Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, por Fábio de Oliveira Ribeiro
Num artigo primoroso reproduzido no GGN, Jânio de Freitas disse: Executivo, Legislativo e Judiciário não se entendem nem o mínimo exigido pelas urgências. O primeiro, por imoralidade; o segundo, por ignorância e indecência; o terceiro, por fastio de presunção projetada, de cima para baixo.”
Muito embora não tenha explicitado, o grande jornalista sugeriu uma questão extremamente importante: a da legitimidade do regime político-econômico neoliberal imposto ao país após o golpe de 2016.
Ontem uma amiga me pediu um livro emprestado. Em razão disse fui obrigado a revirar 10 caixas de livros que se referem a ditadura militar (alguns escritos naquele período, outros escritos depois dele). Além da obra que procurava, acabei manuseando outra que me parece muito oportuno revisitar à luz dos eventos que estão ocorrendo no Brasil.
Durante o processo de Impedimento de Dilma Rousseff juristas brasileiros e estrangeiros notáveis, alguns deles evidentemente imparciais, denunciaram que que, sob a fina superfície de legitimidade jurídica conferida ao procedimento pela imprensa, estávamos sofrendo um golpe de estado. Consolidado, o golpe de estado passou a se legitimar num discurso técnico-jurídico, mas uma verdadeira dicotomia se instaurou no Brasil.
O que era crime no caso de Dilma Rousseff (pedaladas fiscais), deixou de ser ato criminoso durante o governo do usurpador. Apesar disso, o STF foi capaz de anular a decisão excepcionalmente ilegal tomada pelo Legislativo. Muito pelo contrário, novas exceções jurídicas foram sendo criadas para afastar o povo do poder, o poder da constituição federal e os candidatos do PT das eleições.
Durante o Impedimento Sérgio Moro grampeou a conversa da presidenta (crime) e depois divulgou o conteúdo da gravação (novo crime). Mas ele não foi sequer processado criminalmente, pois ele se colocou e foi colocado à margem de qualquer legalidade para exercer um poder excepcional.
O juiz da Lava Jato (galã da telenovela homônima encenada diariamente pelo Jornal Nacional) aproveitou a impunidade para continuar ampliando o abismo entre a essência da legalidade e sua aparência ao aceitar a denúncia contra Lula e condená-lo. É evidente que ele tencionava inviabilizar a candidatura do ex-presidente. Em razão das pesquisas eleitorais que colocam Lula como principal candidato à presidência, o novo regime não quer correr o risco de ser interrompido pela vontade popular.
Lula foi condenado com base em convicções, matérias jornalísticas e presunções desfeitas por provas documentais. Tudo indica que o TRF-4 confirmará a absurda decisão proferida por Sérgio Moro. Os aspectos ilegais da sentença proferida no caso do Triplex são inúmeros foram debatidos à exaustão. Aqui a única coisa que me interessa é usar esse exemplo para chegar à uma conclusão.
O convívio entre a essência do regime constitucional e sua aparência, que começou durante o julgamento do Mensalão, quando José Dirceu foi condenado por Luiz Fux porque não provou sua inocência (presunção de culpa) apesar da CF/88 prescrever a presunção de inocência, não tem sido tranquilo. Cada vez mais absurdas, as decisões judiciais que colocam o PT à margem da legalidade, atribuem privilégios aos juízes e garantem a impunidade usurpador e dos criminosos que ele nomeou para ocuparem o primeiro e o segundo escalão do Executivo, estão destruindo a credibilidade do Judiciário.
Em algum momento o convívio incômodo entre a aparência e a essência da legalidade terá que deixar de existir. Fenômeno semelhante ocorreu durante a ditadura militar.
“Embora a própria reestruturação do poder tenha se verificado por via não institucionalizada, foram superadas, em prazo relativamente curto, as dificuldades para a instauração de um governo permanente, em substituição ao Supremo Comando Revolucionário. Terminada a vigência do Ato Institucional nº 1, com o período de cassações aparentemente esgotado, observa-se uma tendência à recomposição da ordem legal. Tudo indicava que, uma vez completada a etapa punitiva, os dispositivos legais revolucionários adquiririam um caráter supérfluo, considerando-se a justiça ordinária apta para a regulamentação da esfera jurídica e para a resolução das questões políticas que lhe fossem pertinentes.
