase de Dirceu durante o depoimento, fora de contexto, e publica no título:
“Dirceu: R$ 120 mil por mês era irrisório.”
A frase fazia parte da explicação de Dirceu acerca dos pagamentos por sua consultoria. Ele cobrou R$ 120 mil por mês à Engevix para abrir o mercado no Peru.
É o custo empresarial, que inclui as despesas.
É sempre irônico imaginar um punhado de coxinhas lendo essa notícia num jornal cujo dono é a família mais rica do país, e que ganha dinheiro não com consultorias internacionais a grandes empresas, não abrindo mercados para empresas brasileiras no exterior, mas com aplicações em fundos abutres que apostam contra a economia nacional.
Sergio Moro pede explicações igualmente banais sobre a consultoria. Diversas grandes empresas já declararam, nos autos, explica o réu, que os seus serviços como consultor foram prestados corretamente, tanto que essas companhias conseguiram acessar mercados no exterior que antes não acessavam.
Moro não se satisfaz. Quer fazer o réu cair numa pegadinha: você não prestava contas? Não fazia reuniões com os diretores?
“Eu prestava consultorias para mais de 60 empresas”, explica Dirceu.
Podemos quase ouvir os pensamentos do juiz, porque ele já o expressou em outras ocasiões: é estranho isso, é estranho aquilo.
Moro costuma condenar as pessoas por achar “estranho” isso ou aquilo.
O espectador se pergunta: por acaso Moro entende alguma coisa de consultoria internacional?
Após ouvir as explicações de Dirceu, o espectador entende o que ele fazia.
O juiz, não.
Aliás, no próprio depoimento, Dirceu, animal político nato, sem querer revela porque as empresas o contratavam: ele é um profundo estudioso da política no Brasil e no mundo, mesmo na prisão.
Ele comenta, como que num conversa sobre política com o espectador do vídeo, sobre a exigência do Podemos, a nova esquerda espanhola, por tantos ministérios.
Dirceu viajava para os países com os quais tinha mais relações, estudava seus mercados, sua política, sua economia, investigava os procedimentos necessários para uma empresa ingressar nele, e cobrava por isso.
O mais chocante de tudo, porém, é que pelo jeito não há – de novo – nenhuma prova contra ele.
Ele argumenta com o juiz sobre a razoabilidade de sua prisão: eu já estava em prisão domiciliar, diz, abri meu sigilo telefônico. Não vou obstruir a justiça. Por que, então, não responder o processo em liberdade?
Por que prender alguém que já está preso?
A explicação sobre Renato Duque poderia demolir, se houvesse o mínimo de diversidade na grande imprensa brasileira, a lenda sobre a “indicação de Dirceu”.
O ex-ministro fala o óbvio: a indicação para as diretorias estatais são negociações com todos os partidos, e inclusive com a equipe de transição, ligada ao governo anterior.
Ninguém pode impor os nomes que deseja. A coalização filtra as indicações e chegam-se a um ou dois nomes de consenso. O PSDB, por exemplo, diz Dirceu, enquanto parte da equipe de transição, tentou emplacar Dimas Toledo, homem forte da Furnas, numa diretoria importante da Petrobrás.
A citação de Dimas Toledo, por Dirceu, é uma provocação, uma saudável e oportuna malícia, como que a lembrar a Sergio Moro: e aí, juiz, não vai investigar a delação de Yousseff, de que Aécio recebia quase meio milhão de reais por mês, por meio de uma empresa ligada a Furnas?
Sim, porque Dimas Toledo era um dos operadores das propinas tucanas em Furnas, em especial para o PSDB de Aécio Neves. Ele é um dos homens por trás da famigerada Lista de Furnas, que a mídia conseguiu abafar. Um dos presos ligados ao esquema, mesmo querendo delatar, foi mantido incomunicável. E a imprensa mineira, como se sabe, é uma das mais censuradas e corruptas do país. Foi mantida sob rígida mordaça, por causa do acordo entre proprietários de jornal e o governo Aécio.
Enfim, voltando a Dirceu, vemos um homem abatido, mas de espírito firme.
Ao final do depoimento, ele encontra tempo para rechaçar qualquer tentativa, por parte da procuradoria, de usar o processo para pedir a cassação do registro partidário do PT ou incriminar o ex-presidente Lula.
Juiz observa, hipócrita: “mas isso não tem a ver com o processo”…
Não importa, rebate Dirceu, eu quero falar.
Antes de morrer pela segunda vez, diante do mesmo juiz que ajudou a escrever sua primeira condenação, Dirceu dá seu recado aos acusadores: jamais entrarei no jogo sujo de vocês! Jamais trairei minhas ideias e meu partido!
A história sobre as “reformas” na casa de Dirceu, bancadas pelo homem da Engevix que pagava pelos serviços dele, revela sobretudo a contradição das acusações contra o ex-ministro.
Ora, se ele era um homem tão rico, um corrupto tão bem sucedido, porque ele aceitaria que alguém pagasse uma reforma em seu imóvel?
Que corrupto de merda, que não tem recursos para bancar uma mísera reforma em sua casa!
Uma reforma meia boca, aliás. Não uma reforma suntuosa num palácio.
Dirceu era um homem privado, há muitos anos fora do governo, mas que lutava para ganhar dinheiro e, com isso, sobreviver politicamente.
Havia uma necessidade financeira real para Dirceu, urgente, enorme. Ele não estava livre. Enquanto prestava consultoria, ele sabia que a onda se avolumava, e que, em algum momento, iria se espatifar contra ele. O processo da Ação Penal 470 corria, em tenebroso sigilo.
Dirceu precisava pagar honorários altíssimos para seus advogados e construir sua defesa política, através de seu blog.
