Essa é Pra Tocar no Rádio. Por Jorge Alfredo Guimarães
Eu estava na casa de Dedé e Caetano Veloso quando apareceram, como se caídos do céu, Gilberto Gil e Jorge Ben. Ambos com seus violões! Não era uma cena comum; principalmente a presença de Jorge Ben! Eles queriam mostrar pra Caetano, em primeira mão, o som que estavam fazendo e queriam gravar em disco! Pois bem; sentaram-se ambos nos enormes almofadões da casa de Ondina, e sem muita conversa começaram a tocar!
Não foram tantas músicas e quase todas eu já conhecia.
O que impressionava era a duração de cada uma delas e os improvisos inimagináveis e o swingue inigualável que os dois grandes músicos empreendiam para cada uma das canções.
Essa é Pra Tocar no Rádio, Filhos de Ghandi, Jurubeba, Nêga,
Meu Glorioso São Cristovão,
Morre o Burro, Fica o Homem, Taj Mahal
Quem Mandou / Pé na Estrada.
Era uma loucura! Cada uma das músicas duravam, sei lá, 20, 25 minutos… kkk E os caras não paravam! Já perto do dia amanhecer alguém apareceu para busca-los e levá-los pro aeroporto. Iam pro Rio de Janeiro gravar mais ou menos daquele jeito essas canções. Não lembro bem que horas começou aquele conserto inusitado, mas creio que era ainda no comecinho da noite. Houve alguns intervalos, provavelmente. No entanto, eu só consigo lembrar deles tocando juntos, cantando e improvisando. Quando saiu o LP duplo, (1975) Gil, Jorge (Ogum, Xangô), era como se naquela sala alguém tivesse colocado microfones escondidos e gravado toda aquela beleza. Nunca vi nada igual na vida!
MAIS SOBRE O ÁLBUM;
Lançado em 1975, Gil, Jorge (Ogum, Xangô) é, seguramente, dos mais anárquicos álbuns da música popular feita nos anos 1970. Tal valor pode ser sustentado por dois fortes argumentos:
1) Trata-se de um disco duplo, cujo primeiro LP, por exemplo, tem apenas duas faixas. As quatro faces da bolacha somam quase 1′ 20″, composta de versões de composições de Gil e Jorge, com durações que vão de 6 a mais de 14 minutos!
2) O álbum é repleto de grandes canções, que poderiam ter enorme apelo comercial, mas justamente pela extensão dos registros Gil , Jorge acabou se tornando um fiasco de vendas. Num período de ditadura de canções com, no máximo, três minutos, que rádio ou locutor tocaria uma faixa com 14 minutos? Ou, melhor, quanto custaria o “jabá” para fazer com que tal música explodisse no dial e integrasse as paradas de sucesso? O triplo, o quádruplo?!
Lançado pela Philips, o registro foi feito muito mais pelo propósito de celebrar a relevância dos dois artistas do que por mera expectativa comercial da gravadora. No mesmo ano, Gil lançava o primeiro capítulo da trilogia Refazenda, Refavela e Realce. Jorge, que havia acabado de lançar a obra-prima A Tábua de Esmeralda, concluía o não menos inspirado Solta o Pavão.
Quando entraram em estúdio para, em uma noite, registrar Gil , Jorge, tiveram passe livre para fazer dele o que bem entendessem. Tanto que deram ao disco aspecto libertário, desde a escolha de não definir arranjos prévios até a decisão de elencar banda das mais enxutas, fechando um quarteto com o grande percussionista Djalma Corrêa e o contrabaixista Wagner Dias.
Em julho de 2009, em reportagem em que relembrou 40 anos de sua carreira a partir de um momento divisor – sua expulsão do País pelos militares e o exílio em Londres –, Gil, a propósito de Gil , Jorge, confidenciou a este repórter: “Tivemos passe livre. Jorge é muito audacioso, embora possa não parecer, pelo conjunto das coisas e do comportamento dele, do modo como ele reage ao mundo. Não parece, mas, na coisa artística, na realização musical, ele é muito arrojado, muito solto e livre. Ele é um bluesman, como se fosse um daqueles americanos libertários e fortes. Quem conduziu o disco para aquela situação foi Jorge. Lembro muito bem de um momento em que tínhamos preparado uma canção dele pra gravar, nós ali naquele papo ‘vamos ensaiar a tonalidade’, começamos, ‘tá gravando!’, ele ordenou a introdução, mas entrou em outra música, entrou em Morre o Burro, Fica o Homem, que não era aquela que a gente iria gravar. Fui seguindo ele, fomos todos seguindo Jorge, e ficou assim mesmo. Pra você perceber o grau de liberdade, improvisação e descontração das sessões. É um disco muito celebrado e igualmente querido por nós. Um disco que nos marcou muito, a ponto de vez em quando falarmos em reeditá-lo para fazermos um reencontro. Tenho muita vontade e ele também. É possível que ainda aconteça.” (quatro anos depois, o tão esperado reencontro, infelizmente, ainda não aconteceu).
Voltemos então à história de Gil , Jorge, cuja gênese é contada, a seguir, por aquele que era chamado por Jorge, o “Babulina”, de “Chefe Patropi”, o sírio André Midani, um dos mais influentes executivos da indústria fonográfica do País nos últimos 50 anos, em relato que está publicado na sua autobiografia Música, Ídolos e Poder: do vinil ao download. Lançado, em 2008, pela editora Nova Fronteira, infelizmente, o livro é dos títulos que estão fora de circulação por conta de processos judiciais abertos por parentes de personagens.
Jorge Alfredo Guimarães é cantor, compositor e cineasta baiano