Aldeia Nagô
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Em defesa dos Territórios da Cidadania por Ladislau Dowbor

7 - 10 minutos de leituraModo Leitura
Política que favorece os pobres sempre renderá votos, pois os
pobres são pobres, mas não burros. E são muitos, efeito indiscutível de séculos
de políticas de direita. Ao tentar bloquear um programa que abre portas para um
processo modernizador inclusivo, a oposição a Lula dá um tiro no pé


Às vezes a gente precisa desabafar um pouco. Escutando entrevistas
na CBN, ouvi um desabafo indignado (no sentido parlamentar da palavra), de um
deputado dizendo-se escandalizado com o programa Territórios da Cidadania. Como
é dinheiro para as regiões mais pobres do país, evidentemente trata-se de uma
medida eleitoreira, de uma autêntica compra de votos, raciocina ele. Há quem
queira declarar o programa inconstitucional.

A armadilha que prende os pobres é impressionante. Eles votam. E
como são muitos, o que se fizer em favor de seus direitos rende votos. Logo,
raciocinam alguns, qualquer medida que favoreça os pobres constitui demagogia,
autêntica compra de votos. Ah, se os pobres não pudessem votar… Considerando
que a desigualdade é de longe o principal problema do país, tentar travar
políticas que a reduzam não é oposição, é sabotagem.

O programa Territórios da Cidadania destina 9,3 bilhões de reais
(valor próximo do valor do Bolsa-Família) a 958 municípios situados nas regiões
mais pobres do país. Vem sendo preparado desde o início da primeira gestão de
Lula, através de identificação de territórios a serem privilegiados, no quadro
de uma metodologia desenvolvida pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário
(MDA). A seleção envolveu critérios como baixo IDH, e agrupou os territórios
segundo o sentimento de identidade efetivamente existente nas comunidades
interessadas. Assim uma bacia hidrográfica pode, por exemplo, constituir um
“território” mais significativo do que um município isolado. Isto favorece a
apropriação organizada dos aportes pelas comunidades. Foram alguns anos de
trabalho.

Paralelamente, e mais modestamente, desenvolveu-se uma pesquisa
nacional, coordenada por Paulo Vannuchi, Pedro Paulo Martone Branco, Márcio
Pochmann, Juarez de Paula, Silvio Caccia Bava e eu mesmo. Agentes econômicos e
sociais locais (pequenas empresas, ONGs, sindicatos, gerentes de banco,
prefeitos, pesquisadores) foram consultados, para identificar medidas capazes de
gerar um ambiente de dinamização do desenvolvimento local. Partindo da
diferenciação de Milton Santos entre o circuito superior e o inferior da
economia, fomos perguntar ao andar de baixo o que seria bom para ele se
apropriar do seu próprio desenvolvimento. Dezenas de organizações como o Sebrae,
Cepam, Ibam, Instituto Pólis etc. participaram.

O programa prevê apoio tecnológico e institucional; sistemas de
informação e comunicação; geração de emprego e renda; programas ambientais. O
que falta ao pobre não é iniciativa, é oportunidade

O resultado foram 89 propostas descritas num documento-síntese,
entregue ao presidente Lula e amplamente divulgado, nos principais foros de
discussão sobre o desenvolvimento local. O documento, com o título “Política
Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local” está disponível, entre outros, no
meu site (http://dowbor.org/). A linha geral do
documento reflete a demanda: no plano local, além do apoio financeiro, são
necessários apoio tecnológico, apoio institucional, sistemas locais de
informação e de comunicação, programas de capacitação, programas de geração de
emprego e renda e programas ambientais. Em outros termos, necessitamos de um
programa integrado de apoio. O que falta ao pobre não é iniciativa, é
oportunidade, e isto se organiza. Aliás, a pesquisa nos familiarizou com a
riqueza de sistemas de apoio ao pequeno produtor e ao desenvolvimento local que
existe em outros países. O MDA também participou do projeto.

É fácil dizer que se trata da compra de votos. O programa tem
prioridades, em particular o saneamento básico. E a aplicação passa pela
constituição de conselhos locais destinados a gerir os recursos. É um eterno
problema: os municípios têm capacidade de geri-los? Trabalho há anos com o
desenvolvimento local — e com pessoas e instituições que compreenderam que a
pobreza não é apenas um problema de distribuição, mas sobretudo um problema mais
amplo de inclusão produtiva. Já parei de me colocar a questão filosófica do ovo
e da galinha. Se não houver recursos, ninguém aprenderá a administrá-los. Isto
vale inclusive para as bobagens que escrevem os que se opõem ao Bolsa-Família,
dilema semelhante, mas que remonta aos peixes: na realidade, ninguém aprende a
pescar com a barriga vazia.