Procurava-se, assim, eliminar o incômodo convívio de duas ordens legais, convívio esse que apresentava, entre outras, a desvantagem de instituir contornos excessivamente imprecisos na esfera das instituições jurídicas, a par da absorção, pela justiça revolucionária, de uma parcela significativa das funções do judiciário.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 24/25)
“… a coexistência entre duas ordens legais, a par do predomínio, por períodos limitados, de uma ordem revolucionária, resultaram na ampliação gradativa do âmbito da justiça revolucionária em prejuízo da justiça ordinária. Ao lado do conjunto de normas sancionadas, cuja criação e aplicação se baseia em procedimentos estabelecidos, desenvolveu-se um novo corpo normativo, inspirado em princípio absolutos e promulgados por uma autoridade suprema. O fato de a criação de regras passar a se processar quando a sua aplicação se faz necessária torna relativamente exíguo o tempo necessário à sua regulamentação; além disso, e na medida em que determina a revogação dos dispositivos que a contrariam, a ordem revolucionária não só anula efetivamente algumas das normas pré-existentes, como também gera a expectativa de criação de novas regras e, consequentemente, do prosseguimento da perda de vigência da ordem anterior.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 27)
Se a essência da ordem jurídica for totalmente eliminada antes e depois das eleições de 2018, restará apenas o exercício arbitrário do poder. As consequências internas e externas disso serão previsíveis e desagradáveis, pois os tiranos que assaltaram o Executivo para continuar assaltando os cofres públicos não conseguirão controlar a oposição dentro do país e os jornalistas fora do Brasil.
“O fortalecimento das pressões de setores das Forças Armadas contrários à posse dos candidatos oposicionistas vitoriosos nas eleições para governador, aliado à resistência do Congresso em aprovar uma legislação destinada a ampliar as atribuições da justiça militar, configuraram uma situação crítica para o Executivo. Ficava claro que o recurso ao voto popular não se constituía ainda na forma mais eficaz para sancionar o regime, tornando-o, dessa forma, mais vulnerável ao apoio da instituição em nome da qual ascendera ao poder, ou seja, as Forças Armadas. Nessas condições, a movimentação que então se verificava nos meios militares assumia o aspecto de uma ameaça às próprias bases do regime. Privado da legitimidade por via eleitoral, de um lado, e frente a frente a uma forte pressão desencadeada por grupos militares mais radicais, o Executivo cede e parte para uma tentativa de composição com as diretrizes por eles propostas.
A edição do Ato Institucional nº 2, tornando inquestionável a supremacia do Executivo frente aos demais poderes, vai determinar a neutralização provisória da controvérsia no interior das Forças Armadas. Por outro lado, ao decretar a eliminação das organizações político-partidárias existentes, demonstrou reconhecer a inviabilidade de desempenharem o papel de legitimadoras da nova ordem.
O compromisso em manter a forma de dominação, ainda que alterados os centros de poder, sofre um sério revés, mas ainda assim nãos e rompe: o regime esboça seus primeiros passos no sentido de estruturar uma nova ordem política, através da criação de um sistema bipartidário e da formulação de normas destinadas a reger o seu funcionamento.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 31)
Lula corre o risco de ser impedido de disputar as eleições presidenciais. Mas isso não quer dizer que o golpe de 2016 conseguirá obter legitimação eleitoral. Até a presente data os candidatos comprometidos com as reformas neoliberais que foram oferecidos ao respeitável público pela imprensa não conseguiram decolar. Bolsonaro surgia como um forte pretendente à faixa presidencial, mas a imprensa o descartou por razões óbvias (ele é um idiota autoritário incapaz de ampliar sua base eleitoral).
