Lula e Os Intelectuais – Tinha que ser o operário… Por Emir Sader
Não vou apelar a um histórico das relações,
encontradas e desencontradas, de Lula com os intelectuais, mas apenas relatar um
pouco do que foi a reunião de ontem, de que Lula estava ali e com que tipo de
preocupações ele encontrou aos intelectuais.
A reunião se deu depois de
uma breve viagem que Lula havia realizado com alguns intelectuais a Araraquara
para uma homenagem a Gilda de Mello e Souza, esposa de Antonio Candido, falecida
recentemente. Paulo Vanucchi foi o responsável de organizá-la, com a assessoria
da Presidência da República, para definir o caráter da reunião e seus
participantes. Lula definiu os participantes da parte do governo – Dilma
Rousseff, Fernando Haddad, Luis Dulci, Marco Aurélio Garcia e o próprio
Vanuchi.
Houve convites a cerca de 40 intelectuais, a maioria de São
Paulo, mas também do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul.
Entre os presentes, Antonio Candido, Luis Fernando Veríssimo, Leonardo Boff,
Moacir Scliar, Fernando Morais, Luis Gonzaga Belluzzo, Candido Mendes, Dalmo
Dallari, Maria Vitória Benevides, Aluisio Teixeira, Marco Antonio Barbosa, Paul
Singer, Luis Eduardo Wanderley, Ladislau Dowbor,Walnice Galvão, Margarida
Genevois, Adauto Novaes, Leonardo Avritzer, Lucio Kovarick, Gabriel Cohn, entre
outros.
Prevista para durar cerca de duas horas, a reunião se prolongou
por três horas e meia, ficando acertado que em todas as viagens de Lula aos
estados, haverá reuniões com grupos de intelectuais, a próxima sendo prevista
para o Rio de Janeiro, seguida de outras em Porto Alegre, Belo Horizonte,
Salvador, Recife.
Este texto reproduz algumas das intervenções da
reunião, não é um relato nem completo, nem textual, pretende apenas reproduzir
em parte o clima e os temas debatidos.
Lula havia consultado se
preferíamos começar por intervenções nossas ou se ele deveria fazer uma
exposição inicial, decidimos por esta alternativa e 14 de nós nos propusemos a
fazer intervenções para que Lula e sua equipe respondessem.
Significativamente, Lula começou dizendo que essa reunião deveria ter
sido organizada pelo PT, mas estava organizando sua equipe, desde o governo,
diretamente. Apresentou as pessoas que ele tinha trazido com ele, mencionou que
era uma "apresentação" de Dilma aos intelectuais. Mencionou também que uma de
suas grandes preocupações é a continuidade de governos do PT, antes de escolher
o inicio de sua exposição pela política internacional.
Recordou que, bem
no começo do seu governo, em 2003, de retorno de viagem a Davos, comentou com
Celso Amorim que era preciso mudar a geografia econômica do Brasil. E seguiu um
impressionante relato da reinserção internacional do país, tomando a América do
Sul como eixo fundamental, mas incorporando a América Central, as relações com o
México, o papel – subestimado pela mídia – do G-20, hoje interlocutor
fundamental em qualquer negociação internacional.
Reiterou a importância
dos passos ainda que iniciais da Unasul, recordou a primeira eleição direta para
o Parlamento do Mercosul em 2010.
Menções pessoais, não sem mostras de
orgulho, foram feitas às relações do Brasil com a Venezuela e Hugo Chávez –
parceiro fundamental do Brasil, com quem se reúne a cada três meses e têm troca
frutífera e sincera de pontos de vista, cada vez mais convergentes – e à
Bolívia, pelas dificuldades por que passou e nas quais ele assumiu a
responsabilidade – apesar dos problemas que ele mencionou da forma de atuação da
Petrobrás.
Da mesma forma chamou de "extraordinário acontecimento a
eleição do companheiro Fernando Lugo à presidência do Paraguai" – tema a que
retornaria a partir de pergunta que lhe fez Fernando Morais posteriormente.
Elogiou a Rafael Correa, com quem se relaciona, além de presidente, como
companheiro, tal a proximidade, a identificação que têm entre si. Mostrou
preocupação com a situação da Argentina, mencionou que trata de manter boas
relações com a Colômbia, anunciando visita a Uribe no dia 20 deste mês, com
delegação de empresários brasileiros. Disse que tenta puxar o México mais para
perto do Mercosul e que na América Central tem dificuldades pela dependência da
região em relação aos EUA, mas que já visitou a todos os países da área,
faltando apenas a Costa Rica.
Lula dedicou um bom tempo para falar das
privilegiadas relações com a África. Recorda que um bordão usual nas suas
viagens é ouvir que "pela primeira vez um presidente do Brasil viaja a este
país". Já são 19 países na África, onde se estenderam muito nossas relações, não
sem encontrar competitividades na ambiciosa política chinesa no continente.
