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Conduções coercitivas ilegais. Mais uma pausa em nosso combalido Estado de Direito. Por Afrânio Silva Jardim

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura
Afranio_Silva_Jardim

Eu fico estarrecido com estas ilegais conduções coercitivas, que continuam ocorrendo acintosamente, sem que nada se faça para o restabelecimento do primado da lei.

Isto é uma flagrante violação ao Estado de Direito, afirmado em nossa Constituição da República.

O dramático é que estas medidas coercitivas vêm sendo requeridas por alguns membros do Ministério Público e deferidas por juízes, tudo com a maior naturalidade !!!

Para melhor compreensão do que abaixo vamos sustentar, vale a pena reler as normas jurídicas que disciplinam estas medidas processuais coercitivas de investigados, réus e testemunhas.

Vejam o que dispõe o art. 260 do Cod. Proc. Penal:

“Art. 260. SE O ACUSADO NÃO ATENDER À INTIMAÇÃO para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no art. 352, no que Ihe for aplicável.”

Vejam o que dispõe o art. 218 do Cod. Proc. Penal:

“Art. 218. SE, REGULARMENTE INTIMADA, A TESTEMUNHA DEIXAR DE COMPARECER SEM MOTIVO JUSTIFICADO, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.”

Desta forma, não cabe constranger investigados ou testemunhas que não tenham desatendido prévia intimação. A lei é clara e, por isso, fico abismado como continuam violando o nosso frágil Estado de Direito.

É um absurdo entrar na casa das pessoas, às 6:00 horas da manhã, e levá-las à força, em carro policial, até uma delegacia de polícia, tudo na frente dos seus filhos, demais parentes e vizinhos. Coisa de ditadura militar …

Alegam que isto impede de os investigados conversarem uns com os outros. Entretanto, todos têm o direito de conversar com quem quer que seja.

O indiciado ou réu não cometem crime se mentirem (a testemunha, sim). O interrogatório não é meio de investigação, mas um ato de defesa. A lei prevê o direito de o investigado ou réu de se entrevistarem previamente com o seu advogado, justamente para combinarem o teor da sua defesa.  O juiz, depois, vai acreditar ou não no que disseram o investigado ou réu, tendo em vista estas circunstâncias e as demais provas carreadas para os autos do processo.

Na prática, na forma ilegal que ora questionamos, os investigados ficam com medo de terem a sua prisão cautelar decretada e acabam falando, embora eles tenham o direito ao silêncio. Eles acabam sendo interrogados, sem que tenham tido a oportunidade de terem assistência prévia de seus advogados, e dentro de um contexto absolutamente adverso e constrangedor.

Tudo isto é um absurdo. Não é valioso punir a qualquer preço. No caso, o preço é muito alto: a segurança das pessoas; o direito das pessoas; o Estado de Direito. Se fazem isso com investigados de prestígio social, imaginem o que estão fazendo com o cidadão comum …

Por tudo isso, o novo Código Nacional da Argentina proíbe que a polícia interrogue indiciados ou meros investigados. O Estado não deve tornar os indiciados em meio de obtenção de prova. Eventual contribuição neste sentido deve ser absolutamente voluntária.

Já faz tempo que escrevi breve texto sobre a condução coercitiva dos réus ou indiciados, que ora reproduzimos abaixo com algumas alterações.

Discordo inteiramente do recente parecer do Procurador Geral de República sobre a interpretação e vigência da regra do art. 260 do Cod. Proc. Penal, cujo teor pode ser acessado através do seguinte link: http://s.conjur.com.br/dl/pgr-conducao-coercitiva.pdf

Vamos ser diretos e didáticos, já que escrevemos para um público mais amplo.

1.1 – Se o réu ou indiciado têm o direito de ficarem calados, por que conduzi-los contra a sua vontade, à presença do Delegado de Polícia? Seria para tomar um “cafezinho” com a autoridade policial?

1.2 – É muito controvertido o chamado “poder geral de cautela” no processo penal, mormente quando atinge a liberdade das pessoas. De qualquer forma, se o conduzido não está obrigado a falar, a decisão judicial deveria dizer, expressa e fundamentadamente, que outra prova a condução coercitiva teria como objetivo trazer aos autos do processo.

