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O deus do século XX por Henrique Wagner
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Qua, 01 de Janeiro de 2014 22:43

henriquewagner2Tudo começa no umbigo, de certa forma, e só depois do umbigo é que o homem – por exemplo – alcança a cidade, o país, o mundo e, por fim o espírito – o espírito da coisa, pois não sei se existe espírito no sentido dado ao termo pelos espiritualistas e espiritistas.

Por isso começarei pelo meu quintal para chegar a uma ideia maior, a uma visão macrocósmica do assunto deste artigo.

Sou extremamente, patologicamente ansioso – eu seria o dramaturgista, e não o dramaturgo de uma peça. Chego sempre uma hora antes de meu horário à sessão da análise que faço há alguns meses com uma renomada psicanalista baiana. Por conta de tal antecipação, acabei conhecendo Alexandre*, um jovem ensimesmado, alto e magro, com prováveis 25 anos de idade, sempre calado e de perfil (ele senta de lado para mim, sempre, e não vira o rosto de maneira alguma), o paciente ou cliente das três e trinta da tarde. Há meses vejo-o toda segunda-feira, usando invariavelmente bermuda e sandálias e camisetas básicas. O cabelo está sempre despenteado, o que lhe dá um ar não exatamente de pressa ao sair de casa, mas de descaso com a sua aparência física. Talvez ele nem mesmo se olhe no espelho.

Ele jamais deu uma palavra, e eu aproveito para ler algum livro que sempre carrego na bolsa, enquanto espero minha vez de entrar na sala das palavras e interpretações de significantes, mais que de significados. Terminei alguns livros muito bons em sala de espera, durante minha ainda curta vida. Alexandre sequer percebe que estou lendo, e menos ainda que, de quando em quando, volto a seu perfil, como se pensasse em pintá-lo ou fazer dele minha heráldica.

Um dia eu estava mais ansioso que de ordinário e, saindo da fisioterapia – a ansiedade e a tensão, problemas que tenho desde a infância, comprometeram a disposição de minha cervical, de modo que, por conta disso, tenho sintomas insuportáveis, kafkianos na cabeça –, que faço numa clínica na Pituba, peguei o ônibus mais cedo – sem matar o tempo em alguma lanchonete, por exemplo –, em direção a Garibaldi, onde fica o consultório de minha analista. O ônibus estava praticamente vazio: havia apenas dois idosos em suas cadeiras preferenciais, e eu, numa cadeira de janela, como se diz vulgarmente. Dois pontos depois, surge uma figura grande e um tanto desengonçada, feito uma criança precocemente espichada, diante de mim sentado: é o Alexandre. Tomei um susto. Pensei: puxa, será que já estou na sala de espera do consultório e não me dei conta? Ando tão mal da cabeça... Não, eu havia antecipado tanto a minha consulta que alcancei a saída de casa do paciente ou cliente anterior a mim, justamente o Alexandre. Eu estava quase provando, na prática, uma teoria da física que já possibilita o homem a viajar no tempo, faltando apenas o veículo necessário, com sua enorme velocidade, para tal proeza.

Achei que finalmente fosse ouvir a voz de Alexandre e talvez mesmo trocar algumas palavras com ele. Ledo e ivo engano, como diria o Luis Fernando Veríssimo. Ele, o paciente ou cliente do cabelo despenteado, seguiu a viagem inteira fazendo o papel daquelas figuras da pintura rupestre, sempre de perfil. E sem palavra. Nem mesmo lançada ao vento. Ele sequer falava sozinho – minha vida de frequentador de consultórios psiquiátricos e salas de espera de psicanalistas me possibilitou ver e experimentar de tudo, em ambientes em que todo mundo é suspeito, menos eu, em meu relativo solipsismo, o que é uma contradição, aliás: ou se é ou não se é uma vítima do solipsismo. E meu colega de “classe” era o típico caso de solipsismo.

