Nietzsche, a Esquerda e o Poder da Interpretação. Por Sergio Alarcon
– Um convite ao pensamento além dos rótulos
É comum, sobretudo em tempos de disputas ideológica baseadas em fake news e ignorância, que certos pensadores sejam alistados – à força – em trincheiras que jamais habitaram.
Friedrich Nietzsche é, talvez, a vítima mais recorrente desse expediente. Especialmente entre não-filósofos – e mesmo que esses não-filósofos estejam dentro de alguma faculdade de filosofia, o que confere certa dramaticidade ao caso.
Cento e vinte cinco anos após sua morte, é inegável que Nietzsche continua a provocar, confundir e, sobretudo, escapar.
Dizer que Nietzsche “não pode ser de esquerda” é não apenas anacrônico, mas revela uma compreensão reducionista de sua obra e do que pode ser a própria esquerda.
Nietzsche não se encaixa em categorias morais nem políticas pré-estabelecidas. Sua filosofia é um campo de batalha: entre a afirmação e a negação, o niilismo e a sua superação, o rebanho e o criador de novas formas de vida.
– Nietzsche e o Nazismo: um casamento póstumo e forçado
A acusação de que Nietzsche foi o “filósofo do nazismo” ignora o contexto histórico e é, quem sabe, a mãe de todas as fake news que hoje aflige a filosofia.
Nietzsche morreu em 1900, e o nazismo só emergiria como força política nos anos 1920 e 30. A apropriação nazista de sua obra foi mediada pela irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, entusiasta do antissemitismo e do pangermanismo, que editou e distorceu seus fragmentos póstumos (como em A Vontade de Poder).
A maior parte dos estudiosos contemporâneos, mesmo os críticos de Nietzsche (os reconhecidos pela rigor e seriedade), reconhecem que ele rejeitava o nacionalismo alemão, o antissemitismo biológico e o culto à autoridade. Em carta célebre, Nietzsche criticou o marido de sua irmã por seu antissemitismo vulgar.
Se os nazistas se apropriaram de Nietzsche, também o fizeram com Wagner, com Lutero, com mitos nórdicos – e com símbolos do Cristianismo (não esqueçam de que o maior símbolo nazista era uma cruz e seu lema dizia “Alemanha acima de Tudo /Deus acima de todos”).
– Nietzsche e a crítica à igualdade
Nietzsche não foi um pensador da igualdade. É fato. Ele criticava a moral da compaixão, a piedade como disfarce do ressentimento, a homogeneização dos valores. Mas sua crítica não é à justiça social – é à moral como submissão do forte ao fraco, como ressentimento disfarçado de virtude.
Essa crítica pode, sim, ser mobilizada por pensadores de esquerda – desde que não confundam igualdade com uniformização, nem justiça com ressentimento. Michel Foucault, por exemplo, encontra em Nietzsche as bases para sua crítica à genealogia do poder. Gilles Deleuze lê Nietzsche como o pensador da diferença afirmativa, oposto ao niilismo reativo. Judith Butler, no campo da teoria de gênero, se vale de Nietzsche para pensar a performatividade e o poder dos discursos.
A esquerda nietzschiana não é a da ortodoxia, do igualitarismo mecânico ou do Estado tutor. É uma esquerda crítica, plural, trágica e vitalista – que ousa pensar em equidade no lugar da igualdade; que recusa o conforto das morais herdadas e busca criar valores outros, mesmo em meio às ruínas…
– Eterno Retorno, Super-Homem e outras potências
Algumas críticas ao velho bigodudo chegam ao absurdo. Por exemplo, dizer que conceitos como o eterno retorno ou o Übermensch (melhor tradução é “alem-do-homem”, mas já foi traduzido por “super-homem”) são “místicos ou racistas” revela ignorância ou má-fé. O eterno retorno é uma provocação na qual Nietzsche tenta responder a uma questão ética radical: “você viveria sua vida exatamente como ela é, infinitas vezes”? Já o Übermensch não é um ariano, nem um ditador, nem personagem de gibi. É uma “forma” que supera a atual “forma-homem” (o livro As Palavras e as Coisas, de Foucault, é todo ele sobre a superação da “forma-homem”): é aquele que cria valores próprios, que supera o niilismo e não transfere sua vontade de poder a um outro transcendente – seja Deus, o Estado ou o Partido.
Enfim, Nietzsche não é um pensador fácil. Nem deve ser. Não serve a preguiçosos. Não oferece sistemas, mas provocações. Lê-lo exige disposição para o desconforto, para a ambiguidade, para a interpretação. Sua filosofia é mais próxima da arte do que da doutrina. É, como ele próprio diz, uma dança em corda estendida sobre o abismo.
– Contra os dogmas: pensar é perigoso
Por isso mesmo, Nietzsche deve ser lido – e criticado, no sentido filosófico – por todas e todos (não se pensa como Nierzsche, mas com Nietzsche, às vezes contra Nietzsche). Inclusive, e talvez sobretudo, por quem se diz de esquerda. Quem recusa Nietzsche em nome de uma suposta pureza moral está mais próximo da censura religiosa – e do próprio nazismo e suas variantes, inclusive a brasileira com a Orcrim do Jair – do que da liberdade iluminista. E a esquerda que teme Nietzsche está fadada a repetir os erros do moralismo que ele tanto combateu.
Nietzsche não é um mestre. É um agonista fecundo (no sentido grego da agonística). Um pensador do risco. Um autor que não se lê impunemente. E é justamente por isso que permanece necessário, cento e vinte cinco anos após sua morte.
