Aldeia Nagô
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Dois pesos…O Estadão por Maria Rita Kehl

4 - 6 minutos de leituraModo Leitura

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores
que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão
que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas
amanhã está acirrado.


Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o
vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas,
transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar
disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta
de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos
últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o
jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do
interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as
inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é
familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas
sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os
nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados
ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos
destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente
em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não
qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a
vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego
preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que
ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram
parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava,
capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria?
Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário
oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela
Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e
aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que
metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os
benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de
mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior
do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os
moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é
estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa,
como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os
dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa,
somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já
conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o
que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa
pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A
Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes
de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela
consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da
internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam
contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho
e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite
trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família,
que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado
de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso
ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado
começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa
a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação
primitiva de democracia”.

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os
brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para
votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio
Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado
em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos
eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou
como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava
com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60%
de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco
republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da
mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as
políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não
vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos
que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se
consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

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