Construir outro mundo, em meio à tempestade por Immanuel Wallerstein
O
signo da próxima década pode ser a turbulência. O declínio do poder
norte-americano, agora evidente, é bem-vindo – mas tende a provocar, no
curto prazo, desordens e ameaças. Será preciso evitar abismos. Mas,
como em toda a encruzilhada, haverá espaço para alternativas e escolhas
No
momento em que nos aproximamos da próxima década, é possível antecipar
grande turbulência em duas frentes – a arena geopolítica e a economia
mundial, com o relativo declínio do poder geopolítico norte-americano,
agora percebido por quase todos, e que nem mesmo um Obama presidente
será capaz de reverter.
Estamos caminhando para um mundo verdadeiramente
multipolar, em que o poder de Estados relativamente fracos tornou-se
subitamente muito maior. O Oriente Médio atual é um exemplo. A Turquia
agencia a retomada de negociações entre Síria e Israel, congeladas há
muito. O Qatar agencia uma trégua negociada entre facções libanesas
ferozmente opostas. A Autoridade Palestina retomou negociações com o
Hamas. E o governo paquistanês entrou numa trégua de facto
com o Taliban nas zonas fronteiriças ao Afeganistão. O significativo
destas estas ações é que os Estados Unidos se opuseram a todas elas e
foram simplesmente ignorados – sem nenhuma conseqüência séria para
qualquer dos atores.
Além os EUA, União Européia e Japão, há agora a Rússia,
China, Índia, Irã, Brasil – como líder presumido do bloco sul-americano
– e África do Sul – líder presumido do bloco sul-africano.
Há um imenso terreno para alianças, com debate internos
sobre parceiros ideais e ampla incerteza sobre o que decidirão. Além
disso, outros países como Polônia, Ucrânia, Coréia do Sul, Paquistão,
Egito, Nigéria, México e Canadá já não têm certezas sobre quais seus
espaços de atuação. A situação geopolítica é claramente distinta de
todas que o mundo viveu há um bom tempo. Não é a anarquia total, mas
certamente desordem geopolítica maciça.
O declínio do dólar provavelmente prosseguirá. Não
está claro se o euro poderá substituí-lo. Pode sobrevir um cenário
confuso, em que não há moeda internacional de referência, o que amplia
a instabilidade
Esta desordem geopolítica está acompanhada por
incertezas agudas sobre a economia mundial. Há, antes de mais nada, o
tema das moedas. Vivemos, pelo menos desde 1945, num mundo estabilizado
pelo dólar. O declínio dos Estados Unidos, em particular como locus
dominante da produção mundial, combinado com a ultra-expansão de sua
dívida, causou um sério declínio do dólar, cujo patamar final ainda é
obscuro, mas será provavelmente inferior ao atual.
O declínio do dólar representa um sério dilema
econômico para outros países, particularmente aqueles que converteram
sua nova riqueza em títulos e estoques denominados nesta moeda. Estes
países estão divididos entre sustentar os EUA, destino muito importante
de suas exportações, e evitar as perdas reais que sofre o valor de seus
ativos vinculados ao dólar. Especulam sobre a possibilidade de
abandoná-lo. Mas como em todas as saídas financeiras, a questão para os
possuidores de ativos é o timing – nem muito cedo, nem tarde demais.
O dólar poderá ser substituído como reserva monetária
mundial? O candidato óbvio é o euro. Mas não se sabe ainda se ele
poderá cumprir este papel, ou se os governos europeus estão dispostos a
promovê-lo a tal condição – embora não seja impossível que o processo
os atropele
Em lugar do euro, poderíamos ter uma situação
pluri-monetária, em que dólar, euro, iene, o renminbi chinês e a libra
fossem todos utilizáveis para transações internacionais? A resposta
aqui é similar à das alianças geopolíticas. Não seria a anarquia total,
mas certamente desordem, e os governos e produtores tenderiam a
sentir-se muito inconfortáveis – para não falar dos aposentados em todo
o mundo.
