Crer e destruir – tentando entender um retrocesso histórico, por Marcos Dantas
Historiadores atuais, com obras publicadas na última década do século XX ou nos primeiros anos deste século, estão nos dando uma resposta que a muitos parecerá desconfortável, a uma velha pergunta de senso comum: “como pôde um tipo como Hitler convencer e conduzir para os caminhos que conduziu um povo tão culto e civilizado como o alemão?”
A resposta: ele não precisou convencer ninguém. Pelo contrário, uma parcela expressiva daquela sociedade já estava predisposta a ser convencida. Hitler e seus sequazes foram um produto dela. Ele foi apenas o político mais competente dentre tantos que com ele competiam, nos anos 1920-1930, para levar a Alemanha ao caminho que levou. E esse caminho era desejado, mais ou menos conscientemente, mais ou menos inconscientemente, por uma grande parcela da população e por amplos segmentos de suas elites intelectuais, inclusive juristas, engenheiros, economistas, filósofos, artistas. Muitos podiam até expressar certo mal estar diante dos métodos vulgares, tipicamente lúmpens, de Hitler e seus bandidos das SSAA, mas todos a ele acabariam aderindo depois que emergiu definitivamente vitorioso, em janeiro de 1933.
Obras como Crer e Destruir, de Christian Ingrao (Jorge Zahar Editor, 2015), Hitler (Companhia das Letras, 2010) ou O fim do Terceiro Reich (Companhia das Letras, 2015), ambas de Ian Kershaw, entre outras, são aterradoras. Ingrao, em especial, pesquisou a origem e formação dos oficiais da SS, especialmente de seu departamento conhecido pela sigla SD. Além dele, a leitura do extraordinário romance histórico <em>As Benevolentes</em>, de Jonathan Littel (Objetiva, 2007), já suscitara a espantosa constatação de ser a oficialidade SS constituída por homens (não havia mulheres) de elevada formação técnica e cultural. Entre si, conversavam nos encontros sociais, em tom coloquial, sobre filosofia, literatura, história, música clássica (até citariam tranquilamente Dostoievski, se não tivessem ojeriza aos eslavos). E, no trabalho, executavam tarefas bestiais com absoluta naturalidade e convicção.
Ingrao nos esclarece. Crianças, eram filhos de famílias e relações de amizade traumatizadas pela Primeira Guerra Mundial. Todos tiveram o pai, ou tios, ou irmãos, ou vizinhos, ou parentes de coleguinhas, mortos ou inválidos devido à Guerra. Adolescentes, testemunharam a humilhação da Alemanha vencida e seus pesados custos para a população. Jovens universitários vão militar política ou culturalmente a favor do ressurgimento da Alemanha. Como é normal nessa fase testosterônica da vida, essa militância é ativa, agressiva, não raro violenta. Começam aí a se formar os afetos e subjetividades dos homens que, anos depois, em 1940-1941, comandarão diretamente os massacres de milhões de russos e judeus na Frente Oriental.
Estudantes universitários, como é normal, se orientam por teorias e aprimoram teorias. Os futuros “intelectuais SS”, como os denomina Ingrao, identificavam-se com teorias racialistas oriundas do século XIX e, já nas suas monografias de fim de graduação, ou depois, nos projetos de mestrado e doutorado, avançarão pesquisas e teses que pretendiam confirmar, aprimorar, evoluir aquelas teorias. O racialismo – ontem, como hoje – pretendia-se ciência. Entre seus teóricos, encontravam-se o etnólogo Hans Günther ou o biólogo Heinz Weismann, fontes paradigmáticas, entre outras, de suas dissertações e teses. Com base no determinismo racial, fundamento de todo racialismo (ontem como hoje), explicavam a história, a geografia, os conflitos sociais, até mesmo a economia ou as ciências naturais.
Thomas Kuhn já explicou que toda teoria científica, por mais racional, lógica e empiricamente evidente que seja, se apóia em alguma estrutura profunda de crenças e valores culturais e sociais que conduzem subjetivamente, não raro inconscientemente, as escolhas do objeto e dos métodos de pesquisa dos cientistas e acadêmicos. O racialismo cientificizado vinha ao encontro de crenças introjetadas no subconsciente daqueles jovens que, daí, não apenas irão aprofundar seus estudos na mesma linha, como dedicarão suas vidas à reafirmação e comprovação de suas teses. A crença primária os conduzirá à destruição racionalmente consciente, cientificamente legitimada, de um mundo de “inimigos”, sustenta Ingrao.