Toda decisão judicial tem de ser fundamentada, conforme expressamente dispõe a Constituição Federal. Desta forma, a decisão deveria também demonstrar a necessidade de subtrair, ainda que por pouco tempo, a liberdade do indiciado ou réu, para que esta outra prova seja subtraída.

1.3 – Não vale o argumento de que é uma medida menos gravosa do que as prisões provisórias. Se uma dessas prisões fosse cabível, deveria ser decretada, mediante devida fundamentação. A condução coercitiva jamais impediria que o conduzido praticasse quaisquer dos atos que legitimariam tal prisão cautelar pois, após “tomar o cafezinho com o delegado”, ele volta para a sua casa.

A prevalecer este entendimento, sob o pretexto de não prender o réu ou o indiciado, o Estado poderia quase tudo. Sempre diria: isto é menos gravoso do que sua prisão… Eu poderia (deveria, então) prendê-lo, mas como “eu sou bonzinho”, lhe crio outras restrições e constrangimentos, embora não previstos em lei. Seria uma forma cínica de abandonar o princípio da legalidade.

1.4 – O réu ou indiciado não podem ser impedidos de assistir à busca domiciliar em sua residência (até para fiscalizá-la) ou de se comunicarem, previamente, com seus advogados ou mesmo com outros réus ou investigados. O cidadão em liberdade pode falar com quem quer que seja …

1.5 – Acho até que não se trata de inconstitucionalidade do art. 260 do Cod. Proc. Penal. Entendo que ele foi revogado pela Constituição de 1988, sendo incompatível com o sistema processual acusatório e várias outras regras e princípios constitucionais, mormente o direito ao silêncio e o de não produzir prova contra seus interesses;

1.6 – Nada disso vale para a condução coercitiva das testemunhas, que têm o dever de prestar depoimentos. Calar a verdade é crime de falso testemunho (como mentir também). Entretanto, também só tem cabimento a condução coercitiva de testemunhas que tenham desatendido prévia intimação.

1.7 – De qualquer forma, pela regra processual mencionada, a condução coercitiva, em qualquer hipótese, pressupõe uma intimação prévia e que ela tenha sido desatendida, vale a pena repetir e insistir, pois estão, cinicamente, fingindo que esta exigência legal não existe.

Acho incompatível com o Estado Democrático de Direito que se permita acordar uma pessoa às seis horas da manhã (para mim, já uma tortura …) e forçá-la, até fisicamente, a comparecer a uma delegacia, em um carro da polícia, tudo na frente dos filhos, cônjuge e vizinhos. Um constrangimento absurdo, até porque ele é presumido inocente pela Constituição.

Nem cabe aqui elencar outros danos que isto pode causar a esta pessoa. Imagine perder uma viagem ao exterior, onde tinha um relevante compromisso, apenas para tomar um cafezinho com o Dr. Delegado …

Na democracia, os fins não podem justificar os meios. Não é valioso postergar garantias conquistadas pelo nosso processo civilizatório, criando instabilidade e insegurança na população, apenas para mais rapidamente tentar obter uma prova. Dias sombrios estes nossos…

Importante notar a omissão “estratégica” do Supremo Tribunal Federal. Este tema chegou a ser incluído na sua pauta e de lá sumiu !!! Aliás, pedidos de vista “eternos” de alguns Ministros têm inviabilizado julgamentos relevantes !!!

O povo e alguns membros do Ministério Público e do Poder Judiciário não entenderam ainda que é importante punir criminosos, mas isto só é socialmente valioso se não houver violação aos direitos fundamentais, direitos individuais e sociais tutelados pela Constituição da República, os quais são conquista do nosso doloroso e lento processo civilizatório.

A insegurança jurídica e o medo da população em decorrência dos abusos do Estado na persecução penal são danos sociais maiores do que a impunidade de um criminoso. Vale dizer, não é valioso punir a qualquer preço !!!

Aliás, existem milhares de mandados de prisão expedidos que não são cumpridos e, nem por isso, “o mundo acabou” …

Que tal centralizar força para dar efetividade às condenações já definitivas ??? Muitos são homicidas, latrocidas e estupradores e estão tranquilamente transitando em nossas ruas e praças…

Artigo publicado originalmente em http://emporiododireito.com.br/conducoes-coercitivas-ilegais-mais-uma-pausa-em-nosso-combalido-estado-de-direito-por-afranio-silva-jardim/

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