“Imprimindo ênfase às questões relacionadas com a segurança nacional, em nome da qual neutraliza as normas já existentes, o AI-5 contribui para colocar em destaque o papel desempenhado pelos organismos encarregados de zelar pela segurança. Como já foi dito, entretanto, ele instaura um tipo de ordem legal que, paradoxalmente, não contém um sistema de regras definido, ficando a criação de normas condicionado às exigências da situação. Embora os dispositivos do Ato deleguem essa espécie de iniciativa ao Executivo, na qualidade de agente do poder revolucionário, o fato é que, como já foi ressaltado, esse poder tendeu a assumir um caráter extremamente abrangente. Nessas condições, torna-se possível que alguns dos órgãos que constituem o poder revolucionário passam, na ausência de regras dispondo com precisão sobre as suas atribuições, e esfera de atuação, a formular suas próprias regras e a definir seus próprios limites.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 46)
“A identificação dos órgãos de informação com o papel desempenhado pelos órgãos de decisão se origina do fato de que cabe a eles analisar o andamento da guerra revolucionária, ou seja, informar em que medida as ameaças internas e externas à segurança continuam a exigir a manutenção dos instrumentos destinados a combate-las. É baseado, portanto, nas informações que lhe chegam através dos órgãos de segurança que, em última análise, o Executivo decide pela permanência da legislação de exceção. Fecha-se assim o círculo no qual o AI-5 se apresenta como um dos principais elementos condicionantes da autonomia dos órgãos de segurança, e no qual a sua vigência passa a depender, em última instância do parecer daqueles organismos.
Cria-se, com isso, uma situação em que tende a se processar uma difusão do poder em favor desses órgãos. Ao mesmo tempo, a decisão relativa à continuidade da legislação revolucionária se transforma em uma questão política permanente colocada para as Forças Armadas, tornando os riscos do faccionismo militar um problema também permanente.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 47)
Após o golpe de 2016 a PF passou a atuar de maneira cada vez mais politizada. Além de provocar danos à economia brasileira (operação Carne Fraca), os delegados federais já causaram pelo menos uma morte (a do reitor da Universidade de Santa Catarina). O diretor da PF nomeado pelo usurpador ameaçou usar a Lei de Segurança Nacional (revogada implicitamente pela CF/88) para controlar a divergência política na internet. Isso evidencia a ambição da PF de se transformar num baluarte repressivo. Como o golpe de 2016 confirmou o convívio entre duas ordens jurídicas e ampliou o abismo entre essência da legalidade e sua aparência, a pretensão da PF é facilitado e legitimado pela ambiguidade do novo regime.
Essa ambiguidade também se torna evidente quando os delegados federais dão entrevistas. Em nome do combate à corrupção os jornalistas defendem os abusos que eles cometem. O poder político que os policiais querem exercer justificaria inclusive as evidentes infrações funcionais que são cometidas em defesa da nação (é o que eles dizem, é o que a imprensa diz), muito embora alguns deles tenham prejudicado desnecessariamente e até criminosamente setores inteiros da economia brasileira.
“Ao que parece, é a posição das Forças Armadas não como um dos órgãos, mas como o único órgão no qual se processa o debate político que irá contribuir para aprofundar o grau de politização dos quadros militares, instaurando uma espécie de desequilíbrio entre os seus papéis profissional e político. Torna-se então extremamente difícil distinguir claramente entre as situações que exigem o exercício do papel profissional das que requerem o desempenho do papel político, como também se torna inevitável conferir um significado político a determinadas questões e tarefas eminentemente profissionais. Essa ambiguidade transparece, com certa freqüência, nos critérios adotados para a elaboração das listas de promoções e de nomeações, das quais têm estado ausentes elementos ligados a alguns dos grupos militares mais significativos.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 55)
Durante a ditadura militar a importância da PF foi reduzida. Após o golpe de 2016, com ajuda da imprensa os delegados federais parecem estar querendo exercer todo o poder que foi atribuído às diversas agências repressivas que deixaram de existir (DOPS, DOI-CODI, SNI, etc…).
“…no Governo Castelo Branco, se enfatizavam os aspectos negativos do governo anterior e se utilizava uma linguagem excessivamente impessoal para descrever a atuação da administração, percebendo-se a inexistência de uma preocupação aparente no sentido de encorajar uma participação do tipo simbólico e, muito menos, uma mobilização.
Dispondo de um instrumental organizado de divulgação dos resultados de sua administração, o Governo Médici utilizou, além disso, um estilo acessível, baseando a comprovação de sua eficácia não só em sua atuação presente, mas também em realizações cujos efeitos se projetam para o futuro.
