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Marx, pelo livre-comério, contra o protecionismo. Por Paulo Henrique de Almeida

21 - 29 minutos de leituraModo Leitura

Do mesmo modo que o capitalismo real, o socialismo imaginado por Marx
não pode dispensar as tecnologias mais avançadas e a plena utilização
dos recursos do planeta.


Eis porque, segundo Marx, o socialismo, ou
melhor, o que ele chama de "primeira fase do comunismo", pressupõe o
atendimento de dois pré-requisitos ainda nos marcos da evolução da
produção capitalista.

O primeiro é o desenvolvimento das forças produtivas, assegurado pela
aceleração do progresso técnico sob o capitalismo. O progresso
técnico, que resulta da concorrência entre os capitais, é, para Marx,
o fundamento do impulso inicial da grande indústria durante os
séculos XVIII e XIX. Ele engendra a máquina, a fábrica e o
proletariado industrial. Ele implica o desenvolvimento da
produtividade do trabalho e estabelece, por conseqüência, as bases
materiais necessárias à construção de uma nova sociedade humana, nova
utopia, fundada na riqueza, e não mais, como imaginavam
os "socialistas utópicos", na distribuição igualitária de recursos
limitados.

Marx pertence a uma geração de socialistas que acompanha a revolução
industrial, que está hipnotizada pelas conquistas da técnica de então
e que crê na possibilidade da abundância – isto é, no fim da
escassez. Essa geração abandona a idéia de um socialismo na
austeridade, que é típica das utopias mais ou menos ascéticas (ou
espartanas) anteriores à revolução industrial, do tipo das de More,
Mably ou Babeuf. Ao contrário, ela desenvolve uma concepção de
socialismo, já presente no pensamento de autores como Saint-Simon ou
Cabet, que é erguida sobre a proposição da "igualdade na abundância".

Esse novo ponto de vista sobre o socialismo pode ser explicado. No
século XIX, as noções de crescimento e desenvolvimento econômico já
são inseparáveis da idéia de progresso social. Para os socialistas da
época de Marx, a sociedade futura supõe não somente o fim da
exploração do trabalho e da miséria das massas, mas também a
supressão da escassez "relativa", vale dizer, da penúria de todos os
bens que são reprodutíveis.

Eles imaginam que a máquina a vapor, a estrada de ferro e a química
de sua época podem resolver o essencial dos problemas no plano da
produção social. Nesse sentido, para muitos socialistas do século
XIX, uma sociedade fundada na abundância é possível porque ela
depende, sobretudo, de novas condições de distribuição, ou, mais
precisamente, da apropriação social da riqueza potencial já anunciada
pelo progresso técnico sob o capitalismo.

Assim, também para Marx, é o desenvolvimento das forças produtivas
que permite o socialismo. Como ele próprio afirma desde muito cedo:

[…] este desenvolvimento das forças produtivas é uma condição
prática absolutamente indispensável, pois sem ele é a penúria que se
tornaria geral, e, com a necessidade, é também a luta pelo necessário
que recomeçaria, e se cairia fatalmente no mesmo velho estrume. 

Acrescentemos: para Marx, o desenvolvimento das forças produtivas sob
o capitalismo exige a escala planetária.

Seguindo proposições de David Hume e Adam Smith, Marx vai reconhecer
que a constituição do mercado mundial, iniciada com a expansão
colonial da época mercantilista, é não só o resultado, mas também a
fonte de progresso da indústria sob o capitalismo.

De um lado, permitindo a expansão do comércio, o mercado mundial
favorece o desenvolvimento da escala de produção e o acesso a
matérias-primas mais baratas; isso torna possível a redução dos
custos de produção e viabiliza, numa economia concorrencial, a
extensão dos mercados.

De outro, na medida em que permite a unificação econômica do mundo, o
mercado mundial significa a destruição da antiga agricultura
camponesa e da indústria a domicílio em todo o planeta, que
desaparecem esmagadas pela concorrência das mercadorias mais baratas
fabricadas pelos países já industrializados. Resultado último: o
mercado mundial acaba por impor, em todos os lugares, a grande
indústria e o assalariamento generalizado.

A escala planetária do desenvolvimento das forças produtivas
capitalistas determina a imposição de relações universais à
humanidade, pois "[…] o isolamento primitivo das nações individuais
é destruído pelo modo de produção aperfeiçoado pela circulação e
divisão do trabalho entre as nações […]".

