Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

Do protagonismo do MPF no golpe de Estado, por Sebastião Velasco e Cruz

10 - 13 minutos de leituraModo Leitura
sebastiao-velasco-e-cruz

“(…) Como não precisam cortejar o distinto público, estes não medem palavras. A deposição de Dilma Rousseff não foi feita para possibilitar a correção de rumo necessária à solução de problemas tópicos.

O objetivo perseguido com o golpe é a uma mudança constitucional no sentido mais forte do termo. Trata-se de alterar a matriz sócio-política do país, refundar o Brasil, como nação burguesa plenamente assumida, livre de culpa e desembaraçada de quimeras igualitaristas de justiça social.

Nesse sentido, o programa do golpe institucional de 2016 está mais próximo do fundamentalismo de mercado que desgraçou a Argentina nos anos 1970s e 1990 do que do desenvolvimentismo conservador que animava os militares brasileiros quando assumiram o poder em 1964.

A segunda particularidade da ruptura institucional presente tem a ver com os atores que ela mobiliza. Como no passado, o papel principal é desempenhado pela liga grande capital (com predominância rentista) e grande mídia, com seus porta-vozes no campo político-partidário. Podemos toma-la como uma constante em nossa história golpista.

Agora, alguns personagens saem de cena – ou se mantém discretamente nos bastidores — enquanto outros invadem o palco com ímpeto irrefreável.

Entre os primeiros, de longe, o mais importante é o estamento militar. Protagonistas dos eventos que inauguraram nossa história republicana, os militares mantiveram-se no epicentro de todas as crises políticas vividas no Brasil no século passado, com a exceção notável daquela que culminou no impeachment de Collor de Mello.

Mas esse episódio foi muito curto e desenrolou-se sob um fundo consensual – logo nas primeiras semanas depois das denúncias que o atingiram, a grande imprensa já pedia a renúncia de Collor em prol da preservação de suas reformas. A deposição de Dilma Rousseff é outra história. Ele se dá quase dois anos depois de lançado o grito de guerra da oposição, mal proclamados os resultados das urnas; evolve no contexto de uma crise econômica profunda, sem par no Brasil moderno; é marcada por tensões inéditas nas relações interinstitucionais, e polariza o país com uma intensidade raramente vista em nossa história.

Mesmo na presença desses elementos — todos  muito preocupantes na ótica militar – e mesmo vendo alguns de seus projetos mais caros serem mortalmente atingidos pelos desdobramentos da crise nacional, a caserna mantém-se silente. Não seria o caso indagar aqui as razões desse fato, e menos ainda o de arriscar prognósticos.  Mas não há como ignorá-lo.

Quanto aos segundos, o destaque vai para segmentos do Judiciário e do Ministério Público Federal.

O protagonismo do Judiciário – em particular do seu órgão superior – na crise não surpreende, tendo em vista a tendência de judicialização dos conflitos políticos e sociais, que o Brasil compartilha com muitos outros países e que tem dado azo a uma literatura profusa, se bem que muito desigual. O que chama a atenção em nosso caso é a consequência previsível desse processo, quando exacerbado: a politização da Justiça, com o seu corolário, a perda crescente de autonomia institucional. Vimos isso em inúmeras decisões do STF – contestáveis e publicamente contestadas –; no comportamento extravagante de alguns de seus membros, que violam as regras de decoro inerentes ao cargo exercido, tomando atitudes mais apropriadas a políticos de carreira ou agitadores de massa; voltamos a ver ainda agora com o espetáculo acintosamente concluído com a nomeação de Alexandre Moraes para a cadeira vacante desde a morte por demais estranha de Teori Zavaski.

A questão do Ministério Público é muito mais complicada. O ponto de partida para analisa-la está contida nesta passagem, extraída de um artigo publicado algum tempo atrás pela revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal.  Comentando assertiva de jurista espanhol que apresenta o caso brasileiro como exemplo mais acabado de “Ministerio Público, como órgano del Estado, con entidad propia e independiente”, a autora do estudo observa:

“Muito mais longe poderia ter ido o jurista ibérico se tivesse considerado o posicionamento da Constituição Brasileira de 1988 no tocante à instituição em pauta. …Nota-se, pois, que o ordenamento jurídico pátrio não seguiu a tendência de outras Constituições que incluem o Ministério Público dentro da esfera de um dos três Poderes.”

Esse o dado essencial: o Ministério Público brasileiro goza de uma autonomia ímpar, o que a permite a autora do estudo citado apresenta-lo como “exemplo aos constitucionalistas contemporâneos”, sem deixar de insistir na necessidade da luta por poderes adicionais.