Os dois governos teriam em comum o fato de se utilizaram, em suas comunicações, de dados de caráter essencialmente técnico, indicando, à primeira vista, a persistência da estratégia orientada para a despolitização do conteúdo das informações de origem governamental. Entretanto, a tendência a um esboço de mobilização controlada e ao incentivo da participação simbólica, identificada durante o Governo Médici, sugere que a tecnicização da linguagem empregada pelo regime deixou gradativamente de se constituir em uma simples tática para eliminar o aspecto político das comunicações governamentais, tal como ocorreu no Governo Castelo Branco, para se transformar em um novo estilo de linguagem política. A nova linguagem política representaria, simultaneamente, um instrumento com base no qual se tenta incentivar tipos específicos de participação e um elemento através do qual o regime procura se legitimar.
A ênfase na eficácia administrativa como base de legitimidade do sistema de dominação produziu, como contrapartida, a oficialização do esvaziamento das instituições políticas que o regime se dispôs a preservar.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 60/61)
A ineficácia econômica do novo regime é evidente. O desemprego aumentou, a economia não cresceu, os investimentos externos não ocorreram, a arrecadação tributária despencou, a fome voltou a ser motivo de preocupação e o comércio segue encolhendo. Mesmo assim a imprensa continua tentando legitimar o regime neoliberal imposto ao país mediante a escandalosa compra de votos parlamentares.
O regime militar esvaziou as instituições políticas ao apelar para o tecnicismo. A imprensa está esvaziando o próprio tecnicismo como possibilidade discursiva ao corromper conceitos econômicos para dizer que o país vai bem no exato momento em que estamos afundando numa severa depressão econômica que pode resultar em caos social.
“O fortalecimento da Oposição, era, na realidade um elemento-chave na política de distensão, na medida em que significava trazer para a esfera política institucionalizada as correntes contrárias ao regime. A transformação do MDB em oposição de fato, atuando como representante daquelas correntes, implicaria uma definição de posições de parte a parte, e acarretaria, a médio prazo, o esvaziamento do papel dos órgãos de segurança. Ao optar por regulamentar sua relação com a oposição ao regime, o governo demonstra o seu propósito de institucionalizar o dissenso. Ao mesmo tempo, com a reincorporação das correntes oposicionistas, a Oposição perderia o seu caráter difuso e passaria a ser objeto de um tratamento político, e não mais uma questão de competência do aparelho militar-policial.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 81)
Enquanto a imprensa se esforça para legitimar o usurpador (cuja legitimidade parlamentar advém apenas da corrupção), o Judiciário se esforça para institucionalizar o conflito ao excluir candidatos petistas das eleições. O Brasil segue nesse momento um caminho oposto àquele que foi trilhado pelo governo Geisel. Todavia, o PT ainda não deixou de ser uma força eleitoral importante. Mesmo que sejam jogados na ilegalidade, os principais líderes petistas continuarão sendo capazes de interferir no processo político.
“…no decorrer do processo de distensão, Geisel se reservaria entre outras, a função de termômetro da temperatura do sistema revolucionário, adotando um sistema de avaliações periódicas da situação, em que ele próprio vinha a público ou se fazia ouvir através de seu Ministro da Justiça. É interessante como os pronunciamentos de Geisel, mais tarde substituídos pelos do Ministro Armando Falcão, funcionaram como um sinal de alerda de que, em dado momento, os riscos se avolumavam e qualquer passo em direção á reabertura poderia provocar reações irreversíveis. Os estilos dos pronunciamentos de cada um deles são, evidentemente, distintos. A audiência de Geisel é mais heterogênea, embora o final de seus discursos contenha invariavelmente uma mensagem dirigida especificamente aos setores radicais, assegurando a sua identificação com o processo revolucionário e a manutenção dos instrumentos de força do regime. O estilo de Falcão é mais contundente, e prevalece em seus pronunciamentos um tom inequívoco de advertência. Ao se dirigir a interlocutores específicos, enfatizando a irreversibilidade do processo revolucionário, o Ministro da Justiça ao mesmo tempo informa a nação a respeito do equilíbrio de forças no centro de poder.