A própria aparição do proletariado – a classe social que poderia
erguer uma nova sociedade – é também um fenômeno internacional: o
proletariado é uma classe mundial. Se é certo que a afirmação do
trabalho assalariado resulta inicialmente do progresso técnico e do
desenvolvimento da grande indústria, este progresso e este
desenvolvimento, têm, por sua vez, um caráter global. Nessa
perspectiva, o proletariado é o produto da construção do mercado
planetário e do estabelecimento de uma "concorrência universal", pois
este mercado e esta concorrência engendram "simultaneamente em todos
os países" o fim das formas primitivas de trabalho. Em outros termos,
diz Marx, o proletariado "supõe o mercado mundial". E esse fato tem
conseqüências importantes:

[…] o proletariado só pode existir como força histórica e mundial,
do mesmo modo que o comunismo, ação do proletariado, só é concebível
como realidade `histórica e mundial’; existência histórica e mundial
dos indivíduos, vale dizer que estes indivíduos levam uma existência
que se amarra diretamente à história universal.

A segunda condição prévia para o socialismo é assim a divisão
internacional do trabalho, isto é, o estabelecimento do mercado
mundial.

Resumamos o ponto de Marx sobre essa questão. O desenvolvimento das
forças produtivas em escala universal, nos marcos do mercado mundial
capitalista, leva a divisão social do trabalho ao seu limite
capitalista e incrementa de um modo até então desconhecido a
produtividade do trabalho social. Isso significa dizer que este
desenvolvimento engendra a interdependência econômica dos homens, dos
povos e das nações e que ele conduz, graças à concorrência, à
homogeneidade (sob a forma capitalista) da economia planetária.
Segundo Marx, a interdependência e a homogeneidade econômicas do
mundo são, respectivamente, a condição "sine qua non" e a
condição "absolutamente indispensável" do novo modo de produção.

Para Marx, o capitalismo tem assim uma missão, que é preparar as
bases objetivas do socialismo: a grande indústria, o mercado mundial,
o proletariado enquanto classe universal. Marx o afirma várias
vezes. Citemos, por exemplo, esta passagem de um dos seus artigos
mais conhecidos:

O período burguês da história tem por missão criar a base material do
mundo novo, de uma parte, a intercomunicação universal fundada sobre
a dependência mútua da humanidade e os meios desta intercomunicação;
de outra parte, o desenvolvimento das forças de produção do homem e a
transformação da produção material em uma dominação científica dos
elementos. A indústria e o comércio burgueses criam as condições
materiais de um novo mundo da mesma maneira que as revoluções
geológicas criaram a superfície da terra. Quando uma grande revolução
social tiver controlado essas realizações da época burguesa, o
mercado mundial e as modernas forças de produção, e as tiver
submetido ao controle comum dos povos mais avançados, somente então o
progresso humano deixará de parecer com essa horrível ídola pagã que
só queria beber o néctar no crânio das vítimas.

Ora, se assim é, o socialismo supõe realmente o desenvolvimento do
capitalismo, ou, para ser mais preciso, ele supõe a maturidade do
capitalismo. Pierre Rosanvallon não está inteiramente errado quando
nota que, para Marx:

O capital só pode ser superado a partir do seu triunfo absoluto
[…]. Ele só concebe o comunismo, portanto, como a conclusão do
processo histórico que o capitalismo já porta: assim que
empobrecimento da massa da humanidade coincidir com um
desenvolvimento das forças produtivas que permita realizar a
abundância. Marx considera assim explicitamente que é do pleno
sucesso econômico capitalista que depende a possibilidade de sua
abolição. […] Se o capitalismo não cumprisse sua missão histórica,
se ele não levasse às portas da abundância, o comunismo se tornaria
impossível.

Uma interpretação hiperbólica? Rosanvallon não exagera um pouco
quando insiste sobre a necessidade de um sucesso "completo" do
capitalismo – segundo a teoria revolucionária elaborada por Marx?
Talvez. Lembremos em todo caso que uma das fórmulas mais célebres de
Marx é a que afirma: "uma formação social não desaparece antes que se
tenham desenvolvido todas as forças produtivas para as quais ela abre
espaço". Bem entendido, essa fórmula não se aplica a um Estado
isolado. Trotsky e outros lembraram que Marx a propõe com os olhos na
evolução do capitalismo no plano mundial. 

O problema, nessa perspectiva, está em outro ponto: para Marx, o
capitalismo já era um sistema economicamente maduro, ou "plenamente
bem-sucedido", ao final do século XIX. A prova, segundo o filósofo:
as estruturas sociais e políticas, que continuavam nacionais, já se
tornavam obstáculos para o desenvolvimento das forças produtivas
mobilizadas pelo capital. Estas exigiam um campo de ação globalizado.
Daí, aliás, a necessidade de uma revolução na escala internacional.