Esse estado de coisas é resultado de um processo complexo, cujos contornos estão bem traçados em alguns estudos especializados. O elemento essencial da história que eles nos contam é a integração do Ministério Público na frente democrática que presidiu o fim do regime autoritário.  Na Constituinte, a aliança entre o Ministério Público e a ala à esquerda dessa frente está claramente expressa na distribuição dos votos na Subcomissão do Poder Judiciário – presidida, não por acaso, pelo deputado do PT, Plínio de Arruda Sampaio — e nas votações seguintes – na Comissão de Sistematização e no Plenário da Assembleia. O cotejo dos textos aprovados em cada uma dessas instâncias mostra o peso do bloco conservador na atenuação das conquistas obtidas inicialmente pela Ministério Público. Não surpreende, pois, que ao fazer um balanço da batalha da Constituinte um membro destacado da corporação tenha qualificado de “tímidos” os avanços alcançados, insistindo na necessidade de abolir a nomeação dos Procuradores Gerais — da República e dos estados — pelos chefes dos Executivos respectivos, como requisito para garantir a independência e a autonomia do órgão.

Na hierarquia dos temas que contempla – ênfase nos direitos difusos – nas referências que mobiliza, e em sua retórica o texto em causa ilustra à perfeição os resultados das análises antes citadas, como se pode ver na passagem abaixo:

“… sobreleva-se o papel decisivo que o Ministério Público deve cumprir como instituição constitucionalmente incumbida da defesa do regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais. E esse decisivo papel deve ser compreendido … também pelos grupos sociais comprometidos com a construção da democracia, propiciando uma ação articulada, conjunta e eficaz, na guerra de posição que se trava na sociedade civil, na disputa pela hegemonia.”

A linguagem empregada remete a Gramsci, que aparece já na epígrafe do livro, aliás. Inspirado nos ensinamentos do teórico italiano o autor fecha o argumento com uma conclusão de ordem prática:

“A correlação das forças sociais antagônicas é fator determinante do sucesso da empreitada jurídica… Pressupõe um projeto estratégico e a definição de tática, o que implica:

-articulação do Ministério Público com os demais órgãos da sociedade civil que comungam os mesmos objetivos;

-senso de oportunidade para a mobilização e o desencadeamento da campanha de lutas e das ações políticas e jurídicas dela decorrentes.”

É difícil saber o que Gramsci teria pensado do uso feito de seus ensinamentos pelo discípulo improvável. Mas provavelmente não se surpreenderia com o final da história. Os “órgãos da sociedade civil” que o estrategista do Ministério Público tinha em mente eram os sindicatos e as organizações do movimento social. Como o Ministério Público é um ramo da burocracia estatal — e não o “novo príncipe” que habitava a imaginação do mestre — as alianças que acabou por fazer na “sociedade civil” foi com as “forças sociais antagônicas” situadas do outro lado.

Não é bem assim. Além de sua vinculação com o Estado, o Ministério Público brasileiro tem características organizacionais que o colocam nas antípodas do novo príncipe, pensado por Gramsci com ajuda de metáforas militares: trata-se de um órgão apenas administrativamente hierarquizado, que reserva a cada um de seus membros plena autonomia funcional.

As alianças externas, nesse contexto, são estabelecidas não pela instituição em seu conjunto, mas por segmentos – e mesmo membros individuais – dela.

É por aí que podemos entender as relações de poder no interior do Ministério Público e a mudança radical em suas prioridades: marginalização dos temas caros aos movimentos sociais — e dos profissionais a eles dedicados – e ascensão meteórica do tema da corrupção, da lavagem do dinheiro e do crime organizado.

Eles estão no cerne da crise política presente, como estiveram, de resto, em tantas crises passadas. Mas entre esses momentos há uma diferença notável. Até o final do século passado, a corrupção foi um ingrediente importante da política doméstica. Foi alvo de campanhas moralizantes e em seu nome governos foram abatidos, como o de Vargas em 1954. Mas os atores que as promoviam eram nativos e seus móveis se explicavam pelas disputas de poder no espaço nacional. Agora, não. Como vimos na primeira parte deste artigo, com o fim da Guerra Fria o tema da corrupção converteu-se, sob inspiração norte-americana, em objeto de um regime internacional. Desde então multiplicam-se acordos multilaterais e bilaterais sobre a matéria, e consolidam-se relações de estreita cooperação entre os órgãos especializados do Brasil e de outros países relevantes, em particular com aqueles dos Estados Unidos.

Nas condições de crise em que estamos vivendo, esse fato confere a tais organismos um grau de autonomia extrema — que nos força a pensar neles como atores, no sentido forte do termo, dotados de objetivos próprios e capazes de decidir, a cada momento, sobre a oportunidade dos movimentos que fazem. Levar em consideração esse fato é indispensável para entender a guerra sem quartel a que assistimos hoje entre o pessoal político do novo regime e as forças reunidas em torno da Lava Jato.