Papel idêntico, dessa vez no âmbito da esfera política institucionalizada, coube durante os primeiros 20 meses de governo, a Golbery: era ele quem orientava as lideranças partidárias, sobretudo as da Oposição, a respeito da conveniência ou contra-indicação de colocar certos temas em debate.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 83/84)
As Forças Armadas deram garantia de legitimidade ao regime militar em última instância. No interior delas se digladiavam facções moderadas e radicais. O golpe “com o STF com tudo” foi legitimado por parlamentares, juízes e jornalistas. No interior do judiciário as facções se digladiam pelo poder. Em defesa do famigerado “auxílio moradia” vários juízes federais resolveram ameaçar o STF.
Em razão de sua natureza difusa e não centralizada, o golpe de 2016 tem interlocutores demais. Eles se uniram em torno de uma causa comum (derrubar o governo eleito pela população), mas a realidade do exercício do poder obriga as instituições a estarem em confronto permanente (como notou Jânio de Freitas). As contradições também aparecem dentro de cada instituição, inclusive no Judiciário. O desgaste do Poder Judiciário já é evidente e tende a piorar enquanto os juízes forem obrigados manter uma distinção clara entre a aparência da legalidade e sua essência.
“…a institucionalização do recurso ao instrumental jurídico-político conferido pela nova legalidade traz implícito o desgaste crescente das instituições políticas herdadas do regime anterior, encarregadas tanto de conferir legitimidade à nova estrutura de poder, como de evitar a formalização do debate político nas áreas militares. Ao determinar uma diminuição sensível no grau de autonomia das instituições políticas, alterando ou impedindo o desempenho das funções que até então lhes eram reservadas, a nova ordem legal concorreu para reduzir a capacidade de legitimação das organizações partidárias e do Legislativo. Interpretado na perspectiva weberiana, o que ocorreu se configura como uma tentativa de legitimar uma ordem política prescindindo-se da ordem legal que lhe dava sentido.
Ao que tudo indica, entretanto, a ordem legal revolucionária nãos e limitou a restringir a validade da ordem política vivente até 1964. Como se viu, a sua gradativa consolidação concorreu também para frustrar as tentativas de criação de uma nova ordem política, configuradas principalmente em termos da elaboração de um sistema bipartidário e da promulgação de uma nova Carta Constitucional, em 1967.
Por outro lado, a vigência da nova ordem legal implica a ampliação do poder revolucionário, na medida em que lhe confere a atribuição de definir ele próprio o âmbito de sua esfera de atuação. Convém relembrar, no entanto, que quem detém o poder revolucionário são as Forças Armadas. O Executivo age por delegação e já foi visto que no decorrer dos quatro governos militares as Forças Armadas vêm demonstrando uma disposição crescente em participar de maneira efetiva no processo decisório. Se a nova legalidade contribui para intensificar o processo de concentração do poder no interior das Forçar Armadas, por outro lado ela condiciona o fortalecimento da autonomia de certos órgãos militares que passam a reivindicar e, por vezes, conseguem adquirir, uma parcela maior de poder.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 89/90)
A ditadura provocou intencionalmente a concentração do poder, provocando disputas facciosas no interior das Forças Armadas. O golpe de 2016 estilhaçou as bases do poder dificultando seu exercício, obrigando o Executivo a corromper descaradamente membros do Legislativo. O vácuo de legitimidade eleitoral aumentou a distância entre o Estado e a população e dividiu os agentes estatais entre aqueles que respeitam a essência da legalidade e aqueles que almejam aumentar seu poder pessoal cometendo abusos legitimados pela imprensa. A ausência de regras e de autoridades obrigadas a aplica-las não só facilita a corrupção como possibilita o crescimento do arbítrio e compromete a imagem do país no exterior.
“Dado o papel fundamental desempenhado pela eficácia governamental no esquema de legitimidade que se consolidou durante o governo Médici, tende a se intensificar a expectativa face á atuação dos dirigentes dos organismos estatais responsáveis pelo processo de crescimento econômico. A obtenção de um grau crescente de eficácia em suas respectivas áreas é o elemento que vai garantir a renovação contínua da confiança neles depositada pela instituição que detém o poder, ou seja, as Forças Armadas.
