Lula está errado sobre o Irã? Por Breno Altman
Não são poucas as matérias, na imprensa nacional e internacional, que tratam de apontar para suposto isolamento do governo brasileiro na discussão sobre sanções contra o país dirigido por Mahmud Ahmadinejad.
Mesmo setores progressistas torcem o nariz com a insistência
do presidente Lula em defender uma saída negociada com os iranianos. Afinal, não
se pode afirmar que o regime dos aiatolás corresponda aos paradigmas
democráticos, humanistas e laicos que fazem parte dos valores de esquerda.
Mas a questão da qual não se pode fugir é a que propósitos servem os
recentes movimentos de pressão contra o Irã, cuja vilanização já se assemelha
àquela que precedeu a invasão do Iraque. Novamente uma nação que se opõe à
hegemonia imperialista é acusada de estar desenvolvendo armas de destruição em
massa. Outra vez começam a rufar os tambores de guerra.
O principal
patrocinador da escalada contra a gestão Ahmadinejad são os Estados Unidos.
Claro que os discursos de Obama e Hillary são recheados de alusões à liberdade.
Não é novidade: o apoio aos golpes militares na América Latina e a guerra contra
o Vietnã, para citar dois exemplos, também foram levados a cabo em nome da
defesa do "mundo livre".
Tampouco há surpresa nas razões efetivas que
condicionam a política da Casa Branca. Foram-se os dias da destemperança bélica
de Bush, mas sob a fala aveludada e cosmopolita de Barack Obama continuam vivos
os mesmos pressupostos geopolíticos. Como diz a sabedoria popular: o lobo troca
o pelo, mas não perde o viço.
O primeiro dos grandes motivos
estratégicos é a velha disputa pelo controle das fontes de energia, na qual o
Oriente Médio continua como principal teatro de operações. A desestabilização do
Irã e sua eventual transição para a esfera de influência norte-americana, como
se passou com o Iraque, significariam formidável aporte aos recursos
petrolíferos sob tutela da grande potência.
Mais do que bloquear o
acesso de Teerã à produção de energia nuclear, o que importa para Washington é
asfixiar um governo hostil a seus interesses, seguindo a lógica político-militar
que preside suas atitudes desde 2001. Os EUA, até então, delegavam sua presença
naquele canto do mundo à máquina guerreira de Israel e às alianças com
administrações árabes que lhes eram afáveis. Nos últimos dez anos, no entanto,
trocaram essa política pela intervenção direta.
Essa nova orientação,
contudo, não é o mesmo que abandonar ao léu os velhos amigos. Derrotar o regime
islâmico da antiga Pérsia significaria sensível mudança no equilíbrio regional
de forças. O Estado sionista deixaria de ter qualquer contendor militar à
altura. As frações mais radicalizadas da resistência palestina perderiam seu
principal aliado. Os governos árabes pró-americanos teriam maior tranquilidade
com o possível arrefecimento das correntes islâmicas internas. Pois aí está a
segunda razão para a ofensiva contra Ahmadinejad.
A terceira, mas não
menos relevante, tem alcance mundial. Diz respeito à ordem nuclear forjada após
o final da União Soviética. Mais do que hegemonia econômica e cultural, o
colapso do sistema socialista criou a chance de uma inédita supremacia militar
para os EUA, cujo epicentro é o controle sobre o arsenal atômico e seus
processos de fabricação.
O cerco contra o Irã é concomitante aos
esforços da Casa Branca para rever o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP).
Esse documento, datado de 1968, estabelece o monopólio das armas nucleares nas
mãos de cinco países: EUA, Rússia, França, China e Grã-Bretanha. Os demais
signatários renunciam ao desenvolvimento da energia atômica para fins militares.
Entre essas assinaturas não estão as de Paquistão, Índia e Israel.
Os
limites atualmente prescritos pelo TNP, porém, são insatisfatórios para os EUA e
eventualmente outras nações, pois não coíbem o desenvolvimento completo da
tecnologia nuclear ou a comercialização de urânio enriquecido pelos países que
estão fora do clube da bomba. Esse desconforto levou à convocação da Cúpula
sobre Segurança Nuclear, reunida em Washington dias 12 e 13 de abril.