Descemos no mesmo ponto de ônibus, naturalmente, mas parecia que tínhamos destinos distintos entre si. Andamos lado a lado: ele para uma partida de xadrez, eu para uma partida de golfe. E na sala de espera do consultório, o perfil dele insistia em me encarar. Eu esse dia estava lendo os contos de Dorothy Parker, muito ferinos, mordazes e engraçados, como tudo o que a turma do vicious circle escrevia, como se autodenominava o fechado grupo de escritores, humoristas e teatrólogos que se reuniam todas as tardes no Hotel Algonquin, em Nova York (H. L. Mencken, Robert Benchley, Robert Sherwood, dentre outros), por volta das décadas de 1920 e 1930. Sugestionado pelo espírito da falecida autora de Big Blonde, pensei em fazer anotações humorísticas a respeito de meu companheiro de viagem e de sala de espera. Mas minha séria curiosidade em relação a seu perfil – noutro sentido do termo, agora – me levou apenas a observá-lo mais e mais, e a pensar em seus problemas: o que o levava a fazer análise?

O leitor, provavelmente, quer saber agora por que eu faço análise, mesmo já sabendo, por aqui mesmo, que tenho ansiedade e pânico. Bem, um dos tantos psiquiatras que já me atenderam durante cerca de vinte anos de investigação de minha saúde me deu um arco-íris de presente. Ele me disse que eu não tinha nenhuma das doenças mentais de forma estanque. O que eu tinha era um leque de sintomas, um ou dois sintomas de cada uma dessas doenças, algo como um arco-íris de sintomas – foi a expressão que ele usou. Portanto, tenho algo do transtorno do pânico, algo do transtorno obsessivo compulsivo, algo da depressão, algo da ansiedade e muita somatização, e tudo isso em dias de sol ou de chuva. Mas apenas algo de cada doença. Jamais tive uma crise de pânico clássica, que os manuais dizem durar entre quinze e trinta minutos, e não tenho manias do tipo lavar as mãos o tempo todo ou coisas do gênero. Aperto facilmente a mão das pessoas diariamente, provavelmente irritando o espírito de Howard Hughes, onde quer que não esteja. Bem, eu havia então entendido por que as psicanalistas que me conheciam ficavam tão excitadas comigo. Eu era o Cary Grant – ou o Brad Pitty – das profissionais da mente humana – sempre me “receitaram” psicanalistas mulheres. Eu sou aquele sujeito que cria, numa psicanalista, a ambição de dar um grande salto em sua carreira profissional. Eu sou o mais perfeito e concreto objeto de pesquisa e hermenêutica. Eu sou um desafio. E uma de minhas mais sérias e exaustivas manias é a de querer guardar tudo – objetos e pensamentos, o que me faz pensar no belo poema Guardar, de Antonio Cícero. Fico louco se não dou conta dos tantos malabares que me imponho usar em minhas constantes apresentações. E como sofro de tédio, aumento o número de malabares. O aumento de número de malabares aumenta minha ansiedade, que, por sua vez, aumenta minha tensão. Meu desejo desesperado de controle. Mas sem essa quantidade enorme de (novos) malabares, sinto tédio. Daí o anel de möebius. É quando a cobra morde o rabo. O meu rabo.

Um dia, chego ao consultório e encontro uma senhora robusta e com óculos de armação “grandiloqüente”, ao lado de Alexandre. Pelos cuidados com ele, concluí facilmente tratar-se da mãe. Nesse dia eu estava um tanto eufórico, contente, falante, sabe-se lá por que, coisa de quem toma remédios tarja preta. Quando Alexandre foi chamado pela psicanalista, olhei para a sua mãe, sentada em uma poltrona a meu lado esquerdo. Ela lia um livro de Gabriel García Márquez, Memória de minhas putas tristes, e usei a leitura como pretexto para saber algo sobre meu colega de consultório e silêncio. Comentei: - Que livro bom de ler, não? Ela virou para mim e falou: - Sim, é verdade, principalmente para uma pessoa que está perto da velhice como eu. Eu disse que ela me parecia muito jovem para dizer algo do tipo. Ela agradeceu minha “generosidade”. Eu disse que seria interessante ela ler A casa das belas adormecidas, pungente e delicado livro do grande escritor japonês Yasunari Kawabata, vencedor do Nobel em 1968 : García Márquez havia escrito sua novela a partir da novela de Kawabata, como uma homenagem a um de seus autores prediletos, e até dizia isso na folha de rosto do livro. Ela disse que ia procurar o livro nas livrarias. Sugeri a livraria Saraiva e informei a editora: Estação Liberdade.

Finalmente perguntei se ela era mãe do Alexandre. Sim, ela disse. Então eu relatei o inusitado de nosso encontro dentro de ônibus, e ousei soltar o “veneno”: - Uma pena ele não ter falado nada comigo durante toda a viagem. Então ela começou a contar a história do filho. Senti que ela precisava fazer aquilo, e que só faltava alguém aparentemente interessado em sua história.