Insistamos. De acordo com Marx, esse campo de ação – o mercado
mundial – já está verdadeiramente estabelecido no século XIX? Sim,
responde o filósofo-economista alemão, pelo menos "em suas grandes
linhas":

A verdadeira missão da sociedade burguesa é criar o mercado mundial,
pelo menos em suas grandes linhas, assim como uma produção
condicionada pelo mercado mundial. Como o mundo é redondo, esta
missão parece concluída desde a colonização da Califórnia e da
Austrália e abertura do Japão e da China.

 No que concerne ao caráter internacional do modo de produção
capitalista, o pensamento de Marx continua tributário do de Smith e
Ricardo. Como Smith e Ricardo, Marx (que via o mundo do ponto de
vista de Londres) se espanta com a extensão mundial do comércio e da
nova indústria. Do mesmo modo que os precursores da Escola inglesa,
ele constata que o capitalismo não é um fenômeno nacional, mas sim um
modo de produção internacional, e mesmo cosmopolita. Ele também
admite que a economia capitalista marcha na direção de uma
déterritorialisation progressiva. E pensa que a época da
correspondência entre o espaço político moderno (o território do
Estado nacional) e o espaço econômico (o mercado) é passada. O
mercado, pensa Marx, desenvolvendo-se sob o capitalismo, tornou-se
mundial, isto é, sem fronteiras. Sobre este ponto o Manifesto
Comunista de 1848 é de uma clareza absoluta:

Explorando o mercado mundial, a burguesia deu uma forma cosmopolita à
produção e ao consumo de todos os países. Para o grande pesar dos
reacionários, ela tirou da indústria sua base nacional. As velhas
atividades nacionais são destruídas, ou o serão logo. Elas são
destronadas pelas novas indústrias, cuja adoção se torna uma questão
vital para todas as nações civilizadas, e que empregam matérias-
primas oriundas, não mais do interior, mas das regiões mais
distantes. Os produtos industriais são consumidos não somente no
próprio país, mas em todas as partes do mundo. As antigas
necessidades, satisfeitas por produtos nacionais, dão lugar as que
exigem produtos de países e climas longínquos para sua satisfação. O
antigo isolamento e a autarcia local e nacional dão lugar a um
tráfico internacional, uma interdependência universal das nações.

 E o Manifesto afirma ainda que, nesse sentido, a tarefa do
proletariado é terminar a obra iniciada pela burguesia:

As particularidades nacionais e os contrastes entre os povos
desaparecerão cada vez mais com o próprio desenvolvimento da
burguesia, a liberdade do comércio, o mercado mundial, a uniformidade
da produção industrial e as condições de existência que lhes
correspondem.
"A dominação do proletariado os fará desaparecer mais rápido ainda. A
ação em conserto do proletariado, pelo menos nos países civilizados,
é uma das primeiras condições para sua emancipação
Se para Marx o capitalismo é um modo de produção cosmopolita que
torna anacrônicas as antigas fronteiras dos mercados nacionais, o
socialismo, por sua vez, só pode ser um sistema construído na escala
universal. Isso decorre da própria lógica da interpretação
materialista da história: o socialismo só pode ser um modo de
produção superior ao capitalismo. Ele supõe não somente um nível mais
desenvolvido das técnicas, mas também uma divisão internacional do
trabalho plenamente estabelecida.

Do ponto de vista de Marx, essa premissa impõe duas conclusões
importantes.
Em primeiro lugar, a transformação revolucionária do capitalismo deve
ser prevista como um processo que engloba, simultaneamente ou quase
ao mesmo tempo, todos ou quase todos os países capitalistas mais
avançados. "O comunismo só é empiricamente possível como o
ato `súbito’ e simultâneo dos povos dominantes […]".

Já sublinhamos esse ponto. De acordo com Marx, o desenvolvimento
capitalista engendra ao mesmo tempo a interdependência entre as
economias nacionais e a homogeneidade das sociedades nacionais. Daí a
repercussão inevitável de uma revolução inicialmente nacional sobre
os outros países do globo. O modelo, explícito, é o das revoluções
européias de 1848.

