Lula x Alckmin: uma exceção à competência de exceção pós-democrática, por Fábio de Oliveira Ribeiro
O Brasil merece um lugar de destaque na história das ideias. Antes de os portugueses chegarem ao litoral que hoje chamamos de paulista, cá existiam Tupis e Tupinambás. Eles pertenciam à mesma etnia, tinham a mesma língua e
costumes, mas uns acreditavam que eram os “verdadeiros homens” enquanto desdenhavam dos outros por serem apenas “homens”.
Esta distinção foi inconscientemente adotada pelos colonos portugueses. Afinal, os conceitos jurídicos de posse e propriedade que eles trouxeram de Portugal não eram considerados válidos e eficazes quando o que estava em disputa eram as terras ocupadas pelos indígenas. Rapidamente, os novos “verdadeiros homens” usaram um artifício para se distinguir melhor dos índios. Todos eram criaturas de deus, mas apenas os cristãos nascidos em famílias tradicionalmente cristãs tinham alma. Os índios, coitados, foram hostilizados porque os colonos acreditavam que eles não tinham nem Deus, nem Lei, nem Rei, nem alma.
A alma do Brasil nasceu assim marcada pela certeza de que a regra está na exceção. Nossa história abunda de exceções. Os negros escravos trazidos da África eram considerados coisas semoventes aos olhos do Direito Civil, mas quando cometiam crimes eles eram tratados como homens sujeitos à Lei Penal. O absolutismo monárquico conviveu no Brasil com a teoria da divisão dos poderes de Charles-Louis de Secondat, dito Barão de Montesquieu, inventando um quarto poder.
O poder moderador da exceção se projetou no espaço político como se nada tivesse ocorrido em 15 de novembro de 1889. Os juízes imperiais e provinciais (caso do meu bisavô) continuaram tranquilamente nos seus cargos como se a fonte do poder constituinte do qual derivavam as suas nomeações (o imperador) não tivesse sido removido do cargo. Além de respeitar um poder judicante sem origem republicana, a nascente republica fardada acrescentou patentes militares aos integrantes do Poder Judiciário durante a Guerra de Canudos. No país das exceções, uma exceção pode ser confirmada por outra.
Notem como a licença poética se imiscuiu de maneira excepcional em nossa historiografia. O vocábulo “guerra” deveria ser utilizado quando dois exércitos regulares de países diferentes se enfrentam. Portanto, podemos dizer que houve uma Guerra do Paraguai. A Guerra de Canudos, porém, foi algo muito diferente. Naquele conflito um punhado de sertanejos maltrapilhos e mal armados ousou enfrentar o Exército derrotando-o duas vezes. A única maneira de salvar a imagem do Exército brasileiro de duas derrotas vergonhosas e de uma vitória mais vergonhosa ainda foi chamar a carnificina de guerra.
Finda a guerra que não foi guerra nos tornamos capitalistas. Mas notem que o próprio capitalismo teve que sofrer uma mutação ao chegar ao Brasil. Os capitalistas produzem objetos manufaturados em escala industrial para vende-los com lucro no mercado. Em nosso país a principal atividade empreendedora é se pendurar no Estado e extrair do erário público quanto for necessário para produzir uma boa vida para si, para os filhos e para as putas.
O moralismo brasileiro também é excepcional. Todo varão brasileiro deve guardar a moral em casa, mas quando chega na casa da puta a moral dele se torna outra. A única coisa que afronta moralmente um moralista brasileiro é ficar sabendo que a filha dele virou puta sem que ele tenha tirado algum proveito disso.
O Brasil foi o maior parceiro comercial da Alemanha nazista fora da Europa, mas entrou na guerra ao lado dos EUA. Vencemos a guerra contra os nazistas, mas as raízes do nazismo germinaram no Brasil após 1964 e voltaram a germinar durante as manifestações de 2015.
A exceção no Brasil não é apenas um regime político como dizem os juristas Pedro Serrano e Rubens Casara. Ela está entranhada bem fundo na consciência nacional. Ela nos define como um povo e, paradoxalmente, nos mantém divididos entre aqueles que são e aqueles que não são, aqueles que tem e aqueles que não tem, aqueles que merecem ter e aqueles que nunca terão direitos.
Isso ficou bem claro durante o julgamento do Mensalão. As regras de competência são as mesmas, mas Eduardo Azeredo (tucano) não foi julgado pelo STF como os outros réus que não tinham foro privilegiado (petistas e pessoas ligadas ao PT). Aquela exceção agora se desdobra para beneficiar Geraldo Alckmin. O ex-governador paulista também meteu fundo as mãos no pote de dinheiro sujo investigado pela Lava Jato. Mas o caso dele não será julgado por Sérgio Moro (Justiça Federal) e sim pela Justiça Eleitoral (composta por juízes eleitorais que ele, como ex-governador que expandiu os privilégios dos membros do judiciário paulista, está em condições de controlar).
A imprensa consolida a exceção dizendo que injusta é a reclamação do PT e não o privilégio concedido ao tucano. Ela também não estranha o fato do todo poderoso juiz da Lava Jato se recusar a dar uma entrevista defendendo sua competência para julgar Alckmin como fez quando queria julgar Lula e o caso do petista estava nas mãos de uma juíza estadual paulista.
Getúlio Vargas foi uma exceção à exceção e a imprensa o obrigou a se suicidar. João Goulart tentou ser uma exceção à exceção e foi exilado e possivelmente assassinado no exílio. Lula se consolidou como uma exceção à exceção, mas acabou sendo condenado de maneira fraudulenta e preso de forma injusta.
As crianças gostam de inventar regras. Mas elas gostam ainda mais de inventar exceções. O tempo da juventude do leviatã brasileiro se esgotou. Nossa maturidade começa a se expressar dentro do país (onde o povo diz não à condenação excepcional de Lula) e a ser cobrada nos países civilizados (em que a justiça brasileira está sendo humilhada em razão em razão de contornar as regras jurídicas para afastar da disputa eleitoral um líder mundialmente reconhecido e respeitado).
Os nordestinos estão com Lula, uma pequena minoria paulista (a ralé togada) se colocou ao lado de Alckmin. Se o judiciário justiça não submeter ambos aos mesmos padrões jurídicos (inclusive no que se refere à competência para julgar a Lava Jato), me parece evidente que o conflito político não chegará ao fim. Muito pelo contrário, ele vai se tornar maior, mais virulento e bairrista, ameaçando a integridade do território nacional. Se a federação explodir, todos os espertalhões do MPF, Justiça Federal, Polícia Federal, STJ e STF ficarão sem emprego. Isso deveria ser o suficiente para eles abrirem uma nova exceção à exceção da exceção.
Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/lula-x-alckmin-uma-excecao-a-competencia-de-excecao-pos-democratica-0