Conduções coercitivas ilegais. Mais uma pausa em nosso combalido Estado de Direito. Por Afrânio Silva Jardim
Eu fico estarrecido com estas ilegais conduções coercitivas, que continuam ocorrendo acintosamente, sem que nada se faça para o restabelecimento do primado da lei.
Isto é uma flagrante violação ao Estado de Direito, afirmado em nossa Constituição da República.
O dramático é que estas medidas coercitivas vêm sendo requeridas por alguns membros do Ministério Público e deferidas por juízes, tudo com a maior naturalidade !!!
Para melhor compreensão do que abaixo vamos sustentar, vale a pena reler as normas jurídicas que disciplinam estas medidas processuais coercitivas de investigados, réus e testemunhas.
Vejam o que dispõe o art. 260 do Cod. Proc. Penal:
“Art. 260. SE O ACUSADO NÃO ATENDER À INTIMAÇÃO para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no art. 352, no que Ihe for aplicável.”
Vejam o que dispõe o art. 218 do Cod. Proc. Penal:
“Art. 218. SE, REGULARMENTE INTIMADA, A TESTEMUNHA DEIXAR DE COMPARECER SEM MOTIVO JUSTIFICADO, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.”
Desta forma, não cabe constranger investigados ou testemunhas que não tenham desatendido prévia intimação. A lei é clara e, por isso, fico abismado como continuam violando o nosso frágil Estado de Direito.
É um absurdo entrar na casa das pessoas, às 6:00 horas da manhã, e levá-las à força, em carro policial, até uma delegacia de polícia, tudo na frente dos seus filhos, demais parentes e vizinhos. Coisa de ditadura militar …
Alegam que isto impede de os investigados conversarem uns com os outros. Entretanto, todos têm o direito de conversar com quem quer que seja.
O indiciado ou réu não cometem crime se mentirem (a testemunha, sim). O interrogatório não é meio de investigação, mas um ato de defesa. A lei prevê o direito de o investigado ou réu de se entrevistarem previamente com o seu advogado, justamente para combinarem o teor da sua defesa. O juiz, depois, vai acreditar ou não no que disseram o investigado ou réu, tendo em vista estas circunstâncias e as demais provas carreadas para os autos do processo.
Na prática, na forma ilegal que ora questionamos, os investigados ficam com medo de terem a sua prisão cautelar decretada e acabam falando, embora eles tenham o direito ao silêncio. Eles acabam sendo interrogados, sem que tenham tido a oportunidade de terem assistência prévia de seus advogados, e dentro de um contexto absolutamente adverso e constrangedor.
Tudo isto é um absurdo. Não é valioso punir a qualquer preço. No caso, o preço é muito alto: a segurança das pessoas; o direito das pessoas; o Estado de Direito. Se fazem isso com investigados de prestígio social, imaginem o que estão fazendo com o cidadão comum …
Por tudo isso, o novo Código Nacional da Argentina proíbe que a polícia interrogue indiciados ou meros investigados. O Estado não deve tornar os indiciados em meio de obtenção de prova. Eventual contribuição neste sentido deve ser absolutamente voluntária.
Já faz tempo que escrevi breve texto sobre a condução coercitiva dos réus ou indiciados, que ora reproduzimos abaixo com algumas alterações.
Discordo inteiramente do recente parecer do Procurador Geral de República sobre a interpretação e vigência da regra do art. 260 do Cod. Proc. Penal, cujo teor pode ser acessado através do seguinte link: http://s.conjur.com.br/dl/pgr-conducao-coercitiva.pdf
Vamos ser diretos e didáticos, já que escrevemos para um público mais amplo.
1.1 – Se o réu ou indiciado têm o direito de ficarem calados, por que conduzi-los contra a sua vontade, à presença do Delegado de Polícia? Seria para tomar um “cafezinho” com a autoridade policial?
1.2 – É muito controvertido o chamado “poder geral de cautela” no processo penal, mormente quando atinge a liberdade das pessoas. De qualquer forma, se o conduzido não está obrigado a falar, a decisão judicial deveria dizer, expressa e fundamentadamente, que outra prova a condução coercitiva teria como objetivo trazer aos autos do processo.