Ele precisava lutar, praticamente sozinho, contra uma máquina gigantesca, uma máquina que não escondia a intenção de fazer de tudo para condená-lo, mesmo sem provas, como aconteceu.
Na verdade, a impressão que eu tenho, quando li a acusação do delegado que motivou a prisão de Dirceu, é que sua nova prisão representou uma vingança.
Uma vingança contra o fato dele não ter se rendido, de ter, até o fim, lutado para provar por sua inocência na Ação Penal 470.
Os conspiradores do Estado, na Ação Penal 470, jamais perdoaram Dirceu por ele não ter baixado a cabeça, por ter conseguido manter, em sua defesa, uma ativa e numerosa militância, que inclusive se mobilizou para pagar a multa de 1 milhão de reais imposta pelo Judiciário.
Como poderiam perdoar essa afronta?
José Dirceu tem sido mantido preso incomunicável. Não pode falar com a imprensa. Outro absurdo bem típico da nossa era.
Quando assistimos a documentários e filmes americanos, vemos que psicopatas, assassinos em série, criminosos de toda espécie, tem direito a falar com a imprensa, a contar sua versão.
Quantos filmes não vimos em que jornalistas de verdade, não esses chapa-branca desprezíveis da nossa imprensa, sempre em favor da acusação, sempre em favor do Estado, em que esses jornalistas de verdade entrevistam os réus, ouvem sua versão, dispõem-se a acreditar neles e, no fim, conseguem mudar uma sentença de morte!
Truman Capote escreveu sua obra-prima A Sangue Frio, com base nos depoimentos dados por um assassino.
Aqui no Brasil vivemos de fato uma espécie de ditadura judiciária, com censura e tudo.
Apenas conteúdos e depoimentos contra os réus são vazados.
Qualquer movimentação dos réus, qualquer tentativa de se defenderem dessa publicidade opressiva do qual são vítimas (independente inclusive de serem culpados), qualquer esforço que fazem para garantirem sua liberdade, ou apenas sua dignidade, são imediatamente criminalizados pelo juiz, procuradores e mídia.
Apenas a acusação tem voz. Apenas a acusação pode ter voz.
Tornamo-nos um país dominado por procuradores de província.
O juiz Sergio Moro é um aliado da procuradoria, não um magistrado isento, não é um representante autêntico de uma justiça que deveria pesar sempre os dois lados, e nunca pender para nenhum, e se preocupar sempre, antes de tudo, em não ferir desnecessariamente a liberdade de nenhum cidadão brasileiro.
Procuradores e juiz dão entrevistas em profusão. Discursam em templos religiosos. Participam de regabofes patrocinados pela grande mídia ou por medalhões da oposição.
Os réus, enquanto isso, não podem falar nada. São apenas massacrados, dia após dia, até o ponto em que nenhum juiz terá coragem de lhes dar um mísero habeas corpus, com receio de que isso resulte em represálias contra si na opinião pública.
A troco de que correr esse risco?
Vale a pena transcrever por inteiro o aforisma de Nietzsche que termina com a frase citada no início do post.
É um aforisma que tem muito a ver com o que se tornou Dirceu: um símbolo invertido, demoníaco, do que o homem comum, o indignado leitor de jornais, entende como “moral”.
Dirceu é a antítese do bom burguês nietzschiano.
É um homem culto, forte, que poderia ter ficado rico sem grandes esforços.
Dirceu, no entanto, em algum momento de sua vida, fez uma escolha trágica: decidiu lutar contra a ditadura, não apenas contra a ditadura do regime militar, mas contra essa ditadura que vige até hoje, essa violência constante do Estado contra seus próprios cidadãos, esse egoísmo sem controle, esse ódio social entranhado profundamente no espírito das classes bem nascidas, dos cidadãos “de bem”.
Esse egoísmo quase assassino, tão bem representado nas marchas coxinhas que vimos em 2015, e sintetizado maravilhosamente naquele cartaz empunhado por uma pacata senhora.
“Por que não mataram todos em 64?”
Bem que tentaram minha senhora. Bem que tentaram matar Dirceu. Não deu naquele momento. Mas hoje conseguiram uma coisa ainda mais efetiva: matar-lhe em vida, destruir-lhe a reputação.
É muito melhor assim, senhora. Muito mais inteligente.
Dirceu também é, ao mesmo tempo, um representante dessa furiosa vontade de realizar, de superar obstáculos, que caracteriza o homem político, em todos os tempos, sem o qual não haveria jamais progresso, jamais república, sufrágio universal, avanços sociais, revoluções.
Um homem, que fique bem claro; não um santo.
Não, santo jamais! Antes um demônio!
O aforisma de Nietzsche:
“Eu conheço meu destino. Um dia meu nome será associado à memória de algo tremendo – uma crise sem igual na terra, a mais profunda colisão da consciência, uma decisão que foi tomada contra tudo que se acreditou, pediu, venerou. Não sou um homem, sou dinamite”.
Ecce Homo. Dirceu. Símbolo de tudo que há de bom e ruim, de forte e fraco, na política.
Um homem que fundou um partido, que fez esse partido crescer e, contra tudo e contra todos, ganhar o poder.
Um homem que destruiu um partido, que se tornou a principal ferida desse partido.
Um homem que venceu, que conquistou o mundo.
Um homem que viu esse mundo fugir-lhe das mãos, e voltar-se, furioso, contra si mesmo, e tirar-lhe tudo: reputação, família, patrimônio, liberdade.
Glória, poder, vergonha, humilhação.
Um homem, enfim.
Ecce Homo.
Artigo publicado originalmente em http://www.ocafezinho.com/2016/02/03/comentario-sobre-o-depoimento-de-dirceu-a-sergio-moro/