Concertar é preciso, por Fernando Horta
AO professor Aldo Fornazieri escreveu um texto forte, cujo título é “Os golpistas não podem ser perdoados”. Com erudição e clareza próprias de tudo o que o professor escreve ele argumenta essencialmente que o “perdão” que o presidente Lula ofereceu retoricamente aos golpistas não foi apropriado, nem no tempo, nem numa análise de política mais fria.
Fornazieri vai a Maquiavel, Arendt e Weber para justificar que Lula errou e completa dizendo “A impressão que dá é que, em alguns casos, o comando petista perdeu a dimensão desses paradoxos da política e da moral”.?
Professor, permita-me discordar.
Em primeiro lugar, creio que todos temos ciência do perigo da política idealista. Aquela que acredita que fazer política é um exercício de liberdade volitiva. É preciso sempre lembrar do grande Garrincha que em 1958, antes do jogo contra a URSS, teria avisado ao treinador Feola que “é preciso combinar com os russos”. Neste sentido, é preciso perguntar qual o objetivo de uma candidatura de Lula. Se o objetivo de uma candidatura de Lula for “vingar-se” dos “golpistas”, “chamar-lhes às falas” ou de alguma forma ir à desforra, creio que estamos fazendo as coisas erradas, pelos meios errados e com as pessoas erradas.
Em toda a sua história, Lula sempre foi um conciliador. E nunca escondeu isto. Quando à frente do governo brasileiro, em parceria com Amorim, elevou esta capacidade à esfera global. O Brasil se apresentava ao mundo não como o país que tinha tanques, aviões e bombas, mas como o país que “podia conversar com todos e qualquer um”. Assim, tolher (ainda que moralmente) o presidente Lula de exercer a sua principal e diferenciada capacidade é, já de começo, um tiro no pé.
Se o objetivo é punir os golpistas isto deverá ser feito pelo povo nas urnas, já que o STF exercita uma pendular ética em que apenas algumas leis merecem rigorosa atenção e punição se forem quebradas. Outras, discricionariamente escolhidas pelos sacerdotes-supremos, são de “foro íntimo” ou não merecem atenção dos “11 grandes”. Se o STF se furtou de punir, apenas o povo – nas urnas – pode. Não é papel do presidente encabeçar uma postura que aumentaria a clivagem nacional em um momento, devemos reconhecer, que a esquerda não tem capacidade material para fazer impor seus pontos.
Por outro lado, se o objetivo da candidatura Lula for “estancar a sangria” de direitos sociais e trabalhistas perdidos diariamente, então é forçoso reconhecer que Lula precisará de todo apoio que ele puder amealhar. E isto, se olharmos a história da representação de esquerda no nosso parlamento, fica ainda mais evidente. Ou aqueles partidos que defendem uma cisão radical de cunho moral com tudo o que eles acham “espúrio” na política, vão eleger 250 deputados e 40 senadores? Se o objetivo é que o Brasil possa voltar a respirar e os trabalhadores parem um pouco de serem vilipendiados diuturnamente, creio que o único modo é a conciliação. E louvo diariamente a nossa sorte de ter Lula para fazer este papel. Com mais de 70 anos, tendo perdido a esposa, ameaçado de prisão e firme a carregar as esperanças dos mais pobres e dos mais necessitados.
Sabemos que uma parte significativa da divergência entre Lênin e Trotsky, por exemplo, era exatamente na incapacidade do último – em momentos-chave – compreender que as questões materiais são preponderantes. O olhar frio para a política brasileira atual, sem o idealismo das micro-candidaturas ou o moralismo da direita, nos remete a completa incapacidade de governar sem alianças, que a esquerda hoje experimenta. Aliás, não só Dilma não conseguiu governar, como sequer a esquerda conseguiu mantê-la institucionalmente no poder. Se isto não demonstra cabalmente a necessidade de fazer alianças, então nada mais o demonstrará.
Habermas, quando refletindo sobre a reconstrução da Alemanha no pós-Segunda Guerra, chamava a atenção para o “uso mediado das narrativas históricas”. Mediado não pela moral ou pela ciência histórica, mas pela consciência visando um projeto político efetivo. Alguns dirão que a comparação com a Alemanha é deveras descabida, ainda que o meu enfoque seja em cima das clivagens político-sociais existentes nos tempos. Mas se é verdade que o Brasil não está rachado como esteve a Alemanha, também é verdade que o projeto da direita conservadora brasileira não foi vencido nem moral e nem pelas armas, como foi o projeto nazista. “É preciso combinar com os russos”.
Eu ainda me atrevo a dizer que se Moro não estivesse jogando o papel de completo desestabilizador político da esquerda (papel que faz há mais de quatro anos sem freios) o discurso de Lula não seria tão afável, tão cedo. Não nos esqueçamos que a disputa eleitoral de Lula terá cinco turnos. O ex-presidente precisa passar pelo tribunal de exceção de Curitiba e seus prolongamentos em Porto Alegre. Em seguida, terá o primeiro turno eleitoral e o segundo. Após teremos uma batalha no STF e TSE e talvez, além de todos estes turnos, Lula tenha que superar o “coturno”. De outro lado, fica claro que o povo brasileiro, ao não se levantar quando todos estes tapas lhe são dados no rosto, diz claramente que quer a conciliação e não o embate.
Querer que Lula não faça uma política de conciliação e diálogo é como amarrar uma perna de Garrincha e mandar-lhe jogar. É possível que Garrincha jogasse com uma perna só (talvez até a torta) mais do que o outro time todo. É possível que Lula ganhasse as eleições com um discurso sectário e de cristalização das clivagens políticas atuais. Um discurso de moralismo político tão generalista que diz que se o PMDB apoiou o golpe, todo correligionário do PMDB é golpista. Entretanto, nossa função, a um ano da eleição, é maximizar nossas chances de chegar de novo ao poder, e não incitar um revanchismo sem sentido. Ainda que estejamos, reconheço, marcados na carne pelas recentes injustiças.
E quanto ao argumento de que a concertação de classes de Lula mostrou “não dar certo”, desculpe-me professor, mas hoje, a concertação de classe de Lula me parece um mundo maravilhoso a ser alcançado. Hoje, aquela sociedade, com todas as suas contradições e paradoxos, me parece muito melhor do que o que estamos vivenciando. Um dos mais perigosos erros políticos é a sobrevalorização das nossas possibilidades. O golpe mostrou que a esquerda sozinha pode pouco. Sem Lula, pode menos ainda.
Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/blog/fernando-horta/concertar-e-preciso-por-fernando-horta