Toda decisão judicial tem de ser fundamentada, conforme expressamente dispõe a Constituição Federal. Desta forma, a decisão deveria também demonstrar a necessidade de subtrair, ainda que por pouco tempo, a liberdade do indiciado ou réu, para que esta outra prova seja subtraída.
1.3 – Não vale o argumento de que é uma medida menos gravosa do que as prisões provisórias. Se uma dessas prisões fosse cabível, deveria ser decretada, mediante devida fundamentação. A condução coercitiva jamais impediria que o conduzido praticasse quaisquer dos atos que legitimariam tal prisão cautelar pois, após “tomar o cafezinho com o delegado”, ele volta para a sua casa.
A prevalecer este entendimento, sob o pretexto de não prender o réu ou o indiciado, o Estado poderia quase tudo. Sempre diria: isto é menos gravoso do que sua prisão… Eu poderia (deveria, então) prendê-lo, mas como “eu sou bonzinho”, lhe crio outras restrições e constrangimentos, embora não previstos em lei. Seria uma forma cínica de abandonar o princípio da legalidade.
1.4 – O réu ou indiciado não podem ser impedidos de assistir à busca domiciliar em sua residência (até para fiscalizá-la) ou de se comunicarem, previamente, com seus advogados ou mesmo com outros réus ou investigados. O cidadão em liberdade pode falar com quem quer que seja …
1.5 – Acho até que não se trata de inconstitucionalidade do art. 260 do Cod. Proc. Penal. Entendo que ele foi revogado pela Constituição de 1988, sendo incompatível com o sistema processual acusatório e várias outras regras e princípios constitucionais, mormente o direito ao silêncio e o de não produzir prova contra seus interesses;
1.6 – Nada disso vale para a condução coercitiva das testemunhas, que têm o dever de prestar depoimentos. Calar a verdade é crime de falso testemunho (como mentir também). Entretanto, também só tem cabimento a condução coercitiva de testemunhas que tenham desatendido prévia intimação.
1.7 – De qualquer forma, pela regra processual mencionada, a condução coercitiva, em qualquer hipótese, pressupõe uma intimação prévia e que ela tenha sido desatendida, vale a pena repetir e insistir, pois estão, cinicamente, fingindo que esta exigência legal não existe.
Acho incompatível com o Estado Democrático de Direito que se permita acordar uma pessoa às seis horas da manhã (para mim, já uma tortura …) e forçá-la, até fisicamente, a comparecer a uma delegacia, em um carro da polícia, tudo na frente dos filhos, cônjuge e vizinhos. Um constrangimento absurdo, até porque ele é presumido inocente pela Constituição.
Nem cabe aqui elencar outros danos que isto pode causar a esta pessoa. Imagine perder uma viagem ao exterior, onde tinha um relevante compromisso, apenas para tomar um cafezinho com o Dr. Delegado …
Na democracia, os fins não podem justificar os meios. Não é valioso postergar garantias conquistadas pelo nosso processo civilizatório, criando instabilidade e insegurança na população, apenas para mais rapidamente tentar obter uma prova. Dias sombrios estes nossos…
Importante notar a omissão “estratégica” do Supremo Tribunal Federal. Este tema chegou a ser incluído na sua pauta e de lá sumiu !!! Aliás, pedidos de vista “eternos” de alguns Ministros têm inviabilizado julgamentos relevantes !!!
O povo e alguns membros do Ministério Público e do Poder Judiciário não entenderam ainda que é importante punir criminosos, mas isto só é socialmente valioso se não houver violação aos direitos fundamentais, direitos individuais e sociais tutelados pela Constituição da República, os quais são conquista do nosso doloroso e lento processo civilizatório.
A insegurança jurídica e o medo da população em decorrência dos abusos do Estado na persecução penal são danos sociais maiores do que a impunidade de um criminoso. Vale dizer, não é valioso punir a qualquer preço !!!
Aliás, existem milhares de mandados de prisão expedidos que não são cumpridos e, nem por isso, “o mundo acabou” …
Que tal centralizar força para dar efetividade às condenações já definitivas ??? Muitos são homicidas, latrocidas e estupradores e estão tranquilamente transitando em nossas ruas e praças…
Artigo publicado originalmente em http://emporiododireito.com.br/conducoes-coercitivas-ilegais-mais-uma-pausa-em-nosso-combalido-estado-de-direito-por-afranio-silva-jardim/