Comentários a uma sentença anunciada e o fim da utopia por Fábio de Oliveira Ribeiro
É difícil reportar um evento como o que ocorreu na PUC. A atividade intelectual exige reflexão. Antes de começar é preciso encontrar uma chave que permita abrir e expandir o que foi visto e ouvido. Só consegui fazer isto ao, meditando sobre as palestras que foram proferidas, recordar a obra de Russel Jacoby.
“Numa época de decomposição ideológica, os homens de esquerda só se arriscam a propor as mais modestas metas e idéias. ‘Muitos intelectuais politicamente engajados’, escreve o sociólogo Jeffrey Alexander, adotaram idéias sobre o mercado como algo racional ou libertador. ‘Estamos assistindo à morte de uma importante alternativa, não apenas no pensamento social como na própria sociedade.’” (O fim da utopia, Russel Jacoby, editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001, p. 35)
A morte política de Lula é um show diariamente representado pelos meios de comunicação. Dele também participaram as autoridades encarregadas de conduzir o processo da Lava Jato. Após a prolação da sentença e sob o comando de Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele Ricobon e João Ricardo Dornelles, foi publicado o livro “Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula”, Bauru, 2017, vários editores, contendo textos de 100 juristas.
Fui ao evento de lançamento do livro na PUC, em 14 de agosto de 2017. Duas das organizadoras estavam presentes. Vários autores também participaram do evento, que também foi prestigiado por lideranças políticas como o ex-prefeito Fernando Haddad e o vereador Eduardo Suplicy. O espetáculo da resistência ao golpe, à condenação de Lula e ao Estado de Exceção mimetizou o espetáculo da morte política do ex-presidente petista.
O “…consenso liberal conseguiu estabelecer uma equivalência global entre o utopismo e o totalitarismo, posicionando ambos contra o pluralismo liberal. Condenar o totalitarismo significa condenar o utopismo.” (O fim da utopia, Russel Jacoby, editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001, p. 66). Condenar Lula significou e significa expandir o caráter espetacular do processo, para que o utopismo que ele representa seja submetido ao totalitarismo das imagens que permitem retirar do Direito Penal sua substância jurídica, histórica e humanitária.
Num Estado de Exceção, os advogados e juristas não são necessariamente os portadores da utopia. Isto ficou evidente quando o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, vulgarmente conhecido como Kakay, disse que é preciso lutar contra o que está ocorrendo dentro da legalidade. Ele disse isto pouco depois do professor Pedro Estevam Serrano ter feito uma longa e didática exposição sobre como a própria legalidade foi progressivamente perdendo seu conteúdo e eficácia antes, durante e depois do golpe de 2016. Ao lado de Kakay estava o venerável professor Celso Antônio Bandeira de Mello, que pouco antes havia pedido aos juristas que fossem mais enérgicos ao denunciar a situação em que nos encontramos porque os juízes decidiram rasgar a Constituição Federal de 1988.
Durante sua palestra, Pedro Estevam disse que o Estado de Exceção se tornou uma realidade porque corresponde aos anseios das “novas força produtivas”. Elas não precisam mais de um exército industrial de reserva e, portanto, preferem condenar a mais abjeta exclusão social parcelas significativas da população. Para alcançar seu objetivo, as novas forças produtivas recorrem ao Poder Judiciário e ao Processo Penal para anular a resistência e as lideranças que ameacem a perpetuação do novo modelo de exploração capitalista. Estevam, contudo, não percebeu a contradição em que incorreu.
As “novas forças produtivas” não estão interessadas em produzir. Elas são “forças improdutivas”, podem perfeitamente crescer durante os períodos de redução da produção. Após o golpe de 2016 a economia real brasileira foi deliberadamente devastada para que os Bancos pudessem abocanhar lucros crescentes.
O “…poder destituído de uma visão ou de um projeto pouco significa; passa a ser apenas uma exigência de que determinadas pessoas exerçam mais autoridade e controle.” (O fim da utopia, Russel Jacoby, editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001, p. 89). Apesar de seus méritos evidentes (inclusão social e distribuição de renda) Lula nunca ameaçou os interesses dos banqueiros, de fato eles também lucraram muito durante o período desenvolvimentista. Sendo assim, o Estado de Exceção se impõe não como uma ruptura do modelo econômico, mas como uma continuidade e aprofundamento do mesmo. De fato, Lula pode ter sido vítima justamente porque deixou de ser utópico no exato momento em que imaginou que a inclusão econômica equivaleria à inclusão política da população.
Celso Antônio Bandeira de Mello arrancou aplausos da platéia ao criticar ferozmente a imprensa. Acostumado a criticá-la eu mesmo aplaudi, muito embora seja obrigado a reconhecer aqui a ineficácia da antítese segue sempre sem produzir uma síntese. “Há quase trinta anos, o poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger queixou-se de um ‘arcaísmo cultural’ da esquerda. Acusava a nova esquerda de analisar os meios de comunicação através de um conceito único, a manipulação, que via as massas como massa de manobra. Para Enzensberger, a tese da manipulação não só era insatisfatória como significava que os jovens militantes políticos rejeitavam qualquer contato com a televisão, preferindo modos de comunicação pré-industriais. Ironicamente, a esquerda, que se apresenta como encarnação do futuro olhava para traz. Os jovens esquerdistas desprezavam os meios de comunicação de massa.” (O fim da utopia, Russel Jacoby, editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001, p. 100/101).
