Aldeia Nagô
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Lugar de fala, Borges e Martí Por Rilton Primo*

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura
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A 5ª Feira Universitária do Livro da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) acaba de legar à comunidade baiana (e esta a 192 nações) um acervo de obras de uma identidade difusa, encarnando os pensares da leitura como ampliação de consciência de nosso lugar de fala.

Alçou-se – talvez não só por ter psiquê e brio para isto, mas asas – acima do poder centralizador das autorias sobre as obras, autografadas em uma Sessão Coletiva que envolveu 28 livros e um número desproporcionalmente maior de autorias-identidades. Estes pluripersonalismos ensaiam serem os das salas de espelhos, à J. Martí e J. L. Borges.

E oito destes livros vieram à luz à forma de coletâneas de ensaios – cada uma um coletivo. Examinando a lista, transvazaram identidades em trânsito pela educação e saúde, esporte e geografia, ensino, história e memória, alcançando as representações e os movimentos sociais, relidos à literatura e, ao revés, deslidos, no estranhamento-desterro das migrações de identidades. A dilaceração do eu-multiplicado, renegado a pó, interdito e reencontrado.

Quatro daqueles livros escritos a pelo menos seis mãos, cada uma com linhas das outras. Linhas outras e mesmas, heterográficas confissões do real que delas escapa ao lhes espelhar umas às outras, direta, indiretamente, em arcos reabertos. Escrutinando a lista, porquanto dedicados a aspectos normativos da identificação, repousam, quase; ou, deslizando ao viés teórico-metodológico, desinquietam; são bacias hidrográficas transitando à morfologia-anatomia vegetal, flagrando a sequidão no estio e antediluviano livro-Eu, com 27 outros, e oito em dezenas-outras de dez mil referências no livro mesmo.

Seria casual que um título personificasse esta pluriautografia móvel e, como um punhado de areia lançado ao vento, resumisse a ondulação das dunas jamais assentadas. Ele existe.

II

Organizado pela equipe de professores Maria Santos (UESC), Clodoaldo da Anunciação (MPBA/UESC) e Vanessa Cavalcanti (UCSAL), este livro e sala de espelhos chama-se “Migrações e Identidades” e reúne, pela editora Editus, uma trilogia interna a um só tomo, que ora reclama “o direito humano do outro” através de Gina Pompeu (UNIFOR) e Ana Carla Pinheiro (UNIFOR), ora não menos que “a construção de estados plurinacionais” e a “coexistência possível entre os universalismos e os particularismos”, através de Rosa Júlia Pla (UNIFOR). Faz percolar o imaterial através dos “elementos relativos à migração e à economia”, com Luana Aparecida Luppi Garcia e Luís Renato Vedovato (UNICAMP) até refletir o oculto-pluridentitário “impacto das migrações nas relações internacionais do Século XXI”, com Philippe Gidon (Université Paris 1 Panthéon – Sorbonne, UNIFOR).

Reflete os refratares das “histórias e geografias sem fronteiras”, sem intolerâncias, classes nem gêneros, sem lugar, encafifado no espelho recôncavo, que (re)espreita o “gênero, [e a] (in)tolerância entre Brasil, Portugal e Espanha”, com Vanessa Cavalcanti e Antônio Silva (UCSAL, Brasil), e, Atlântico-além, com Rilton Primo (UFBA e CEALA), no convexo desespelho do que nunca teve gênero, nem nunca terá, nem Norte, livre migrante, mas de natureza reversa, nesta anticartografia de indícios de identidades enganosas, à reiteração má, do elo entre “gênero e migrações forçadas na América Latina e no Caribe”.

Mas não emudeceu, neste recalcar do eu-Livro ou, antes, no positronar das biografias, as falas pelas “juventudes e migrações internacionais”, antiedípicas e safas por “narrativas políticas [e] por lições de gênero”, com Mary Castro (UFBA), nem as falas sem lenço dos “migrantes indocumentados”, com Natália Araújo (UNB), falas insuspeitas, próximas ou genéricas, subentendidas em falas distantes e inconfundíveis com as “interações e as  culturas presentes na literatura”, às loci sul-baianas, à luz de Maria Luiza Santos (UESC).

III

Talvez assim a Sé da UESC, neste Sul versejado ao irreconhecível, tenha reentoado seu rito iniciático do além Salobrinho, Ilhéus e Campus Nazaré de Andrade, autografando-se: “Várias óticas, novas perspectivas”, “o real oculto e o dado evidente”, “um olhar sobre o campo e a cidade”, “o porquê das pessoas”, “novos desafios”, “urbanismo, literatura e morte”, subtítulos à 5ª Feira, poeiras de constelações imanentes de serem e não serem um.

Ao que parece, como a L. Borges, ninguém é o livro-alguém, e um só homem imortal é todos os homens e, como Cornélio Agripa, somos deus, herói, filósofo, demônio e mundo; em compensação, o autor reconheceu ser esta uma fatigante forma de dizer que não era.

Parece, como disse J. Martí em Julho de 1884, que esta 5ª Feira interpenetrou o misterioso espírito da autoria e desautoria, o que se lhe tem também dois lados, como reespelhou, a maio de 1892: ‘Se é mais quando se vive entre os bons e, a cada bom que parte, se é menos. Cada um reflete a virtude de todos. Cada um padece dos pecados de todos.’ Não sem terror à magia e a ciências misteriosas, os antigos temiam quem tivesse lido um livro.

* Consultor em Ciências Sociais Aplicadas do CEALA.

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