É que num mundo formado por raças antagônicas embora, não raro, “mestiças”, a nórdica destacava-se como a mais “pura” e, ao mesmo tempo, a mais ameaçada pelo cerco das demais. O racialismo é sempre vitimista. Os nórdicos alemães travavam há mil anos uma dura luta de sobrevivência contra eslavos no Leste e os mediterrâneos no Sul e no Oeste. Para efeitos populares, Hitler (que lera Gunther) iria simplificar tais sofisticados argumentos (pretensamente) científicos, esbravejando que os alemães eram vítimas de traidores judeus e bolcheviques (também judeus…). E encontraria vastos ouvidos abertos à sua prédica, tal a difusão na Alemanha dos anos 1920-1930 de um generalizado senso comum volkish, palavra que significava identificação cultural com uma certa “germanidade”, seus mitos e símbolos. O NSDAP (Partido Nazista), no início, como nos mostra detalhadamente Ian Kershaw em Hitler, era apenas mais um de dezenas de outros grupelhos partidários, sociedades ou milícias volkish espalhados por toda a Alemanha. Acabou impondo-se aos demais nas urnas ou nas ruas.
A convergência da sofisticada Academia com o lumpensinato nazista se dará na SS, mais particularmente no SD. A tropa fora criada para ser um corpo de elite garantindo a segurança pessoal do Führer. Seu Chefe Heinrich Himmler e seu braço direito Reinhard Heydrich organizarão, em 1931, um departamento de inteligência, o Sicherheitsdienst (SD), renomeado, em 1939, RSHA (acrônimo alemão para Escritório Central de Segurança do Reich). Na estrutura do SD/RSHA encontravam-se os “escritórios” de informação, análise, inteligência, documentação, assim como também as temidas polícias política (Gestapo) e criminal (Kripo). O controle dos campos de extermínio, porém, ficaria a cargo de outro departamento, distinto do SD, criado já depois de iniciada a Segunda Guerra.
É para as atividades de informação e inteligência que Heindrich começará a recrutar os jovens universitários que mais se destacavam na formulação teórica do pensamento germanista e na ação prática de combate aos “inimigos” do povo alemão: os comunistas, os social-democratas, os liberais e, nas regiões de fronteira, os franceses, os poloneses, os tchecos. Além dos judeus. Ingrao estudou a trajetória de 80 desses homens que a Guerra encontrou entre os 30 a 40 e poucos anos de idade, com base nos processos judiciais aos quais quase todos foram submetidos depois da Guerra, também numa vasta documentação que veio sendo liberada pelos diferentes países aliados ao longo dos anos, além da enorme literatura histórica e muitos relatos biográficos produzidos por todo esse tempo, boa parte em alemão. No seu livro, a história do nazismo e da Guerra ultrapassa os limites das “grandes narrativas” centradas nas principais lideranças do NSDAP e da Wehrmacht, Hitler acima de todas, e inclui personagens raramente citados mas nem por isto menos decisivos, responsáveis diretos por tornar aquela tragédia possível pois foram os que a planejaram e conscientemente executaram: Walter Schellemberg (personagem também importante no romance histórico de Littel), Otto Ohlendorf (também personagem de Littel), Georg Mehlhorn, Hans Ehlich, Erich Ehrlinger, Werner Best, Hermann Behrends, Franz Six, Albert Rapp, Walter Blume e tantos outros.
Formaram-se em prestigiosas universidades: Heidelberg, Leipzig, Konigsberg, Bonn etc., com professores e orientadores que estimulavam e legitimavam suas visões racialistas. Eram, na maioria, advogados, mas também economistas, geógrafos, historiadores, linguistas, alguns médicos, engenheiros ou arquitetos. Uma vez à frente do SD/RSHA, tiveram em mãos não apenas recursos materiais e pessoais para avançar ainda mais investigações que “confirmavam” suas teses racialistas, como também meios para vigiar estritamente o conjunto da população alemã, perscrutar seus humores ao longo da guerra, vigiar e punir o que ainda restava de resistência na Alemanha à ditadura nazista. Um de seus feitos foi o planejamento e execução da “noite das facas longas”, o massacre, por tropas SS, da cúpula SA reunida num congresso orgiástico, em junho de 1934. Quando Hitler precisou se livrar da tropa de lúmpens que atrapalhava a sua aceitação pela burguesia alemã e pela alta oficialidade do Exército, os elitistas “intelectuais SS” souberam cumprir a tarefa. A Justiça aceitou como legais “na qualidade de defesa de emergência do Estado”, os mais de cem puro e simples assassinatos cometidos nesses dias. Um dos mais importantes juristas alemães, Carl Schmitt, teórico do Estado autoritário e da Justiça de exceção, publicou um artigo com o título “O Führer salvou o Direito” (citado por Kershaw em Hitler).
