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É O Estado, Estúpido! Sobre Estado e a conjuntura das lutas de classes no Brasil. Por Emir Sader

7 - 10 minutos de leituraModo Leitura

O clima político brasileiro continua agitado, com a reiteração das polarizações
produzidas desde as denuncias de 2005 sobre o que a imprensa convencionou chamar
de "mensalão". De um lado, os partidos de oposição, com seu núcleo coesionador –
PSDB e DEM – acompanhados de partidos aliados, como o PPS e tendo no bloco
monopolista da grande mídia privada seu carro-chefe  -, de outro o
governo e expressões da mídia alternativa.


           
Pela tensão, pela violência dos ataques, pela reiteração das acusações,
poderia parecer que o país vive um clima de forte polarização social e política,
com dois projetos de sociedade em oposição frontal. Mas quando se olha para os
fatores estruturais, constatamos que existe um modelo econômico consensual entre
as grandes forças políticas – as mesmas que se envolvem diretamente nesses
embates -, políticas sociais que não são questionadas, porque representam
inquestionavelmente uma melhoria de vida da massa pobre do país e que incentiva
a expansão do mercado interno. Enquanto isso, o país vive um período de poucas
convulsões sociais, como se a energia se perdesse pelas beiradas do caldeirão
social, canalizada para a violência cotidiana e não para grandes lutas
populares.

                        Então de onde vem e
a que corresponde essa virulência da oposição ao governo? Por que até mesmo uma
parte significativa do grande empresariado, atendido pelo modelo econômico, se
soma à campanha opositora? Por que a afirmação de setores radicalizados da
esquerda de que se trata de um governo neoliberal não consegue dar conta do
enfrentamento central do campo político em todo o período político atual? O que
está em jogo? O que se disputa, além de cargos
eleitorais?

                        O neoliberalismo
reconstruiu o campo político, concentrando todas as energias negativas no Estado
– responsável pela estagnação econômica, pela falta de dinamismo, pelo confisco
dos recursos dos indivíduos, pela ineficácia nas políticas sociais, etc., etc. O
Estado mínimo deveria concentrar seus recursos e esforços no incentivo à
expansão do capital que, nos seus desdobramentos – dado o dinamismo e o
protagonismo central que passou a ser atribuído às empresas, uma forma de
designar ao mercado – produziria crescimento econômico, modernização
tecnológica, diminuição da arrecadação tributária, expansão do mercado externo,
geração de empregos, aumento da capacidade de consumo, etc. etc. Como já se
disse tantas vezes, um  Estado mínimo para a grande maioria – que
depende de políticas sociais – e um Estado máximo para o capital, com a
privatização dos lucros e, quando houver prejuízos, sua
socialização.

                        O que incomoda
centralmente à oposição, refletido nas manchetes e campanhas da imprensa
opositora, presente nos seus colunistas, soldados das causas do bloco direitista
de oposição? A alta taxa de juros? A lentidão na reforma agrária? O
incentivo aos agro-negócios e o uso extensivo dos trangênicos?   A
injusta tributação, que concentra renda, ao invés de redistribuir? A repressão
às rádios comunitárias? A falta de demarcação das terras indígenas? A não
abertura dos arquivos da ditadura?

                        Não. O 
foco reiterado da oposição está nos "gastos excessivos do governo", na
contratação de mais funcionários públicos, na carga tributária, no que chamam de
"aparelhamento do Estado" – que na realidade se trata da designação por critério
político no preenchimento de cargos -,  as normas que disciplinam
atividades econômicas, etc. Em suma, tudo o que seja fortalecimento do papel do
Estado, seja pelo aumento de seus funcionários, pela sua melhor remuneração,
pelo combate à terceirização e formalização dos contratos, pelo incentivo ao
consumo popular, pelo papel regulador do Estado.

                        A "livre
circulação do capital" segue sendo a utopia da direita
. Que o capital
circule e a sociedade se povoará de felicidades! Que o Estado seja reduzido à
sua mínima expressão: sem impostos, sem funcionários, sem leis, sem instituições
políticas, sem partidos, que as eleições sejam o mais parecido possível a um
shopping-center e os candidatos a vendedores de mercadorias, a ideologia
reduzida a marketing, o cidadão transformado em consumidor, os direitos em bens
negociáveis na compra e venda, a sociedade identificada com o
mercado.