O importante é fazer os recursos chegarem. E igualmente
importante, assegurar que junto com eles, cheguem políticas mais amplas de
apoio. Lembro-me de ter feito muitas vezes, em outros tempos, sugestões em
Brasília, para que fossem destinados recursos à base da pirâmide social, pois
não só com soja e automóvel se faz desenvolvimento. Eram rechaçadas com um
argumento definitivo: "eles não sabem administrar, vai haver corrupção". Eu
ficava comovido com as preocupações de Brasília em impedir a corrupção dos
pobres.

A oposição ao programa Territórios da Cidadania é uma besteira
monumental. A pressão não deveria buscar o travamento do programa, como estão
tentando pessoas que têm uma visão curiosa do que é ser “democrata”. Mas, ao
contrário, a ampliação do mesmo — para assegurar que haja apoio institucional,
capacitação, informação e outras medidas que permitam que o processo seja
apropriado de maneira criativa em cada localidade. Esta apropriação, ou
empoderamento como tem sido chamado, é essencial. Trata-se de uma mudança de
cultura política, da compreensão de que o desenvolvimento não se espera, se
faz.

As ONGs são fundamentais para a apropriação das políticas pelos
interessados. Também aqui, ouvem-se vozes indignadas: não estaria muito melhor
gerido o recurso na mão de uma empreiteira?

Aprendemos penosamente, nas últimas décadas, que sem recursos não
se faz nada; mas também que programas de pára-quedas, respondendo apenas à
lógica da oferta e não da demanda, são insuficientes. As organizações da
sociedade civil têm sido fundamentais nesta apropriação das políticas pelos
próprios interessados, como se vê, por exemplo, no sucesso do programa de
cisternas da ASA ou da Pastoral da Criança. Naturalmente, também aqui ouvem-se
vozes indignadas (sempre no sentido parlamentar) querendo uma CPI correspondente
para investigar ONGs: não estaria muito melhor gerido o recurso na mão de uma
empreiteira?

É um jogo de faz-de-conta. Fiz avaliações de políticas deste tipo
para numerosos países, a serviços das Nações Unidas. Aprendi a separar as contas
do faz-de-conta. Não faço a minha avaliação pelo volume de discursos
parlamentares, e sim por conversas com o primeiro e segundo escalão técnico, que
são os que dirigem os projetos, que carregam o piano, com pouco tempo para
discursos. Tiram freqüentemente leite de pedra, pois a máquina administrativa
herdada não foi feita para ter agilidade na prestação de serviços, e sim para
administrar privilégios. Raramente aparece na imprensa a avaliação concreta dos
projetos e programas. As indignações parlamentares são muito mais coloridas, e
fazer contas é mais complicado.

Por outro lado, dei-me ao trabalho de ler a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) divulgada há poucos meses. No conjunto, os
resultados são extremamente, e inegavelmente, positivos. Positivos num mar de
atraso; atraso que nos reduziu à situação da nação considerada modelo de
desigualdade, padrão a ser evitado (avoid Brazilianization,
comenta-se nos organismos internacionais). O balanço simplificado dos números
pode ser num artigo anterior para Le Monde Diplomatique Brasil (E publicado aqui no www.aldeianago.com.br, em artigos) . Apresentar resultados positivos,
segundo uma minha aluna, é suspeito: eu devo ser amigo do Lula. O argumento é
curioso: apresentar números negativos é mais objetivo?

Aliás, permitam-me deixar aflorar o economista que sou: se
fizermos um zoom e olharmos a grande imagem, o fato de termos
100 milhões de pessoas que mal participam da nossa economia – mais certo seria
dizer que em torno dela gravitam – aponta claramente para os rumos de
desenvolvimento: dinheiro no andar de baixo não é aplicado em mecanismos
financeiros nem em viagens internacionais. Transforma-se em demanda de bens
simples e úteis, o que estimula o mercado interno, o que por sua vez gera
pequenos negócios e intensifica os grandes, promovendo emprego e gerando mais
demanda. Este círculo virtuoso já começou. Pequeno, incipiente, mas já começou.
Vale a pena preservá-lo, ampliá-lo. E se der certo, será bom para todos.

Política que favorece os pobres sempre renderá votos, pois os
pobres são pobres, mas não burros. E são muitos, efeito indiscutível de séculos
de política de direita. Uma oposição que queira travar estas políticas acaba
dando um tiro no próprio pé. O país está maduro para um processo modernizador
inclusivo. Tentar impedi-lo para quê? Oposição é ótimo: pressionem para que se
faça mais.

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