“Devolva meu São João”; ou não. Por Gil Vicente Tavares
Em 2010, a cidade de Jequié passou por polêmicas por conta de sua festa de São João. Primeiramente, porque a prefeitura batizou os festejos daquele ano de “São João, Xangô menino”, homenagem à canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que estaria entre as atrações daquele ano.
Prontamente, evangélicos hostilizaram o tema, por se tratar de uma citação a um orixá. A intolerância e ódio ao próximo e ao diferente, que não siga seus dogmas, sempre me pareceram algo assustador. Pastores famosos perdem mais tempo com a negação e a condenação, do que em pregar o amor, símbolo maior da mítica passagem de Jesus pela terra.
Mas não parou por aí. A população reclamou da falta de atrações mais midiáticas, que poderiam atrair turistas e estariam em maior consonância com o gosto da população local.
O detalhe era que dentre as atrações havia, além de Gilberto Gil em seu auge de homenagem à música nordestina, Dominguinhos, Flávio José, Targino Gondim e Adelmário Coelho, dentre outros. Uma programação incrível, que facilmente me mobilizaria a ir a Jequié no São João.
Agora em 2017, artistas resolveram criar a campanha “Devolva meu São João”, criticando a presença da música sertaneja e afins, que estavam tomando espaço de músicos e bandas tradicionais, mais ligados à tradição e à raiz da festa junina.
Há duas coisas distintas, mas que se conectam, ao final, em torno dessa questão.
Tenho arrepios ao ouvir uma valoração especial ao tradicional e de “de raiz”. O que seria, por exemplo, a música nordestina de raiz? O trio nordestino e aquelas vestimentas imortalizadas por Luiz Gonzaga? Não. A formação sanfona, zabumba e triângulo foi um arranjo que Luiz criou para tocar sua música, assim como suas vestes, inspiradas no barroquismo do cangaço, foram invenção sua, também. Gonzagão, a seu tempo, quebrou com a tradição e com a música de raiz. Assim como a Bossa Nova quebrou a tradição do samba, mas depois virou tradicional e foi quebrada pela Tropicália. Assim, sucessivamente, a música muda, ressignifica, rearranja, reconstrói, cita, desmonta, reinventa, nega, aproxima, mistura, e assim o Brasil consegue ter uma das melhores músicas do mundo.
Se me soa incômodo falar em “de raiz” e tradição, incômodo pra mim, também, é artista brigar com artista. Não houve um movimento que colocasse contra a parede gestores públicos, patrocinadores, imprensa e a população; esses quatro, sim, responsáveis diretos pelo sertanejo estar presente de forma dominante nessas festas.
Há espaço para tudo, e não vejo problema com o sucesso de Wesley Safadão ou Ivete Sangalo, ou qualquer desses artistas que estejam na crista da onda. Essa música mais ligeira, superficial, popular em seu sentido mais direto de atingir o povo em todas as suas classes, existe ao redor do mundo. Claro que ouvir aquelas músicas que passam em canais de videoclipe, cantadas em inglês, com toda aquela produção é mais chique, mesmo com melodias pobres, letras patetas, apelo sexual, machista, violento e com foco estrito no comercial; tem que vender.
Assim julgam também o sertanejo, o pagode, o arrocha. E perde-se um tempo danado com essa intolerância e ódio ao próximo, que parece até que há um evangelismo radical nas posturas. O povo – e povo aqui compreende todas as classes – tem direito de ouvir o que quiser, o que gostar, o que lhe interessar.
A questão não é bater no artista.
Temos um sistema educacional que desprivilegia a leitura e a arte. A educação em casa corrobora mais ainda as trevas em que o Brasil vive, quando se trata da formação de leitores e espectadores. A arte e a cultura são alicerces fundamentais da formação de um país, e o que se lê, o que se assiste, o que se sente, se emociona e se admira é levado para seu comportamento social, político e amoroso.
Isso fica claro na audiência que damos às TVs e ao esvaziamento que damos ao teatros. Fica claro nas altas vendagens de livros de auto-ajuda e no empoeiramento de Machados, Rosas e Ubaldos.
Os gestores públicos não fazem sua parte. Muito pelo contrário. A arte não é levada a sério na formação dos estudantes, e a cultura do evento é uma praga devastadora da nossa sociedade. Concentra-se numa ocasião específica um evento recheado de atrações ao gosto do público, gasta-se milhões e os governantes apenas disponibilizam, na esmagadora maioria das vezes, gratuitamente, o que a população já pagaria para ver. E nada muda. Fica tudo mediocremente estabelecido até o próximo evento.
O próprio Gilberto Gil – pra citar umas das atrações “ruins” de Jequié – disse: “o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”. Cabe aos gestores públicos pensar uma política cultural. Ter metas, ideias e ideais para diversificar, democratizar, dar acesso e ampliar a visão de arte e cultura de um povo. Massacrados pela mídia – são vítimas e algozes, pois se deixam levar sem consciência crítica (e aí entraríamos na desgraça da formação do indivíduo político nesse país) -, o povo vai sendo teleguiado a gostar de determinada arte, sem ter a opção da escolha, da crítica, sem que a imprensa cumpra seu papel de não ser apenas reprodutora do capitalismo selvagem através de um conteúdo predatório e agressivo, direcionado apenas ao ganho.