                        O que está em
disputa – daí o tom virulento, pela importância que segue tendo – é o Estado, o
aparato de Estado, que deveria continuar se debilitando, como aconteceu em toda
a década anterior. Que siga a privatização, chegando a hora da Petrobrás, do
Banco do Brasil, da Eletrobrás, da Caixa Econômica Federal. Que o Estado siga
servindo única e exclusivamente aos interesses das grandes corporações privadas
– da indústria, dos bancos, da terra, da mídia, do
comércio.

                        A plataforma da
direita tem, como primeiro item, a diminuição dos impostos, base econômica do
Estado. Daí a campanha contra a CPMF, contra o "inchamento" do aparelho de
Estado, contra as normas estatais – que atrasariam, por exemplo, com as normas
ambientais, a libertação de licenças de investimentos, contra os aumentos de
salários dos servidores públicos. Pela independência do Banco Central, pelo
superávit fiscal.

                        Menos Estado, em
ultima instância, porque o Estado organiza a cidadãos, que são sujeitos de
direitos. Menos Estado e mais mercado, que organiza a consumidores, medidos não
por direitos – que não são reconhecidos pelo mercado -, mas pela capacidade de
consumo.

                        Umas classes
dominantes que sempre detiveram poder sobre o  Estado, ressentem
não poder fazê-lo a seu bel prazer. Na última vez que haviam perdido o controle
sobre o aparelho de Estado – no governo Jango, de 1961 a 1964, há
quase meio século – se puseram imediatamente a preparar o golpe militar, com o
apoio desses mesmos órgãos de imprensa – Folha de São Paulo, Estadão, Globo,
entre outros. Recuperaram o poder sobre o Estado, que foi militarizado e se
colocou completamente à disposição do grande empresariado privado nacional e
estrangeiro.

                        Conseguiram
transitar de forma impune à democracia liberal, tanto militares, quanto
empresários, incluindo os órgãos da imprensa que haviam pregado o golpe militar
e apoiado a ditadura. Encontraram em Collor e em FHC seus novos heróis, este,
quando afirmou o que acreditavam fosse uma frase definitiva: o sociólogo das
elites brancas dos jardins paulistas disse que ia "virar a página de
getulhismo", conclamando à vingança tardia de 1932. Fizeram o que bem
entenderam, se apropriaram de várias das maiores empresas estatais brasileiras a
preço de banana – saneadas pelo Bndes, que ao mesmo tempo lhes emprestava a
juros baixos para comprar as empresas. Puderam ter mão de obra precária,
financiamentos generosos, chegaram a mudar o nome da Petrobrás para Petrobrax,
preparando-a para se tornar empresa "global" e
privatizá-la.

                        Acostumadas a usar o
Estado  como "comitê executivo das classes dominantes" – conforme a
expressão de Marx no Manifesto Comunista – acusam o golpe de perder esse
controle absoluto. Seguem ocupando espaços determinantes no aparato de Estado –
a começar pelo estratégico Banco Central -, além de serem contemplados por
créditos fáceis e incentivos amplos, mas para quem sentia o Estado como seu
território, para nomear a quem quisessem, privatizar o que desejassem, acusam o
golpe e se tornam raivosamente e totalitariamente opositores furibundos. Não
perdoam aos que os derrotaram duas vezes, não importa que se vingam ao ver
políticas suas reproduzidas no governo que os derrotou. Não lhes
basta.

        A
campanha de denuncias morais vai na mesma direção de criminalizar o Estado,
quando os maiores escândalos contemporâneos são protagonizados por empresas
privadas, entre elas os bancos. Não importa o que seja, como seja, são os
neo-conservadores no Brasil, defensores do mercado contra o Estado – o
verdadeiro tema  de disputa, cuja importância explica a virulência
das agressões opositoras, na sua ânsia de recuperar o que consideram seu, por
definição – o Estado brasileiro.

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