No princípio era o mercado… por Sérgio São Bernardo
O sentido civilizatório do Mercado de São Miguel. Concebido na década de 50 e inaugurado em 1965, no ano de meu nascimento, o Mercado de São Miguel é hoje um instrumento público em decadência.
Ali vivi parte de minha infância e adolescência. No restaurante chamado O
Petisco, de propriedade de meus pais – os quais haviam fixado residência nos
fundos do estabelecimento-, vivi aquela época como um dos momentos mais
profundos para a minha compreensão de vida e de minha visão de mundo. Alí,
junto aos meus irmãos Caco, Sinho, Nem e Carla, construí sentimentos que servem
agora para minha conexão com o restante do mundo.
O mercado popular é uma micro sociedade e dali podemos entender toda a
complexidade da vida humana. Ressignificar o Mercado de São Miguel nos ajuda
a respeitá-lo como parte da experiência portuguesa e
africana: um mundo que se origina e constitui nele e dele se ramificou como
espaço de comunicação e alteridade.
Como toda a cidade da Bahia, nas décadas passadas, o mercado de São Miguel era
um centro de boemia: nele roubei frutas e verduras para fazer a sopa no final
da tarde e assistir filmes de heróis e bandidos; vendi folhas sagradas sem
saber que, no futuro, me tornaria um filho de orixá. Era algo, apoteótico: a
cadeia, o lixo, a parte das aves, de carnes, da farinha, das verduras e frutas,
das
folhas.
Lembranças que se tornam imagens reais de personagens que construíram meu
sentido de vida. Sr. Aurino, Sr. Manoel, Ratinho e Neném do açougue. Sr.
Domingos, D. Geninha das folhas, Deco do restaurante, Ulisses dos cereais,
Elias das verduras, Vicente das verduras, Paulo e Jabuti do açougue, Pedro e
Izabel do restaurante, Pedrinho do restaurante, André dos cereais, Kiba,
barbeiro, José Antero, Sr. Amaro da Radiola de ficha, Augusto da Banana,
Augusto Pequeno, Augusto Grande. As mais ricas e marcantes belezas da vida da
gente pobre. Não posso esquecer-me de figuras exóticas e ilustres como Sissi,
Meu Papa Desceu, Sr Antonio, Goiaba, Floripes, Creuza, Martin e tantos outros.
Sinto-me ainda mais feliz por ter desenvolvido minha visão de mundo a partir do
mercado e, por ele, reconhecer, que parte dos ensinamentos aprendidos com o
espirituoso professor Jaime Sodré, serve-me hoje como sentido de minha
existência. Foi no mercado que aprendi a ensinar meus alunos sobre sociedade e
sobre consumo. Posto que ali se experimenta o que viríamos a chamar mais tarde
de relações de consumo. Vivi a essência do que representa o crédito, a
capitalização e as técnicas de venda, bem como experiências mais sofisticadas
de publicidade e propaganda.
O mercado serve para discutirmos o papel do poder feminino na sociedade baiana
e a sustentação da família. O mercado restabelece valores comunitários e
emancipatórios, tal como os antigos o faziam. Esta coisa de mercado como
sinônimo de usurpação e controle político é coisa da historia recente da
humanidade. Aqui falo de um mercado como espaço de realização humana, não
como sinônimo de acumulação e miséria perpetuados por um modelo desastroso de
organização da produção e distribuição da mercadoria e da vida em sociedade.
O Mercado de São Miguel é um grandioso santuário vivo da nossa cultura e
civilização. Tombado pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, hoje passa por
uma retomada de seu valor e utilidade. A Via Histórico, como foi denominada por
João Filgueiras Lima (Lelé), terá um elevador com vista panorâmica que dará acesso
ao mercado, para facilitar o deslocamento dos pedestres até o estabelecimento
comercial. Terá também uma passarela que fará a interligação entre o Centro
Histórico e a Avenida Joana Angélica, viabilizando mais um acesso ao Centro
Histórico de Salvador.
Aristóteles já nos teria lembrado que a vida humana se constitui em trocas e o
mercado é a lembrança mais expressiva da troca humana e seu sentido
civilizatório e creio que assim deva ser visto e vivenciado.
“O consumo – já dizia o alemão Marx -, produz de uma dupla maneira a produção:
Primeiro porque o produto não se torna produto efetivo senão no consumo” Como
arremate, o velho Milton Santos nos dizia: primeiro o mercado produz o
consumidor para depois produzir o produto. Como professor de Direito do consumidor,
vejo que nada é novo. Tudo é velho com nome novo. Tava tudo lá no velho Mercado
de São Miguel e eu não sabia que sabia e que seria uma conseqüência de tudo que
vivi naquele espaço. Agora sei o quanto aprendi. Sei que o que sei hoje, fora
gestado naquela relação de lugar e tempo.
Lembro ainda da morte do advogado do povo – o visionário Major Cosme de Farias
– o féretro tinha mais de cem mil pessoas. Aquilo ficou cravado na minha mente
de forma impiedosa e lírica. Um vulto fantasmagórico na imagem oceânica
de uma criança pobre. Sou um produto de um Cosme de Farias. Nunca mais
achei que seria o mesmo. Tinha apenas sete anos.
Tantos anos depois, tornei-me advogado e sei que o papel do Direito é
democratizar o acesso à justiça e estar a serviço de um projeto que liberte as
pessoas. Abrir espaços para uma vida comunitária de trocas materiais e
simbólicas como sintoma de uma vida digna.
*Sérgio São Bernardo, professor
do curso de Direito da UNEB, advogado e candidato a deputado estadual pelo
PT/BA.