Governos incapazes de assegurar a manutenção da Saúde,
Educação e Previdência – três formas-chave de redistribuição social –
perderiam legitimidade abruptamente, com eventuais levantes civis
Muitos países grandes viveram amplo aumento tanto de
produção quanto nos níveis de consumo. Veja-se os tão-comentados BRIC –
Brasil, Rússia, Índia e China – que abrigam cerca de 60% da população
mundial O aumento em seus níveis de produção e consumo produzir um
enorme aumento da demanda por energia, matérias-primas, alimentos e
água. Alguma coisa vai acontecer. Pode haver uma grande onda mundial de
inflação, se os preços de todas as commodities
continuarem a disparar, alimentados pelo crescimento da demanda e pela
especulação. Uma conseqüência não-descartável seria o protecionismo
maciço: governos limitando fortemente as exportações, para proteger seu
abastecimento interno.
As experiências anteriores mostram que isso pode criar
círculos viciosos erráticos. Ou pode haver enormes desabastecimentos
localizados, resultando em altos índices de mortalidade e sérias
catástrofes ambientais.
Os governos atingidos por quedas na receita, e
pressionados a não compensá-las via aumentos de tributos, poderiam
cortar despesas nas áreas-chaves de Educação, Saúde e Previdência. Mas
são terrenos que, como parte da democratização do mundo nos dois
últimos séculos, transformaram-se nas expectativas mais importantes das
sociedades em relação a seus governos. Dirigentes incapazes de
assegurar a manutenção destas três formas de redistribuição social da
riqueza perderiam legitimidade abruptamente, com resultados incertos em
termos de levantes civis.
É exatamente a este cenário, muito negativo a curto
prazo, que nos referimos quando dizemos que o sistema ultrapassou o
equilíbrio, ingressando num estado de caos. O caos, é claro, nunca dura
para sempre. As situações caóticas acabam gestando a própria solução de
suas crises, naquilo que Prigogine e Stengers chamaram de "ordem
emanada do caos", em sua obra clássica, [1].
Como os autores frisam, no centro de uma encruzilhada há criatividade e
alternativas, mas nunca se sabe que escolhas serão feitas.
Debatamos o rumo a seguir, ignorando os Estados e os
objetivos nacionais. Assumamos, porém compromissos com ambos no curto
prazo, para evitar os abismos
Na batalha entre esquerda e direita, a primeira viveu
um ascenso vertiginoso nos últimos duzentos anos – especialmente no
século 20. A esquerda mobilizou apoio em grande escala e com muita
eficácia. Houve um momento, no pós-II Guerra, em que isso parecia
ocorrer em toda parte e de todas as maneiras.
Então, vieram as grandes desilusões. Os Estados onde os
movimentos anti-sistêmicos chegaram ao poder, de uma ou de outra
maneira, estiveram na prática muito distantes daquilo que as forças
populares esperavam deles. E a irreversibilidade destes regimes
mostrou-se outra ilusão. No início dos anos 90, todo o triunfalismo da
esquerda mundial tinha sido varrido – e substituído por uma letargia
generalizada, freqüentemente uma sensação de fracasso.
Porém como sabemos, o sentimento de vitória da direita
evaporou-se igualmente – de modo ainda mais espetacular quando afundou
a aposta dos neoconservadores, que apostavam numa permanente dominação
imperial norte-americana. Da rebelião zapatista em 1994 aos protestos
bem-sucedidos que inviabilizaram a reunião da OMC em Seattle, em 1999,
e à fundação do Fórum Social Mundial (FSM), em 2001, em Porto Alegre,
uma esquerda reacesa e transformada emergiu na cena mundial.
Vivemos num ambiente mundial caótico e é difícil
enxergar com clareza. É mais ou menos como tentar seguir adiante numa
grande tempestade de neve. Os que quiserem sobreviver precisam examinar
tanto a bússola – para saber em que direção caminhar – quanto o terreno
alguns centímetros à frente – para não despencar em algum precipício. A
bússola guia nossos objetivos de médio prazo, indica o tipo de novo
sistema mundial que queremos construir. Os centímetros à nossa frente
são a política do mal menor. Se não nos preocuparmos com ambos,
estaremos perdidos. Debatamos o rumo da bússola, ignorando os Estados e
os objetivos nacionais. Assumamos, porém compromissos com ambos no
curto prazo, para evitar os abismos. Desse modo, teremos uma chance de
sobrevivência, uma chance de construir o outro mundo possível.
Mais
Publicado originalmente pela Yale Global Magazine, do Centro de Estudos sobre a Globalização da Universidade de Yale
[1] Ilya Prigogine & Isabelle Stengers. A Nova Aliança: Metamorfose da Ciência. Editora da UnB, Brasília, 1984
Publicado no Brasil por Le Monde Diplomatique – Brasil