Já constituindo firmemente o alicerce estrutural do poder nazista na Alemanha, não só policial mas da própria elaboração e condução de políticas públicas, os “intelectuais da SS” iriam planejar criteriosamente o destino do Leste europeu a partir da invasão da Polônia, em 1939. Ehlich, Ohlendorf e seus comparsas elaboraram um “Generalplan Ost” (Plano Geral do Leste) que previa, em detalhes, a ocupação das vastas planícies polonesas e russas por cerca de 8,9 milhões de alemães. Escritórios de arquitetura planejaram e chegaram a desenhar as vilas que nucleariam o processo de ocupação. Eles viam no Leste, escreveu Ingrao, “a chance única de construir, partindo do zero, a sociedade ideal que decorre do determinismo racial”.
Só tinha um problema: por óbvio, o Leste já estava ocupado por grande população. Havia uma solução: esvaziá-lo. Cerca de 35 milhões de pessoas poderiam ser “realocadas” para além dos montes Urais. Outras 12,9 milhões precisariam ser fisicamente eliminadas. Sim, o genocídio não resultou de um paroxismo de guerra executado por indivíduos desumanos cumprindo ordens de um Führer ensandecido. Foi friamente planejado e calculado nos escritórios do SD/RSHA, em Berlim, e executado sob o comando direto dos mesmos homens que o planejaram, como que unindo a teoria à prática. Quase todos eles, de alguns meses a mais de um ano, cumpriram um “estágio”, por assim dizer, na Frente Oriental, seja para dar “exemplo” às tropas horripiladas, seja para acumular pontos na carreira que imaginavam poder seguir depois da Guerra. Quase todos eles, além de comandar os pelotões de fuzilamento ou enforcamento, executaram a tiros, com as próprias mãos, algumas das suas infelizes vítimas: pessoas comuns, não combatentes, comerciantes, operários, agricultores, homens, mulheres e crianças, colhidos no meio da barbárie. Na grande maioria, judeus. Eles tinham plena consciência do tamanho do crime. Himmler falou em alguma reunião que estavam “escrevendo uma página gloriosa de nossa história que jamais deverá ser escrita” (citado por Kershaw, em Hitler). Uma página a ser mantida em eterno segredo. À frente dos massacres, Walter Blume chegou a dizer para suas tropas: “Que Deus proteja aquele que eu pilhar lá sentindo prazer com a tarefa”. Era apenas um “terrível” trabalho que precisava ser feito mas que não deveria deixar ninguém feliz. No entanto, é verdade, alguns sentiam doentio prazer sádico à frente das matanças… Já vinham se preparando subconscientemente para isso desde os tempos escolares, ou mesmo desde a traumatizada infância.
Estamos no mesmo caminho?
O nazismo foi obra de uma geração nascida, criada, amadurecida num dado contexto histórico, com suas crenças, conceitos e preconceitos. Das entranhas dessa sociedade surgiram os homens (e também mulheres) que se imbuíram da tarefa e levar aquelas crenças, conceitos, preconceitos à prática, dentre eles, acima de todos, Hitler. Os contemporâneos dos fatos, as milhões e milhões de pessoas que com os fatos convivem e se ajustam aos seus efeitos em suas anônimas vidas cotidianas, normalmente atribuem esses efeitos, positivos ou negativos, aos atos dos indivíduos que parecem tê-los produzidos, muito dificilmente buscando entender os contextos maiores, não raro obscuros, em que se inserem. Esta, a rigor, pode ser a tarefa dos cientistas sociais mas mesmo estes, normalmente, também terão certa dificuldade para escapar ao círculo de giz das suas próprias crenças e valores conforme estas se manifestam conflitivamente na sociedade real em que vivem.
Ler autores que, pesquisando e escrevendo mais de meio século depois dos acontecimentos, distantes das paixões da época (mas nos termos dos julgamentos de hoje), e com acesso a uma documentação ainda não disponível até 20 ou 30 anos atrás, assim nos revelando relações sociais e culturais profundas que, nos anos 1920-1930, permitiram a ascensão do nazismo na Alemanha, lê-los faz-nos meditar sobre o que pode estar acontecendo no Brasil de hoje. Se, na superfície dos fatos, as realidades são muito distintas no tempo e no espaço, o que entenderíamos se pudéssemos mergulhar nas profundezas da cultura ou mesmo da alma brasileiras quase nada iluminadas aos olhos dos observadores coetâneos? Alguma resposta a esta pergunta somente será dada – se o for – pelos historiadores do futuro. Há que investigar elementos sequer perceptíveis por nós agora, testemunhas que somos, ou mesmo atores, menos ou mais proeminentes, dos fatos presentes, conforme produzidos pelos indivíduos que se põem, na política, na ciência, nas artes ou na indústria cultural, em condição de produzi-los. Podemos enxergar e reagir apenas àquilo que está ao nosso limitado alcance enxergar e reagir, e normalmente também pelos filtros de nossas próprias crenças, desejos, opções políticas, culturais, até mesmo epistemológicas.