Essa necessidade permanente de conquistar a confiança dos centros de poder com base no aperfeiçoamento dos níveis de desempenho contribuiria para gerar uma certa competição entre os ocupantes dos cargos-chaves da burocracia estatal, competição essa que pode vir a se expressar através de tentativas de ampliação de suas respectivas esferas de atuação. As organizações burocráticas passariam a ser mobilizadas como fontes de poio às intenções dos seus dirigentes no sentido de ampliarem o escopo de suas iniciativas, com o que as disputas a nível de cargo tendem a se expandir pelos escalões inferiores e a darem lugar a eventuais rivalidades entre burocracias.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 93/94)
Durante a ditadura militar, os tecnocratas competiam por mais poder utilizando os resultados que haviam obtido. Os resultados administrativos e econômicos do golpe de 2016 são pífios, desastrosos e desanimadores, pois o critério utilizado pelo usurpador para nomear seus Ministros não foi técnico e sim político. Além disso – e para piorar o quadro em que nos encontramos – vários dos políticos que foram nomeados por Michel Temer utilizam os cargos apenas para garantir a própria impunidade.
“As tentativas de institucionalizar o regime através da criação de bases estáveis de legitimidade vêm sendo, portanto, periodicamente frustradas ao longo dos últimos treze anos. O máximo que se tem conseguido é uma legitimidade transitória fundada, inicialmente, no compromisso com o restabelecimento do sistema democrático e, mais tarde, na esfera administrativa. Durante certa fase do Governo Geisel parecia, inclusive, que se estava caminhando para uma tentativa de legitimar o regime com base em sua dimensão social, através da implementação de algumas medidas de caráter redistributivo.
Há, assim, algumas distinções básicas entre os tipos de legitimidade dos sistemas políticos, definidos em função da forma como o poder é obtido e da maneira como é exercido.
Em um sistema de dominação legal, o regime se legitima a partir da observância de um pacto entre governantes e governados, em função do qual o poder é alcançado e exercido de acordo com regras pré-estabelecidas, claramente explicitadas e promulgadas segundo procedimentos aprovados. O exercício do poder visa, em última instância, a consecução dos fins definidos como prioritários pela sociedade.
Nesses termos, a legitimidade se baseia em um compromisso que antecede a tomada do poder e requer a existência de um consenso em relação à maneira como deve ser exercido. As bases de legitimidade de um sistema político desse tipo são, portanto, estáveis.
No caso dos sistemas de poder que se instauram por via não institucionalizada, inexiste um compromisso desse tipo. A própria forma como o poder foi obtido expressa, em última análise, um questionamento das regras do jogo político até então vigentes.
Na ausência de um pacto entre governantes e governados que se constitua no alicerce de sua legitimidade, o sistema de poder se vê na contingência de forjar sua legitimidade ‘a posteriori’.
Uma das grandes dificuldades com que esses regimes se defrontam é a instabilidade das bases de legitimidade que criam para si. Essas bases são quase sempre provisórias e parecem tender inexoravelmente ao esgotamento, em função tanto da própria dinâmica interna desses sistemas quanto de fatores externos, contextuais, que não estão sujeitos a controle. Dentro desse quadro, as fórmulas de legitimação se sucedem.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 100)
Os problemas encontrados pelos militares para legitimar o exercício do poder sem recorrer ao uso intensivo e permanente da força bruta foram imensos. Mas as soluções que eles encontraram não foram muito diferentes das que estão sendo empregadas pelos arquitetos do golpe de 2016. A corrupção – desenfreada durante o brevíssimo governo Temer – também ajudou a garantir a legitimidade parlamentar do regime militar. Em razão da censura e da possibilidade de repressão, os autores não tocam neste assunto. Uma coisa é certa, porém, a instabilidade da ditadura foi menor do que a do regime imposto ao país pelo golpe de 2016.