Notemos ademais que se a coexistência entre Estados socialistas do
futuro (desenvolvidos) e países pré-capitalistas (ou não-
desenvolvidos) pode ser imaginada, a mesma lógica exige que esta
coexistência seja efêmera. Já sob o capitalismo, a interdependência e
a homogeneidade dizem respeito também às relações entre países
desenvolvidos e nações retardatárias. E mais: o socialismo seria para
os retardatários, na hipótese de revoluções bem sucedidas na Europa,
a única possibilidade de sair do atraso econômico e social.

O jovem Friedrich Engels resume estas proposições em 1847, um ano
antes da publicação do Manifesto, num texto que teria inspirado este
último.

 Esta revolução poderá ser realizável num só país? Não. Pelo simples
fato de ter criado o mercado mundial, a grande indústria aproximou
todos os povos do globo e notadamente as nações civilizadas, de sorte
que cada povo depende do que se passa com os outros. Além disso, ela
equalizou o desenvolvimento social de todos os países civilizados, a
tal ponto que, em todos estes países, a burguesia e o proletariado se
tornaram as duas principais classes da sociedade, e a luta entre
estas duas classes está na primeira da ordem do dia. Eis porque a
revolução comunista não será só nacional, mas se produzirá
simultaneamente em todos os países civilizados, isto é ao menos na
Inglaterra, na América, na França e na Alemanha. Ela se desenvolverá
mais ou menos rapidamente em cada um desses países de acordo com o
grau de desenvolvimento da sua indústria, do tamanho de sua riqueza,
da massa de suas forças produtivas. […] Ela terá as maiores
repercussões sobre os outros países do mundo; ela mudará
completamente e acelerará fortemente o ritmo de sua evolução. É uma
revolução universal; será necessário para ela, por conseqüência, um
terreno universal.

Em segundo lugar, ainda segundo o raciocínio de Marx, a hipótese de
um Estado socialista comercialmente fechado deve ser descartada como
uma conjectura absurda. Mesmo um economista ultra-liberal como Ludwig
von Mises reconhece essa "superioridade" do pensamento de Marx em
relação às proposições mais ou menos autárcicas dos primeiros
socialistas utópicos (Fourier, Owen e outros). Von Mises tem absoluta
razão quando escreve:

Na lógica do marxismo [Von Mises quer dizer de Marx] a questão se
esta ou aquela nação está "madura" para o socialismo não pode nem ser
colocada. O capitalismo torna o mundo maduro para o socialismo, não
uma nação isolada ou uma indústria determinada. […] Para o
marxista, por conseqüência, o problema da autarcia da comunidade
socialista não pode nem se apresentar. A única comunidade socialista
que ele pode conceber compreende a espécie humana inteira e toda a
superfície do globo. Para ele, a gestão econômica do mundo deve ser
unitária.

Examinemos, na seqüência, o que Marx pensava sobre o livre-comércio.
Vejamos como sua posição – de extrema-esquerda – é completamente
distinta do nacionalismo econômico vulgar dos partidários
contemporâneos, "trotskistas" ou "stalinistas", de uma utopia
reacionária recorrente: o "socialismo em um só país".

Marx, pelo livre-comércio

Marx é, em princípio, favorável a liberalização do comércio
internacional. Ele o afirma desde 1848 em seu Discurso sobre o livre-
câmbio e ele mantém esse ponto de vista até o fim da sua vida, como
lembra Engels no seu prefácio para a edição norte-americana do
Discurso, publicada em 1888.

 Todavia, Marx se opõe radicalmente aos argumentos livre-cambistas de
um Richard Cobden ou de um Jean-Baptiste Say. Ele não crê que a
liberdade de comércio melhore as condições de vida da classe
operária. Também não acredita que o livre-câmbio implique a
fraternidade entre as nações. Para Marx, muito ao contrário, a
liberdade de comércio é apenas um meio para aumentar a taxa de lucro
industrial, na medida em que ela barateia os bens de subsistência
necessários à força de trabalho e os elementos do "capital constante"
(matérias-primas e máquinas). Além disso, o livre-câmbio só pode
significar exploração internacional, pois no plano do comércio entre
nações, não apenas a troca pode ser desigual, mas também a
especialização das economias nacionais tende a provocar, por si
mesma, a desigualdade.