A pergunta é: que sociedade é esta que produz tipos como Cristiane Brasil, Rosângela Moro, Daniela Kreling Lau, Marcelo Bretas, tantas outras e outros que frequentam o noticiário recente e estão, de um modo ou outro, influenciando os rumos do País? Certamente eles não chegaram ao proscênio da noite para o dia. A arrogância despudorada, a total desfaçatez e achincalhe como respondem a seus muito justamente perplexos críticos, a ausência completa de senso de medidas e de compostura, sem falar, claro, do desamor ao Brasil e a seu povo, tudo isso amplamente divulgado pela chamada “mídia” quase que como algo tão natural quanto o morro do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, exibem uma formação e uma educação que precisam ser explicadas nas condições vivenciadas pela sociedade brasileira nos últimos 30 ou 40 anos. Trata-se de uma geração formada depois da Constituição de 1988. Como uma sociedade que se pensava democrática, estatuída pela ordem do direito, deu origem a uma geração de magistrados e outras personalidades tão fascistóides, obscurantistas, atrabiliários, além do mais movidos por um profundo sentimento, talvez pouco consciente até para eles mesmos, de destruição de tudo o que sucessivas gerações de brasileiros e brasileiras construíram, não apenas nos últimos 13 ou mesmo 30 anos, mas nos últimos 50 a 70 anos de nossa história?
Como se formaram esses personagens? Em que escolas e faculdades estudaram, com que professores e professoras? O quê se conversava em seus ambientes familiares? Que livros leram? Que filmes e programas de televisão costumavam assistir quando crianças e jovens? Que imagem de Brasil interiorizaram no inconsciente, se é que interiorizaram alguma? Que projeto de país formularam em suas mentes? Formularam? Obviamente, não será um artigo de jornal que poderá responder a essas perguntas, nem mesmo esta tarefa estaria à altura da competência deste escriba.
Deixemos no ar algumas hipóteses.
Observe-se as tão enaltecidas “redes sociais”. O povo que nelas se manifesta politicamente (o povo mesmo, não o pessoal politizado de esquerda) não é absolutamente capaz de formular algum raciocínio além de xingamentos em linguagem chula. É esse povo que dá suporte social aos Moro e Dallagnol. É esse povo que vota nos Crivella, nos Dória, nos Picciani, nos Russomanos, nos Marun, nos Magno Malta, nos Marco Feliciano (para citar metonimicamente alguns), agora tende também a Bolsonaro. A linguagem é lúmpem. Suas ocupações e empregos são precários. Expressam, na violência verbal, ante-sala da física, tão somente seus ressentimentos e recalques. “O inferno são os outros”, dizia Sartre. O “outro”, no Brasil, é a “esquerda” ou o “PT”. As próximas eleições, este ano, dirão se não estamos às vésperas de uma “noite dos cristais”, aquela, em novembro de 1938, quando residências, lojas, sinagogas judias, além claro das pessoas, foram pilhadas, destruídas, agredidas, até assassinadas nas ruas de toda a Alemanha por nazistas ensandecidos, sob aplausos ou indiferença da restante população.
Não contando (felizmente) com um demagogo genial como Hitler, essa nossa elite nada intelectual dos Kim Kataguiri, Rodrigo Constantino, Flavio Rocha et caterva, imagina a solução num indivíduo como Luciano Huck. Produto da Globo? Dialeticamente, não. Huck, Faustão, Ana Maria Braga, William Bonner, também Silvio Santos, Datena, outros tantos e tantas, não existiriam, assim como Hitler, Goebels ou os “intelectuais SS” na Alemanha dos anos 1920-1930, se não existisse um povo disposto a lhes dar ouvidos e a pensar indigentemente com eles. Como já explicou Martin-Barbero, os “intelectuais” da indústria cultural (aqui parodiando Ingrao) reproduzem em seus espetáculos, as experiências e vivências cotidianas de seus públicos, seus pequenos dramas, seus pequenos anseios, suas dificuldades ou eventuais sucessos individuais ou familiares no dia a dia da dura vida. Falam do mundo real, do mundo realmente sentido, como é sentido, pelo povo. Reproduzem no imaginário da telinha, a imagem do senso comum. Diga-se, aliás, que o sucesso de Lula deve muito a seu intuitivo discurso também estritamente relacionado à vivência do povão. Não por acaso, Lula muito apela para a sua experiência de vida: afinal identifica-se genuinamente à experiência vivida da grande maioria. Por isto também, seu inegável sucesso é quase solitário na Esquerda. É capaz de elegê-lo presidente mas não de lhe permitir formar uma bancada parlamentar pelo menos próxima a alguma sólida maioria com ele politicamente identificada. O povo (o povo mesmo) vota em Lula mas, junto com ele, elege a maioria chantagista corrupta que vai-lhe exigir cargos e “mensalões” em troca de apoio aos seus projetos.