A ditadura militar não precisou se preocupar muito com o resultado das eleições enquanto o milagre econômico pode ser usado em favor da Arena. O problema eleitoral somente surgiu quando a crise do petróleo transformou o sucesso em fracasso econômico atraindo eleitores para a oposição. O golpe de 2016 foi dado porque o neoliberalismo foi rejeitado pela maioria dos eleitores em 2014. A rejeição de Michel Temer e a impopularidade das medidas que ele tomou certamente irão favorecer o candidato do PT. Os golpistas procuram desesperadamente uma maneira de legitimar eleitoralmente o golpe retirando Lula da disputa, mas isso não quer dizer que eles conseguirão eleger um candidato comprometido com as reformas enfiadas goela abaixo do povo brasileiro para beneficiar as petrolíferas estrangeiros, os banqueiros brasileiros e os especuladores internacionais.
Quando foram convocados a decidir processos que tinham conteúdo político (ou que poderiam ser interpretados como tendo conteúdo político), salvo raríssimas exceções os juízes aplicaram os Atos Institucionais. Mas durante toda a ditadura militar eles mantiveram low profile. Isso ajudou a preservar a credibilidade do Poder Judiciário cuja missão não era distribuir justiça e sim legitimar as injustiças praticadas pelo Executivo que agia por delegação das Forças Armadas. Antes, durante e depois do golpe de 2016 os juízes brasileiros passaram a se comportar como se fossem celebridades. Os abusos que eles estão sendo obrigados a cometer para garantir seus privilégios, impor a agenda neoliberal ao país e afastar Lula da presidência antes da disputa eleitoral, são cada vez maiores e absurdos.
A conquista e o exercício do poder a curto prazo irão se traduzir a médio e a longo prazo em danos irreparáveis não somente à imagem do Poder Judiciário. As principais vítimas do golpe de 2016 são a respeitabilidade do discurso jurídico e sua utilização como instrumento civilizatório. Em breve o poder será exercido apenas como coação. É exatamente por isso que o estudo da segunda parte livro de Lúcia Klein & Marcus Figueiredo se tornou importante nesse momento.
“A coerção explícita existe quando um órgão (ou agente) específico da sociedade compele os indivíduos a se comportarem de alguma maneira em particular, agindo diretamente sobre cada caso, podendo por isso, variar o seu grau de severidade; já a coerção implícita se manifesta quando as estruturas e os valores simbolizados pelas instituições sociais restringem o comportamento coletivo, com grau de severidade relativamente uniforme.
Em ambos os casos as relações são assimétricas e caracterizam o grau de poder de controle que os agentes e as estruturas e valores sociais têm sobre o comportamento individual e coletivo. Dessa forma, os indivíduos ou uma coletividade são livres quando estão livres de agentes e/ou estruturas e valores sociais coercitivos.
A presença da coerção implícita na convivência política fica mais visível quando observada através da noção de controle dos espaços sociais. A possibilidade de um espaço social comum (político) existir depende da capacidade dos indivíduos que o constituem conseguirem um consenso mínimo a respeito dos seus interessas básicos. A emergência de conflitos de interesse, nesse caso, pode ser superada por três vias: pela realização de um novo consenso; pela dissolução do espaço social; ou pela coerção, cujo resultado tanto pode ser a implementação, pela força, de um novo ‘consenso’ ou, ainda, pela força, a sua dissolução. Supondo-se, para efeito de argumentação, que um espaço social não possa ser dissolvido (por exemplo, no caso de um sistema político formal) e que o nível de incompatibilidade de interesses tenha atingido o ponto de não conciliação, então a coerção ocorrerá necessariamente.” (Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Lúcia Klein & Marcus Figueiredo, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1978, p. 113/114)
Os juízes se colocaram acima da Lei e estão determinados a deixa-la fora do alcance do PT para garantir que um candidato petista não chegue novamente à presidência. Alguns deles, no entanto, já demonstram estar com medo da reação popular. Eles exercem um poder ilimitado e acreditam que serão vítimas da falta de limites justamente porque chegamos a um ponto de não conciliação. A coerção ilegítima que está sendo empregada contra uma parcela da população (aquela que é ou quer ser representada pelo PT) se transformará em coação legítima contra os juízes que legitimaram o golpe de 2016 abrindo um abismo entre a legalidade e sua aparência? Esta meus caros é uma pergunta que ninguém, nem mesmo Jânio de Freitas, foi capaz de responder.
Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/legitimidade-e-coacao-no-brasil-pos-64-por-fabio-de-oliveira-ribeiro