Aldeia Nagô
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Macarthismo das miudezas por Marcelo Coelho

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura

Talvez exista, por trás do escândalo dos
cartões, longa e envergonhada história de amor
.


LEIO, ESTARRECIDO, as últimas notícias de
Brasília. Determinado ministro gastou R$ 8 comendo tapioca. Usou-se cartão
corporativo para reformar uma mesa de sinuca.
A Radiobrás gastou R$ 36 numa
loja de colchões. A explicação: era lona para cobrir um estúdio móvel nas
transmissões do Carnaval.

Fico estarrecido, mas não com as despesas. Não com
a chamada farra dos cartões corporativos. Fico estarrecido com a importância que
se dá a tudo isso.
Não posso entender como um país se esquece de todos os
seus problemas, e até mesmo de casos graves de corrupção, para discutir o fato
de que o ministro dos Esportes usou um cartão corporativo para comer tapioca no
café da manhã.

Abusos certamente existem. O maior deles foi o da ministra da
Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, que teve de deixar o cargo. Fez gastos em
free shop e mesmo nas férias recorreu ao dinheiro público para o aluguel de
carros. Foi fácil verificar isso no Portal da Transparência. Mas, como em
toda corrida do ouro, o garimpo de notícias logo se esgota, e irregularidades
microscópicas são esquadrinhadas como se estivéssemos diante de um novo
mensalão.

Mas me parece nítida a desproporção entre o que foi aquela crise e
o caso dos cartões. O mensalão envolvia bancos, publicitários, partidos e
governo num sistema de financiamento político que tinha sérias repercussões do
ponto de vista institucional e ideológico. Trazia a ameaça da perpetuação no
poder do "núcleo duro" do PT e resultou na completa derrocada do discurso ético
do partido.

Uma CPI para investigar os gastos da cozinha presidencial e dos
seguranças de Lurian talvez chegasse, nunca se sabe, a um grande escândalo. Mas,
como os gastos de Fernando Henrique seriam também investigados em represália,
tudo já se arranja para evitar o aprofundamento da questão.

O rumo das
investigações tende, assim, a desembocar em algum funcionário administrativo de
pouca importância, que pagará pelo erro de ter gasto dinheiro público em coisas
como o forro de uma mesa de sinuca.
Se ao menos a mesa de sinuca fosse
dele… mas estava lá no próprio ministério! E o que dizer do reitor de uma
universidade federal que teve de vir a público, com direito a fotografia e
entrevista, simplesmente porque levou uma comitiva de convidados estrangeiros a
um restaurante de luxo? Só o mais extremo patrulhamento moralista haveria de
tratar o episódio como um escândalo nacional.

Com esse macarthismo das
miudezas, que pode atingir qualquer administração, petista ou tucana, surge mais
um fator de paralisação das atividades do Congresso, que devia estar discutindo
a reforma política e a tributária. No fundo, talvez seja uma forma de fugir de
um debate complexo, que ninguém se dispõe muito a acompanhar.
E talvez
também exista, por trás do escândalo dos cartões, uma longa e envergonhada
história de amor.
Tucanos e petistas possuem muito mais pontos em comum do
que de discordância. Uma prévia desse complexo filme francês está sendo ensaiada
no Estado de Minas Gerais, com o governador Aécio Neves e o prefeito de Belo
Horizonte, Fernando Pimentel.

Qualquer aproximação política entre PT e PSDB
se reveste, entretanto, das cores de um escândalo inconfessável. Programas de
governo semelhantes encontram bases sociais em franca divergência; os eleitores
de um partido têm ojeriza aos políticos do outro, e a disputa eleitoral em cada
cidade não obedece ao consenso programático existente no plano federal. Dada
a falta de nomes fortes no PT, nem chegaria a ser ilógico se uma candidatura de
Aécio Neves tivesse um matiz mais governista do que de oposição. O próprio Serra
discorda menos de Lula do que a "banda de música" que derrotou a CPMF.

O
conflito entre PSDB e governo tem, entretanto, de continuar, ao preço de
escândalos e denúncias de pouca relevância, mas de fácil consumo na opinião
pública. Cria-se então uma CPI em torno de trocados, de tapiocas e colchões.

Trata-se do clássico caso em que os agentes de um processo político perdem a
racionalidade e tornam-se presos a um discurso em que já não acreditam.

Colchões? Mesas de sinuca? Jantares à luz de velas? As vestais enrubescem.
Nunca foram disso.

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