Citou como a Petrobrás e uma empresa de outro país perderam a concorrência para
a China na exploração de petróleo em Angola – onde já há mais chineses andando
nas ruas do que brasileiros – pela oferta, impossível de ser coberta pelas
concorrentes -, feita por eles, que além dessas ofertas, se comprometem às vezes
a construir edifícios de governo e chegam com uma batalhão de chineses para as
obras, o que significa que não chegam a criar empregos locais. Mas recorda que
na única votação que disse que fez no seu governo, a China foi escolhido como
parceiro essencial, em detrimento do Japão, reitera que com os chineses as
negociações são duras, caminham mais lentamente, mas finalmente avançam bem.
O comércio bilateral do Brasil com a África subiu até agora de 3 a 17
bilhões, tendendo a se elevar muito mais. Mencionou os acordos de pesquisa da
Embrapa com vários países africanos para apoiar-lhes em resolver seus problemas
de tecnologia agrícola.
Com a União Européia Lula reiterou que as
negociações estão complicadas para o acordo de Doha, pela resistência dos
europeus em retirar ou diminuir os subsídios agrícolas.
O segundo ponto
escolhido por Lula foram as políticas sociais do governo, não para expô-las, mas
para enfatizar que foram feitas mais de 50 conferências setoriais, precedidas
cada uma por 27 conferências estaduais, ele considera que nunca um governo – diz
mesmo, no mundo – havia tido uma relação tão próxima e de intercâmbio com os
movimentos sociais. Cita como foi ele o intermediário, recentemente, para que,
pela primeira vez, o movimento sindical sul-africano se reunisse com o atual
presidente daquele país. Lula confessa as dificuldades de relação com o MST,
embora enfatize como seu governo já liberou 2 ou 3 vezes recursos para a
economia familiar do que todo o tempo do governo FHC e que a orientação do
governo é mais a de financiamento para a agricultura familiar do que de
desapropriações.
Fez um elogio privilegiado à política de "territórios de
cidadania", em que foram mapeados mais de 300 municípios entre os mais pobres do
país, para concentrar políticas de 19 ministérios – no estilo das políticas
sociais no território, como preconizava Milton Santos. Lula considera essa a
política mais perfeita que já foi elaborada no plano social.
Passou a
exposição sucinta sobre o PAC, como o maior investimento em infra-estrutura que
o Brasil já fez – ao que mais tarde Dilma acrescentará também seu caráter de
política social, de extensão dos direitos básicos de cidadania, pelo acesso
universal à eletricidade, ao saneamento básico, entre outros. Sua presença em
mais de 5.000 municípios dá idéia da abrangência e da pretensão do governo com
essa iniciativa.
Fez o elogio da atuação da Petrobrás, falou de como
isso, entre outros efeitos benéficos, possibilitou a recuperação da indústria
naval, que estava desfeita no final do governo anterior. Sobre as novas
descobertas, disse que 40% pertencem à União, que será criado um Fundo com esses
recursos para a educação e a saúde. Que não haverá mais leilões, que se está
elaborando uma nova lei de licitações para o petróleo.
Sobre os
biocombustiveis, afirmou que se precisa tanto dos agronegócios quanto da
agricultura familiar, que seria possível combinar harmonicamente a convivência
dos dois, reconhecendo que grande parte da produção de alimentos para o mercado
interno vem da agricultura familiar, que além disso é responsável por grande
parte do emprego no campo. Mas diz que considera que "não há anjos e demônios"
nesse plano.
Reiterou que o Brasil está vendendo soja para a Venezuela e
para Cuba. Que não é possível tirar terras da produção de alimentos para
produzir combustíveis, que o Brasil não faz isso, tem terras suficientes para
poder dar conta dos dois. Reafirmou que considera a crise agrícola atual uma
crise boa, porque expressa que se está comendo mais, que especialmente os pobres
estão comendo mais, seja na China, na África ou no Brasil.
Sobre a TV
Pública, considera que ela tem ainda cerca de um ano para engrenar, que destinou
350 milhões para o projeto, quantia similar à que dispõe a TV Bandeirantes, que
foi constituído um Conselho competente, representativo, pluralista, para
dirigi-la.
Lula confessa que guarda rancor de Dom Carpio, que considera
que nenhum dos argumentos dele tem sustentação, que está disposto a discutir
publicamente cada um dos argumentos. Que o governo desapropriou uma faixa de
dois quilômetros, justamente para evitar que houvesse benefícios privados. Que
pensou em chamar a greve de fome a milhões – dos 12 milhões que afirma que serão
beneficiados pela transposição do São Francisco, mas depois resolveu não fazer
isso. Que quer sim encontrar-se com Leticia Sabatella e discutir o tema em
profundidade.