Luciano Huck ou Marcelo Bretas ou ainda Anitta são produtos de grande parcela desta nossa sociedade e não da Globo. A Globo, claro (como o NSDAP no caso alemão), também é produto desta mesma sociedade – aqui, no caso, da sua dimensão capitalista e financeira. Mas diferentemente da sociedade alemã no Entre Guerras, a nossa é uma sociedade na qual a grande maioria da população é funcionalmente analfabeta e cerca de 40% aderiu, nos últimos 30 anos, às seitas evangélicas fundamentalistas. Começando a crescer nos anos 1970, essas seitas já manifestam um claro projeto político unificado de poder e, como confirmam tipos como Bretas, Dallagnol e outros jovens magistrados, lograram penetrar profundamente no Judiciário brasileiro, orientando suas decisões e comportamentos: a crença é a Bíblia, não a Constituição. Até onde, também, essas seitas já são determinantes nas orientações didáticas e pedagógicas das pobres escolas públicas brasileiras? Os discursos de nossos jovens jogadores de futebol, após qualquer partida, delegando à “vontade de Deus” o que deveria ser apenas o resultado positivo ou negativo de suas decisões devido à própria inteligência, competência, treinamento, não estará dizendo nada a nós outros, sobre a (de)formação intelectual que vem recebendo o nosso povo? No Rio de Janeiro, em aliança com milícias e narcoterroristas, essas seitas elegeram Crivella prefeito. Alguém duvida que foram fundamentais, também, na eleição de Dória, em São Paulo? No Congresso nacional e nas casas legislativas estaduais ou municipais, já constituem bancadas fortíssimas que avançam o obscurantista programa “Escola sem partido”. Boa parte da compreensão do que é o Brasil hoje precisará começar entendendo (combativamente) o papel mais ou menos recente das seitas fundamentalistas evangélicas na formação cultural profunda de nossa sociedade. Elas fundamentam as inabaláveis crenças dos Moro e Dallagnol que já estão convictamente destruindo o Brasil.
Naturalmente, nem toda a sociedade está aceitando ou pode aceitar o projeto incivilizado, retrógrado, obscurantista, subalterno no mundo, que nos propõem essas elites nada intelectuais formadas nas últimas décadas (algum dia, historiadores nos dirão como), e que grande parte do lúmpen-precariado apóia. Mas se não quisermos caminhar para o desastre de Weimar, numa repetição da história que não será mera farsa, vai ser necessário preparar-nos para a luta além dos marcos institucionais e dos argumentos da razão. Quando os alemães decentes afinal perceberam o tamanho do tsunami gerado pela aliança (ainda que por um curto mas decisivo período) entre uma elite acadêmica crente num projeto genocida e o lumpensinato mobilizado pelos seus recalques e preconceitos, já era tarde. No Brasil, enquanto Temer cumpre o seu papel de velho Hindenburg, ainda teremos tempo?
Observou Kershaw que o Partido Social-Democrata, então o maior movimento trabalhista da Alemanha ou mesmo da Europa, “fora forçado a um acordo perverso após outro em sua tentativa de sustentar suas tradições legalistas, ao mesmo tempo que esperava evitar o pior. Quando o pior chegou, ele estava mal equipado”. Não se aplicará esta sentença também ao atual PT e outras forças democráticas, incapazes de enxergar as dimensões de uma radical crise social e cultural que se manifesta pelo Brasil a fora, de cima a baixo, de baixo a cima, desde os tiroteios diários nas favelas do Rio ou massacres em presídios até a dominação, por uma corja corrupta, dos Três Poderes em Brasília?
Já está passando a hora de começar a se equipar para enfrentar e evitar o pior…
Prof. Dr. Marcos Dantas – Professor Titular – Escola de Comunicação da UFRJ
Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/noticia/crer-e-destruir-%E2%80%93-tentando-entender-um-retrocesso-historico-por-marcos-dantas