O evento foi televisionado pela TV PUC. Portanto, os jovens esquerdistas não mais desprezam os meios de comunicação. Todavia, não sei dizer se eles perceberam a ironia. Afinal, o evento se submeteu ao cânone da encenação construído e utilizado pela mídia. As autoridades foram anunciadas e entrevistadas pela TV PUC. Os juristas presentes foram fotografados na frente do palco e fizeram suas preleções recorrendo ao discurso de autoridade.
A platéia, sempre bem comportada, somente aplaudiu nos momentos oportunos.
A lógica da sociedade do espetáculo não foi rompida em nenhum momento. Ao registrar minha presença disse ao rapaz que fazia as anotações meu nome e que eu era o “único terrorista perseguido pela PF presente” (vide http://www.viomundo.com.br/denuncias/por-causa-de-um-tweet-pf-gasta-rios-de-dinheiro-publico-e-faz-funcao-do-velho-dops.html). O ex-presidente da PUC que organizou o evento e anunciou as pessoas notáveis se referiu a mim como “professor”. Muito embora alguns palestrantes tenham se referido à natureza racista do novo regime político e do Judiciário – cujos membros são predominantemente homens brancos bem nascidos -, nenhum deles foi capaz de se lembrar de uma vítima importante do Estado de Exceção: o negro pobre Rafael Braga condenado por porte de Pinho Sol.
Bandeira de Mello exigiu mais veemência na defesa do Estado de Direito. José Eduardo Cardozo, ex-ministro de Dilma, lembrou que quando era estudante tinha participado do primeiro ciclo de debates sobre a constituição de 1988 naquela mesma sala, que estava agora reformada, bem equipada e mobiliada com poltronas confortáveis. Ambos defenderam a utopia da democracia, que nunca chegou a ser totalmente realizada porque há pessoas morando nas ruas como ressaltou um dos outros palestrantes.
“O destino de toda visão utópica está vinculado ao destino dos intelectuais, pois se em algum momento a utopia pode sentir-se em casa, é entre os pensadores independentes nos cafés por eles freqüentados. Na medida em que estes já não existem a visão utópica esmorece. É esta, com certeza, uma questão carregada de mitificações e perguntas. Será que os intelectuais realmente se reuniam nos cafés? Será que esses lugares e meios seriam como vitrine de suas idéias e textos? Haveria uma afinidade entre utopia e os intelectuais independentes? E se os intelectuais se transferiram dos antigos antros para as salas de conferências e seminários, o que terão ganhado ou perdido com isto?” (O fim da utopia, Russel Jacoby, editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001, p. 139/140)
O auditório da PUC estava cheio de intelectuais, advogados, juristas, professores, lideranças políticas e estudantes, mas não havia nenhum morador de rua presente.
Não teria sido mais adequado realizar aquele evento na Praça da Sé, onde os moradores de rua vagueiam durante o dia? Porque alguns deles não foram levados à PUC para serem, assim, incluídos entre os ouvintes daqueles que criticam e atacam de maneira eloqüente a exclusão social. Condenado Lula se joga nos braços do povo enquanto os defensores dele são incapazes de perceber o que já perderam ao defendê-lo de maneira bem comportada num espaço universitário que não se democratiza ou não quer se democratizar.
Lançado no Rio de Janeiro, “Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula” foi um sucesso de vendas. Centenas de cópias do livro também foram vendidas na PUC. Diante das muralhas de Roma depois de ter derrotado os romanos nas batalhas de Ticino (218 aC), Trasimeno (217 aC) e Canas (216 aC), Aníbal tenta fazer a paz e sua proposta é rejeitada. Ao invés de atacar Roma, ele prefere dar folga ás tropas e um de seus tenentes diz que ele sabe vencer, mas mão sabe tirar proveito da vitória.
A derrota de Lula por Sérgio Moro (juiz que se comportou como se fosse parte do processo inclusive quando da prolação da sentença, como bem salientou uma das palestrantes) proporcionou a vitória editorial do livro escrito pelos 100 juristas. Todavia, devemos frisar que “…não existe qualquer vínculo entre o sucesso institucional e a contribuição intelectual. Bons salários, posições seguras e convites lucrativos para falar não impedem que se seja original e subversivo; nem podem as remunerações ralas ou os empregos inseguros garantir o pensamento crítico revolucionário. A idéia de que uma despensa vazia aguça a percepção e de que uma mesa farta gera racionalizações cheira a puritanismo reles e a materialismo crasso. Se o sofrimento gerasse obras geniais, o mundo estaria afogado em obras-primas. Se a miséria levasse à transformação social, o paraíso já teria chegado há muito tempo.” (O fim da utopia, Russel Jacoby, editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001, p.160).