Já mergulhados nessa péssima formação do indivíduo político brasileiro, empresários investem no lucro fácil e buscam no mais superficial e rasteiramente sedutor o retorno de seu investimento.
Paulinho da Viola, tão associado ao samba de raiz, o samba tradicional – como se seu próprio samba não fosse outro caminho tomado na canção popular, e como se ele não estivesse com os olhos para o futuro -, usa a máxima: “meu tempo é hoje”.
E hoje, como ontem e sempre, é o tempo de mudanças, de influências, misturas, adaptações. Darwin falou muito bem sobre isso, não perderia tempo elucubrando a respeito. Se os artistas querem reclamar sobre a atual situação das festas juninas, que vão aos gestores públicos, imprensá-los contra a parede. Exigir uma responsabilidade pública sobre a gestão da verba para uma festa, mas não só isso. Que se invista noutras artes e músicas o ano inteiro. Quero viajar pra Jequié no São João ver Gilberto Gil, mas também viajar num final de semana de março para ver uma grande peça de teatro, ir à cidade do sol em setembro ver uma excelente coreografia, ir em julho ver uma bela exposição, ou em novembro ver a apresentação de uma orquestra de câmara. Mas para isso é preciso desconcentrar a verba do São João, que apenas disponibiliza um produto comercial, altamente vendável e potente, de graça. Aí, eu acreditaria nessa campanha.
Acreditaria nessa campanha se houvesse uma provocação violenta quanto ao papel da imprensa e da mídia, no Brasil. O quanto há falta de espaço para determinadas culturas e artes, enquanto outras recheiam as telas e páginas com mais do mesmo.
E o investimento privado? Jogar tudo nas costas do erário? Cadê que há mecenas que se preocupem em criar fundações, com centros culturais, com grande incentivo a todas formas de arte mais sofisticadas, mais excluídas, mais massacradas, mais esquecidas, mais experimentais? Há poucas ações nesse sentido, e uma conversa mais séria sobre os rumos do país passa por isso, também, como passa pela formação da população e pelo conteúdo da imprensa e da mídia. Afinal, tudo isso tem a ver com o povo; esse povo que prefere arrocha a Gil, sertanejo a Elba Ramalho. O São João ideal de boa parte das cidades – pergunte ao povo – é o do sertanejo, do arrocha, do pagode, do axé. Os governos, maliciosamente, alimentam esse desejo espontâneo – e, outrossim, imposto – com eventos que supram momentaneamente – olhemos a origem do carnaval, por exemplo – o cansaço e opressão diários.
Se a campanha “Devolva meu São João”, ao invés de entrar em embate com colegas de classe, batesse de frente com governantes, imprensa e mídia, empresários e o próprio povo que opta com antolhos pelo reduzido cardápio que se lhes oferece, deveria começar por mudar o nome. Ninguém tem que devolver nada. As coisas se transformam. Devolver o São João seria voltar a contratar músicos que buscam o “tradicional” e a “raiz”, muitas vezes trazendo um ar de museu, de “à moda antiga”, de olhar para o passado? Seria garantir o cachê desses e deixar de pensar em nossas tradições à luz da contemporaneidade? Estaria tudo resolvido, com o alijamento de tudo que não fosse o que eles acreditam ser o certo e o melhor?
E esse “meu”? Por que devolver o meu, e não o deles? Por que o que é seu merece mais? Por que o que é meu tem que ser contemplado? Quem é esse “eu” do “meu”? Não seria melhor falar em nós?
Muitos dos artistas que encamparam essa campanha trouxeram, eles mesmos, transformações para nossa música e foram importantes em nosso processo cultural, com suas melodias, arranjos, letras. Assim tem que continuar sendo, abrindo espaço a novas gerações que talvez estejam meio sem rumo.
Pois é. Procurar um rumo. Sem uma formação sólida cultural e artística, fica difícil que novos criadores e fruidores achem um rumo entusiasmante para o São João ou o carnaval ou o dia-a-dia em teatros e casas de xou. Há potências, há talentos, há ideias surgindo enriquecendo nossa música. Se o rumo tá fora do prumo, que os mais antigos e experientes deem uma ajuda no leme, para passar o bastão sem que tudo se empobreça.
Se você acha que a programação do São João é pobre, ruim, pasteurizada, descaracterizada, não é batendo no artista que isso pode mudar.
Quem contratou?
Quem pagou?
Quem divulgou e vendeu publicamente a atração para ela se fortalecer?
E por quê?
Por que o povo quer isso. E aí, vai bater boca com o povo?
Você no fundo está dizendo que o povo, os gestores públicos, a imprensa e os empresários são ruins, pobres culturalmente, pasteurizados e descaracterizados.
Escolha bem em quem bater,e pense bem contra quem lutar. Basta olhar o ringue político das redes sociais para se perceber que enquanto nos engalfinhamos aqui embaixo, os donos do poder esticam seus suspensórios e riem de nós. Torram nossos impostos e nossos cérebros oprimindo e mediocrizando a gente.
É uma quadrilha ao som da pior música.
Meninos soltando pipa, de Portinari
Gil Vicente Tavares é Encenador, dramaturgo, compositor e articulista. Doutor em artes cênicas, professor da Escola de Teatro da UFBA e diretor artístico do Teatro NU.
Artigo publicado originalmente em http://www.teatronu.com/devolva-meu-sao-joao-ou-nao/