Expliquemos esta última proposição. Marx, como escreve René
Sandretto, admite, à maneira de Ricardo, que o comércio entre dois
países em graus diferentes de desenvolvimento "[…] melhora a
situação econômica de cada um no imediato, uma vez que permite […]
aumentar o consumo em cada país a um custo menor". No entanto,
acrescenta Marx, graças à produtividade superior de sua economia, um
país industrializado incorpora menos trabalho nas mercadorias que
exporta, em comparação com o trabalho incorporado aos bens que ele
importa de um país de economia atrasada. E são as quantidades de
trabalho presentes nas mercadorias que "[…] dão a verdadeira medida
do esforço produtivo, isto é, os verdadeiros sacrifícios consentidos
por cada país". Isto significa, como afirma ainda Sandretto,
que "[…] os termos de troca fatoriais (relação das quantidades de
trabalho exigidas respectivamente pelas exportações e importações)
são, assim, desfavoráveis ao país menos desenvolvido, que
é "explorado" no plano das prestações mútuas em trabalho".

Marx lembra também que a tese ricardiana sobre os efeitos
equalizadores do comércio exterior no que concerne o desenvolvimento
não é verificável empiricamente. O comércio entre países com
desenvolvimento desigual tende a reforçar uma divisão internacional
do trabalho desigual. O livre-câmbio implica, de um lado, a afirmação
de uma indústria global cada vez mais desenvolvida; de outro, a
destruição das atividades industriais ou artesanais nos países
retardatários. Estas não podem resistir à concorrência imposta pelas
potências tecnicamente dominantes.

Marx se afasta, assim, do otimismo ricardiano no que diz respeito ao
comércio internacional e pode dirigir aos livre-cambistas da Anti-
Corn Laws League esta contestação virulenta:

 Se os livre-cambistas não podem compreender como um país pode
enriquecer às custas de outro, nós não devemos nos surpreender com
isso, pois estes mesmos senhores não querem compreender também como,
no interior de um país, uma classe pode se enriquecer às custas de
outra classe.

Nós poderíamos esperar desse posicionamento que Marx apoiasse o
protecionismo, como o faz a maioria dos socialistas marxistas desde o
final dos anos 1870. Mas ele não faz isso. Marx se opõe ao
protecionismo do seu tempo porque ele o vê como um anacronismo. Para
ele, o protecionismo industrial é apenas, em última instância, uma
sobrevivência do antigo sistema mercantilista. Para Marx, o
protecionismo é neo-mercantilismo; o livre-câmbio, diz ele, é o
estado "normal" da produção capitalista depois da revolução
industrial.

 Certo, podemos sempre lembrar que Marx distingue dos tipos de
protecionismo. O primeiro diz respeito ao período da "acumulação
primitiva", isto é, ao período mercantilista propriamente dito. Este
protecionismo é um "[…] meio artificial de fabricar fabricantes, de
expropriar os trabalhadores independentes, de converter em capital os
instrumentos e condições materiais do trabalho, de abreviar à força a
transição do modo tradicional de produção para o mundo moderno".

O segundo, aquele que surge após a revolução industrial, é somente
uma "[…] necessidade temporária na luta da concorrência
internacional".

Tanto faz. Para Marx, as duas formas são no fundo equivalentes, na
medida em que levam aos mesmos resultados: "[…] quaisquer que sejam
os motivos, as conseqüências [do protecionismo] restam as mesmas".
Mas de quais conseqüências se trata? Marx responde no Discurso: o
estabelecimento da grande indústria, que implica, obrigatoriamente, a
dependência do mercado nacional em relação ao mercado internacional
e, portanto, no longo prazo, a necessidade para a indústria nacional
de se abrir ao livre-comércio. Ou, como afirma Engels, de um modo
também explícito, se dirigindo aos industriais europeus em 1888:

[…] qualquer que seja a via que vocês escolherem, protecionismo ou
livre-câmbio, o resultado não será mudado por isso; vocês só mudarão
a duração do prazo que resta para vocês, até o resultado. Pois muito
antes, o protecionismo terá se tornado um obstáculo insuportável para
cada país que aspire, com alguma chance de sucesso, a uma posição
independente no mercado mundial."

Eis porque segundo Marx e em tese, não serve para nada opor o
protecionismo ao livre-câmbio, como não cansa de fazer a lógica
binária da atual esquerda "marxista". Protecionismo e livre-comércio
são dois caminhos paralelos que levam ao mesmo destino: à
industrialização e, por conseguinte, à integração da economia
nacional ao mercado mundial. Mas é preciso sublinhar: não serve para
nada em teoria. No que se refere à prática política, sua posição é
diferente: segundo Marx, é necessário se opor ao protecionismo e
apoiar o livre-câmbio. Se o protecionismo é em última instância uma
sobrevivência da era mercantilista, se o livre-comércio representa o
estado "normal" e, sobretudo, o futuro do capitalismo industrial, é
necessário, portanto, no plano da política, reconhecer que o primeiro
é "conservador", enquanto o segundo é progressista. Progressista,
pensa Marx, uma vez que só o livre-câmbio "[…] dissolve as antigas
nacionalidades e impulsiona ao extremo o antagonismo entre a
burguesia e o proletariado […]", porque somente "[…] o sistema da
liberdade comercial apressa a revolução social".