Sua preparação foi marcada por dois eventos vendidos como "históricos"
pela mídia. Um deles foi o novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start,
em inglês), firmado no dia 8 de abril entre Rússia e EUA, pelo qual cada uma das
potências reduziria para 1.550, até o ano de 2017, suas ogivas nucleares
operacionais. O acordo, no entanto, não estabelece cortes ou limites para
milhares de bombas armazenadas, atendendo exigência da indústria militar
norte-americana e seu lobby parlamentar. Não apenas é tímida a redução do
arsenal nuclear, como permanece intacto seu processo de renovação e
substituição.
O outro acontecimento, no dia 6 de abril, foi a
divulgação, pelo governo norte-americano, de sua nova política de defesa
nuclear. Apesar do alarde de que os EUA não reagiriam com ataques atômicos a
agressões com armas convencionais, químicas ou biológicas, ou contra países que
não possuem arsenal nuclear, ficou estampado no pronunciamento que seriam
abertas exceções contra nações que não fossem signatárias do TNP ou que
supostamente o estivessem violando.
Ambos movimentos foram calculados
para criar um clima positivo na reunião de cúpula, embalando-a com promessas e
gestos pacifistas. De quebra, a Casa Branca conseguiu a boa vontade da Rússia na
questão iraniana, em troca do compromisso de manter desnuclearizados os países
de seu entorno. O mesmo aceno é feito à China quanto à sua zona de influência,
além de outras compensações econômicas.
São passos que têm como um de
seus principais propósitos a conquista de adesões ao protocolo de revisão do
TNP, que amplia os poderes da Aiea (Agência Internacional de Energia Atômica). A
agência passaria a controlar o comércio mundial de urânio enriquecido, mesmo
para fins pacíficos, além de ter o direito de visitas intrusivas, sem negociação
prévia, a países suspeitos. O monopólio atômico, na prática, seria estendido
também ao uso não militar da energia nuclear, que estaria submetido a um sistema
internacional de licenças e controles.
E o que tem o Brasil a ver com
tudo isso?
O presidente Lula declarou que o país não será signatário
desse protocolo, por considerar uma violação à soberania nacional e um obstáculo
ao desenvolvimento do país. Também reafirmou sua convicção contra o caráter
discriminatório do TNP, que em nome da paz preserva o desequilíbrio militar
entre as nações.
Com viagem prevista para Teerã em maio, o mandatário
brasileiro voltou a se pronunciar contra novas sanções aos iranianos. Essa
postura não é ditada apenas pela agenda comercial, importante na estratégia de
diversificação de mercados. Tem a ver, fundamentalmente, com uma razão de
Estado.
A adoção de punições adicionais ao Irã, em uma escalada que a
agressão militar como horizonte, significaria reforço à jurisprudência que
considera a autodeterminação dos Estados nacionais um direito subordinado a
hipotéticos e indivisíveis interesses mundiais, geralmente auto-representados
pela principal potência militar. Por dentro ou por fora das instituições
internacionais, a depender de suas possibilidades e conveniências.
Afinal, o Irã não está envolvido em nenhum conflito armado com seus
vizinhos ou buscando sobrepujar, pela força, direitos de outros povos. Ao
contrário de Israel, país nuclear clandestino, cuja política belicista e de
opressão contra os palestinos desrespeita seguidos acordos e resoluções
internacionais.
Não é preciso, de fato, muito tutano para calcular o
alcance dessa concepção favorável à intervenção preventiva. A quais ameaças
estaria submetido o Brasil, digamos, no caso de eventual escassez de água no
hemisfério norte tornar esse bem um objeto de desejo e necessidade dos tais
"interesses mundiais"? Ou que destino estaria reservado à América Latina se, por
exemplo, viesse a constituir um bloco militar autônomo?
A posição do
presidente Lula sobre o Irã pode até ser minoritária, mas expressa a resistência
dos que defendem, contra a institucionalidade de um império, uma ordem mundial
baseada na união soberana e igualitária de nações livres.
*Breno
Altman é jornalista e diretor editorial do Opera Mundi