Deu de passagem uma estocadinha nos céticos, citou a Miriam
Leitão, que disse que a Bovespa nunca chegaria a aos 20 mil pontos e agora ela
está chegando aos 70 mil. Aproveitou para recordar que 2005 foi o seu pior ano,
que agora a relação com a mídia está menos nervosa, que ele não lê mais jornais,
o que seja importante lhe comunicam, que não lhe faz falta. Que a corrupção
aparece, porque não está sendo varrida para debaixo do tapete, que grande parte
dos casos vinham de governos anteriores, mas hoje 90% dos casos apurados são
feitos pela Procuradoria Geral da República. Que apesar dos erros reais
cometidos pelo PT, o pior foram as insinuações, porque as acusações podem ser
rebatidas, mas as insinuações sugerem, sem ter que provar nada.
Maria
Vitória Benevides, ao iniciar as perguntas, quis ressaltar entrevista recente ao
Jornal do Brasil (que está na página do JB, em imagens), em que pergunta
sobre sua identidade, Lula afirmou que "é sempre torneiro mecânico e de
esquerda".
Perguntado, Lula abordou a reforma política, que gostaria que
o PT tomasse firmemente essa bandeira, que ele mesmo gostaria de reunir a todos
os ex-presidentes, vitimas de problemas do sistema político, para tentar
promover uma reforma política, mas ele vê isso como muito difícil. Disse que
estaria feliz de ver o fim definitivo do dinheiro nas campanhas, que deveriam
ter apenas financiamento público. Que ficaria feliz com o fim dos suplentes de
senadores, assim como o mandato de 7 anos para os senadores.
Sobre o
Paraguai, disse que a questão é delicada, que o Tratado de Itaipu não pode ser
alterado, mas que não faria nada que pudesse enfraquecer a Fernando Lugo como
presidente, deixando entender que encontrará formas de obter os recursos que o
novo presidente paraguaio reivindica, de outra maneira.
Revelou sua
felicidade de que o BNDES passou a financiar pequenos e médios proprietários,
inclusive a cooperativas de catadores de papel, que ele levou para encontrá-lo
no Palácio da Alvorada.
Orgulhoso, manifestou que é o primeiro governo
que convoca um Congresso dos GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis), a
que ele compareceu, em Brasília, em junho, na abertura. Anunciou que logo sairão
iniciativas que promoverão as rádios comunitárias, assim como medidas de avanço
na delimitação de terras indígenas, de proteção dos trabalhadores – em
particular os jovens – na cana de açúcar e Dilma anunciou a política de abertura
dos arquivos da ditadura, tocando assim em temas espinhosos de conflito com a
intelectualidade.
Dilma, Fernando Haddad e Luis Dulci também fizeram
intervenções, esclarecendo aspectos de temas vinculados aos setores de
responsabilidade no governo. Dilma resumiu como os ataques feitos a ela são
inócuos, sem consistência, confirmando o que se sabe -ela é hoje a vítima
privilegiada das campanhas da oposição e de sua mídia, porque aparece como a
candidata de Lula à sua sucessão. Haddad argumentou que os avanços no plano
universitário – entre a criação de novas universidades, de mais vagas para
contratações, de dobrar as vagas nas universidades públicas, o Prouni que terá
quase um milhão de ingressados no fim do governo, entre outros – deveriam
encontrar nos estudantes e nos professores os seus maiores
defensores.
Quando retomou um dos temas de maior divergência com grande
parte dos intelectuais, Lula revelou que, do seu ponto de vista, fez o ajuste
fiscal mais duro que se poderia fazer, mas que não se arrepende alegando que
essa política conservadora, restritiva, teria sido condição da decolagem
posterior do seu governo.
O Lula que os intelectuais encontraram é um
Lula muito seguro de si, confiante na realização do seu governo, dominando
plenamente os temas que aborda – inclusive no manejo familiar com todas as
cifras. A reunião – pela quantidade e qualidade de participantes, mas também
pelas intervenções – que foi superado o trauma da ruptura de parte da
intelectualidade com o PT e com Lula. Demonstrou-se que, no marco das diferenças
existentes, o diálogo é plenamente possível e uma interlocução permanente entre
os dois será muito benéfica para ambos.
Lula parece convencido disso
agora, ao mesmo tempo que os intelectuais percebem que tem que dar conta de um
governo que, sem ruptura com o modelo herdado, conseguiu retomar um ciclo
expansivo da economia e promover políticas sociais de distribuição de renda como
nunca o país tinha vivido.
O desafio de fazer a teoria do que o governo
faz, com sua crítica e propostas de superação dos problemas, assim como de
defender as conquistas e buscar sua extensão e aprofundamento. Os espaços
começam a ser criados para que o governo tenha nos intelectuais a aliados
críticos, mobilizados, e os intelectuais tenham no governo um interlocutor
político, que por sua vez constantemente os interpela sobre suas
responsabilidades como intelectuais com o Brasil, com a América Latina e com o
Sul do mundo.
Postado por Emir Sader às 12:16