Expliquemos um pouco melhor esse posicionamento perturbador de Marx.
Insistamos, inicialmente, sobre um ponto: toda sua obra econômica é
atravessada por um discurso fortemente contrário à proteção. Marx
critica não apenas os partidários da "proibição aduaneira" radical,
tais como Ferrier, mas também aqueles que sustentam a idéia de um
protecionismo simplesmente "educador" à maneira de List.

É necessário perceber no pensamento de Marx o pano de fundo do
liberalismo, do qual ele é ao mesmo tempo crítico e tributário.
Pierre Rosanvallon tem razão quando afirma que se Marx se pronuncia a
favor do livre-câmbio "numa ótica radicalmente diferente da de
Bastiat, por exemplo," isso não impede "que ao mesmo tempo, Marx
continue prisioneiro de uma economia política clássica, que ele
enxerga como "a expressão teórica exatamente adequada à natureza real
da sociedade capitalista". Com efeito, "persistindo a tomar o
capitalismo como a realização da ideologia liberal", Marx pensa
que "o capitalismo só realiza seu `programa’, sua missão histórica,
se ele encarna a utopia liberal" O que significa dizer, neste caso
concreto, que o livre-câmbio deve vencer para que a unificação
econômica do planeta (isto é, a interdependência e a homogeneização
econômicas sob o capitalismo) possa conduzir o mundo mais rapidamente
para o comunismo.

Mas voltemos agora ao que é mais importante. Deriva do ponto de vista
de Marx sobre o comércio internacional um corolário político maior:
os socialistas, longe de se abster no debate sobre o protecionismo,
devem, ao contrário, tomar uma posição clara em favor do livre-câmbio.

Em nosso conhecimento, existe apenas uma passagem na obra de Marx em
que ele parece se contradizer. Trata-se de uma carta enviada a
Engels, na qual Marx discute as relações entre a revolução proletária
na Inglaterra e a questão nacional na Irlanda. Nesta carta, ele
reconhece que a união da Irlanda à Grã-Bretanha (1801) teve como
resultado a destruição da antiga indústria irlandesa. Defende então a
idéia segundo a qual a independência política da Irlanda
(reivindicada desde 1820 pelos irlandeses) deve ser completada pela
criação "de tarifas protecionistas contra a Inglaterra".

Mas, neste caso, não se trata absolutamente de propor uma estratégia
de desenvolvimento nacional para a Irlanda à maneira de List. O que
interessa então a Marx é antes de tudo a revolução na Inglaterra. Ele
pensava, anteriormente, que a resolução da questão irlandesa dependia
da revolução socialista inglesa. Mas havia mudado de opinião, e
acreditava nessa época (1867) que era a independência política e
econômica da Irlanda que seria fundamental para acelerar o processo
de emancipação do proletariado inglês. Não se trata tampouco de
sugerir um "protecionismo socialista" ao modo bolchevique. Muito mais
simplesmente, como lembra Maurice Barbier, sua posição sobre a
questão confirma apenas "sua concepção instrumental da independência
nacional, que não se justifica em si mesma, mas permanece subordinada
às exigências da revolução [mundial]".

Como sabemos, o ponto de vista de Marx no que concerne o livre-
comércio como bandeira estratégica foi abandonado pela maior parte
dos socialistas "marxistas". Depois dos anos 1870 e para irritação de
Engels, as proposições da maioria dos social-democratas se tornaram
muito mais próximas de um List, e mesmo das concepções autárcicas de
um Fichte, do que das teses do autor de O Capital. A capitulação da
social-democracia européia ao nacionalismo que contribuiu para a
guerra de 1914-1918, a vitória da tese do "socialismo em um só país"
na URSS de Stalin, a adesão, nos países atrasados, dos comunistas às
teses do nacional-desenvolvimentismo, a guerra fria, que leva estes
mesmos comunistas a passarem do anti-imperialismo ao simples combate
contra o capital e as importações norte-americanas, são uma sucessão
de processos que levarão a emergência dessa figura muito estranha:
o "marxista" ultra-protecionista do século XXI, inimigo jurado dos
blocos de livre-comércio.

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