***

Com esses elementos à mão podemos responder de forma mais específica às perguntas formuladas no início deste tópico.

Onde estamos?

Em um ponto crítico do processo do golpe — no qual as decisões sobre as partes centrais de seu programa ainda estão pendentes e as tensões entre os diferentes integrantes da coalizão golpista atingem o ápice.

Para onde vamos?

A resposta a esta pergunta será breve. Se o Brasil se resumisse à política institucional iríamos de mal a pior. No plano econômico, parece se desenhar uma recuperação tímida insuficiente para tirar a economia do rés do chão, mas suficiente para alimentar as expectativas do governo ilegítimo de Temer de colher loros em 2018, se chegar até lá.

De todo modo, esta é sua aposta. Ela passa obrigatoriamente pela demonstração de força congressual para entregar a mercadoria vendida, quer dizer, aprovar as reformas reclamadas pelo “mercado”.  A dúvida que paira na mente de todos é como isso será possível sob o fogo cerrado a que está submetido pelo zelo punitivo dos promotores da falsa campanha de purificação dos costumes nacionais. A ideia de contê-lo nos limites preestabelecidos (PT e adjacências) faz todo sentido para o governo e seus aliados. O problema é que os movimentos realizados para a colocar em prática são sistematicamente seguidos de outros tantos, de seus parceiros adversários, visando neutralizá-los.

O resultado desse jogo indecoroso continua indefinido, sendo difícil dizer qual das alternativas que ele contempla seria a pior.

Mas o Brasil é muito mais do que a política institucional. A derrota sofrida com a deposição de Dilma foi grave, mas não definitiva. Os perdedores podemos estar dispersos e divididos. Mas o passado faz parte do presente sob a forma de memória, e ele está do nosso lado.  O futuro está em aberto: ele não se resume na disjuntiva inaceitável proposta pelos autores do golpe.

4) Opções estratégicas.

De certa forma, a afirmativa precedente enuncia, de forma condensada, a resposta à última questão a ser tratada neste ensaio.

“Escolhas que não podemos evitar”. Para a esquerda e para o conjunto do campo democrático, o problema que se apresenta nesta conjuntura fluida é operar no contexto criado pelo golpe como uma realidade dada, objeto de ação política rotineira, ou rejeitar esse estado de coisas, denunciar sua ilegitimidade, e deixar claro que ele será abolido assim que ocasião chegar.  Essa questão não está projetada num futuro incerto, nem é uma criação da mente imaginativa de quem quer que seja. Ela esteve presente desde o primeiro momento, manifestou-se nitidamente na polêmica a respeito da eleição para as presidências da Câmara e do Senado, e deverá se colocar com força em 2018, se o calendário da eleição presidencial for respeitado.

A esta altura, desnecessário é dizer qual a inclinação do autor destas páginas. Mas isso é irrelevante. Essa escolha é fundamental, mas ela indica apenas uma disposição de ânimo – nada informando sobre como devemos lidar com os problemas práticos que surgem no dia a dia da política e na vida de cada um de nós. Enquanto estiver restrita à esfera privada, ou enquanto alimentar um discurso intransigente, mas impotente, ela pode conviver confortavelmente com a ordem de coisas que pretende negar.

Para ser mais do que um gesto intransitivo, a rejeição da ordem que os golpistas se esforçam para implantar no Brasil precisa se expressar na tomada de posição sobre questões concretas.

Hoje, com o governo Temer em deliquescência e a coalizão golpista em farrapos, a questão posta pela conjuntura a todos os atores é a da sucessão presidencial — a ocorrer em 2018, ou antes disso, num caso ou em outro por eleição popular.

É nesse contexto que o passado incrustado no presente tira o sono dos fautores do golpe. Eles sabem hoje, como souberam sempre, que não têm como enfrentar o nome que está plantado na memória coletiva dos setores majoritários da população brasileira. Daí porque a exclusão de Luis Inácio Lula da Silva da competição política converteu-se para eles em um imperativo categórico.

Mas a escolha estratégica que eles fazem simplifica sobremaneira a nossa própria. Rejeitar consequentemente a ordem golpista é afirmar o direito do povo de eleger livremente seu presidente, e repudiar todo e qualquer artifício usado para amputá-lo.

(…)

https://soundcloud.com/user-778640883/sebastiao-velasco-ordem-ou-desordem-onde-estamos-para-onde-vamos-escolhas-que-nao-podemos-evitar

Transcrição por José Carlos Lima

Antonio Cruz / Agência Brasil

Artigo publicado em http://jornalggn.com.br/blog/jose-carlos-lima/do-protagonismo-do-mpf-no-golpe-de-estado-por-sebastiao-velasco-e-cruz

Compartilhar:

Mais lidas