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Democracia, modo de usar. Por Sandra Helena de Souza

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Sandra_Helena_Souza

Há na filosofia moral um problema chamado ‘dilema do prisioneiro’, em que se examina o comportamento racional de dois indivíduos presos porque cometeram um homicídio.

 

Sem condições de prová-lo, embora com fortes indícios, a polícia os interroga em separado para evitar que se combinem e se extraia deles a confissão do crime, em troca de uma premiação. Ocorre que a premiação, uma pena bem abrandada ou perdoada, só é possível se o parceiro não confessar e o que está em jogo é a decisão calculada de cada um em avaliar como se comportará o outro. No caso de dupla confissão, não há ganho, e havendo dupla negação, o ganho máximo: uma pena irrisória por delitos menores.

Formulado por volta de 1950 e a despeito dos questionamentos que possa suscitar para fins de argumentação moral, uma vez que parte de um homicídio e de um suposto pacto entre os assassinos, o objetivo é nobre: a refutação do egoísmo em seu próprio campo, a saber, a aceitação de que sempre devemos buscar maximizar nossas vantagens em todas as situações, levada ao paroxismo.

Kant afirmou que mesmo uma república de demônios ‘dotados de entendimento’ tem de limitar os ‘egos demoníacos’ em torno de um pacto social mínimo.

Tratava-se de mostrar a impossibilidade de universalizar a tese do egoísmo racional, uma vez que, para levar vantagens, o trapaceiro que rompe pactos sempre precisa contar com gente honesta e mesmo que não tanto, a vítima deverá ser crédula. Numa aplicação da tese kantiana, o dilema põe em causa dois ‘demônios’ que têm a difícil tarefa de decidir sob absoluta insegurança levando à conclusão de que se ambos silenciam, ou seja, cooperam entre si, a solução é optimal: numa palavra, o que é melhor para o indivíduo nem sempre é o melhor para si quando considerada a interação com o outro.

Imaginem como isso torna excitantes aulas de ética: demonstramos logicamente que a cooperação é mais vantajosa que a trapaça (embora admitindo que a honestidade só é racional para o indivíduo se ele não for o único, aí será apenas idiota) ao mesmo tempo que abrimos em perspectiva o problema da filosofia política de um ordenamento social formado por indivíduos auto-interessados.

Em artigo de 2004 sob a Operação Mãos Limpas, uma espécie de crônica anunciada da Lava Jato, Moro, defendendo a delação premiada de seus críticos, refere-se a uma situação ‘análoga’ do arquétipo do famoso dilema do prisioneiro: “a estratégia de investigação submetia os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a perspectiva da permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso da manutenção do silêncio, ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão”. Sendo ‘justas e democráticas as leis’(!?) nada a temer de uma operação que usa delatores chantageados, com vazamento e espetacularização midiática para deslegitimar o sistema político de ‘uma democracia vendida’ a favor de um judiciário de ‘ataque’. Entenderam? Usa-se a democracia contra ela mesma e se o resultado de tudo é um Berlusconi, isso é apenas uma ‘limitação da operação’. Os demônios estão rindo da nossa cara.

Sandra Helena de Souza é Professora de Filosofia da Unifor e Membro do Instituto Latino-Americano de Estudos em Direito, Política e Democracia (ILAEDPD)

souza.sandraelena@gmail.com

Artigo publicado originalmente em http://www.opovo.com.br/jornal/dom/2017/04/artigo-democracia-modo-de-usar.html

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