O insucesso processual de Lula e o sucesso editorial dos juristas se invertem se considerarmos o tempo histórico. Mesmo tendo abandonado a utopia socialista ao privilegiar os lucros dos bancos quando foi presidente (possibilitando, assim, pela continuidade do modelo econômico o aprofundamento da exclusão política que se opera a partir de 2016), após a condenação na Lava Jato, Lula reassumiu seu lugar no panteão dos intelectuais de esquerda: ele voltou a ser o portador dos valores utópicos no Brasil. Defender Lula doravante equivale a defender o regime constitucional de 1988.
Ironicamente, o ressurgimento de Lula não ocorreu pelas mãos dos juristas e advogados que o defendem (entre os quais me coloco). Quem recolocou Lula no ponto mais alto como se fora o “farol da liberdade” num mundo que ameaça sucumbir nas trevas foi a sentença obtusa e absurda proferida por Sérgio Moro (juiz que entrará na infâmia porque deu mais valor jurídico-probatório às matérias jornalísticas do que às certidões dos registros de imóveis). O problema é que “Embora persistam os estudos acadêmicos do utopismo, o espírito utópico está, de modo geral, morto ou descartado.” (O fim da utopia, Russel Jacoby, editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001, p. 209), o que pode ser comprovado pela insistência dos juristas de lutar contra um regime ilegal dentro da legalidade, legitimando assim o espetáculo cotidiano de esvaziamento e destruição da democracia.
Ao abandonar a utopia no exato momento em que tentam salvar o líder do utopismo no Brasil, advogados como o eloqüente Kakay fazem jus à imagem que a mídia (criticada por vários autores do livro) criou para o pensamento e para a ação utópicas.
“No século XX, a utopia não tem sido bem recebida, quase sempre por bons motivos. A crítica tradicional de que as utopias carecem de pertinência ainda não diminuiu. Pelo contrário, intensificou-se. ‘Na linguagem cotidiana, o adjetivo ‘utópico’ significa ‘excessivo’, ‘irrealista’, e ‘excêntrico’. Referir-se a alguém como um utópico dá a entender que a pessoa não tem senso de realidade; seus projetos ou idéias fracassarão, por ignorarem as possibilidades concretas. Esta crítica, entretanto, não condena os utopistas como indivíduos maliciosos ou perigosos; na melhor das hipóteses, são vistos como benignos e, na pior, como irrelevantes.” (O fim da utopia, Russel Jacoby, editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001, p. 218/219).
E assim, aquela antítese ineficaz que segue sempre sem produzir uma síntese (a que me referi acima) se torna apenas uma nova tese jurídica. Aquela em que o positivismo, o respeito à letra da Lei se torna um imperativo categórico para a própria esquerda, que algumas décadas antes orgulhosamente preferia se colocar fora da Lei porque o positivismo era incapaz de permitir o florescimento da utopia revolucionária.
Pedro Estevam disse que a judicialização da política e o esvaziamento do Estado de Direito e da democracia se propagou dos países centrais para os periféricos. Há algo mais que parece ter sido trazido na bagagem de lá pelos próprios intelectuais de esquerda.
Lula pode até sobreviver jurídica e politicamente como líder utópico, mas o utopismo está morto. No Brasil ele foi morto com a ajuda dos juristas de esquerda, pois “…suas fontes de imaginação e de esperança secaram. A derrocada do radicalismo afeta até mesmo os não-politizados e os indiferentes, que registram de modo visceral uma confirmação do que sempre intuíram: esta sociedade é a única possível. Os que resistem a esta inferência fazem-no com pouca convicção ou sem levá-la às últimas conseqüências. O sucesso e seus símbolos passam a ser a meta dos jovens mais inteligentes e bem preparados – e quem haveria de recriminá-los, se estão simplesmente tirando conclusões do que vêem ao seu redor? A política redunda em escândalos, ou, na melhor das hipóteses, em maneiras de manipular a barca do Estado. Ninguém sequer finge acreditar num futuro diferente.” (O fim da utopia, Russel Jacoby, editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2001, p. 234).
O venerável Bandeira de Mello pediu aos juristas que fossem mais enérgicos. Kakay forneceu uma resposta anti-utópica: é preciso enfrentar o Estado de Exceção dentro da legalidade, da mesma legalidade que foi esvaziada e perdeu sua substância (como disse Pedro Estevam). Depois deles um jovem e brilhante advogado formado pela PUC que havia sido convidado a compor a mesa tomou a palavra. Ele nem foi veemente como pediu Bandeira de Mello, nem ousou dizer que Kakay pode estar errado. O fim da utopia foi anunciado com uma solene salva de palmas.
Artigo publicado originalmente em http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/comentarios-a-uma-sentenca-anunciada-e-o-fim-da-utopia-por-fabio-de-oliveira-ribeiro