A mãe de Alexandre me disse que ele era o mais comunicativo e gaiato – termo dela – dos três filhos que tivera com o ainda atual marido. Mas de repente, sem qualquer aviso prévio, Alexandre se desligou do mundo, voltou-se subitamente para dentro de si e parou de falar com os colegas de escola e amigos de bairro. Em casa, passou a se isolar dentro do quarto. Trancou o curso da faculdade de veterinária porque não frequentava mais as aulas, e mesmo a paixão por música foi comprometida por seu novo perfil de ensimesmado. Não saía para absolutamente nada. Não tem mais amigos. Simplesmente não fala nem para pedir para passar o sal, à mesa. Perguntei a ela se havia acontecido algo de externo na vida dele, um acidente, uma frustração, um desenlace amoroso etc. Ela disse que não, não havia acontecido nada, absolutamente nada. Nada que ela soubesse, claro. Então perguntei sobre o tratamento psicanalítico: quanto tempo ele fazia análise? Ela me disse que ele fazia análise com a “minha” psicanalista havia três anos. Meu Deus, eu tive vontade de correr ao banheiro e vomitar ou evacuar. Será que eu teria de passar três anos ou mais para sentir algum efeito do tratamento? Ou para não sentir nenhum?

Comecei, provavelmente para incentivar a mãe de Alexandre, a exaltar, não a prática, mas a teoria psicanalítica, explicando a ela mais ou menos alguns conceitos importantes da psicanálise – paciente aprende muito do assunto, e não é raro o caso de pacientes que se tornam profissionais –, tais como o conceito de gozo, Complexo de Édipo, castração, recalque, pulsão, repetição, fantasia etc. Ela exagerava nos gestos que sugeriam interesse ao que eu falava. Eu nem havia terminado de falar uma frase ou pensamento e ela já estava concordando, com a cabeça e com um “hum” quase inaudível, pontuando minha fala. Na hora em que eu disse: - Tudo o que conta afetivamente para nós nunca é real, mas fantasiado. Em suma, eu diria, e é o que se diz, que toda fantasia é sempre precedida por outra fantasia, e que a história de nossa vida afetiva é uma estratificação de fantasias significativas. Uma fantasia é sempre oriunda da interpretação de um fato real visto através da lente deformadora de uma fantasia ainda mais antiga. Enfim, na hora em que acabei de dizer isso, senti que ela queria voltar a falar do filho. Mas eu estava impossível e havia memorizado uma porção de trechos de vários livros, principalmente dos divulgadores da psicanálise atuais, tal como Násio. Soltei mais essa: - O motor de nossas repetições, a causa que nos impele a escolher sempre um parceiro semelhante, a repetir a maneira de amar e sofrer com amor, que nos leva a voltar incansavelmente ao mesmo tipo de ligação afetiva, essa causa é o retorno no presente a uma experiência precoce, fortemente excitante e emocionalmente intensa. Uma pulsão gosta mais de se repetir do que de ter prazer.

Eu estava certo de que não era eu quem falava, mas um espírito que havia baixado em mim naquela hora, pois o fato é que eu não acreditava em nada daquilo, ou, no mínimo, não tinha muita certeza da eficácia do tratamento à base da arte do bem dizer, como se diz. Senti que estava encantado com a teoria psicanalítica, realmente instigante, atraente, um tanto misteriosa etc. – minha relação com a psicanálise é absolutamente intelectual, e, está claro, isso não resolverá meus problemas –, mas, não sendo um psicanalista, eu mais falava, porque quem mais fala é o discípulo, quem mais dá aulas é o discípulo, não o mestre.

Finalmente, para a alegria da mãe de Alexandre, seu filho é liberado pela analista com, provavelmente, as famosas palavras da profissão: “hoje vamos ficar por aqui”. Alexandre demonstrou desconforto ao me ver falar com sua mãe. Ele ficou em pé, enquanto ela, ainda sentada, terminava de falar comigo e me apresentava a ele. Ele não deu uma palavra, mas esboçou o início de um sorriso. Foi quando percebi que ele, agora com o rosto de frente para mim, tinha muitos traços de alguém realmente desequilibrado mentalmente: seu sorriso era o sorriso de alguém com idiotia.

No outro dia liguei imediatamente para uma amiga minha psicanalista contando todo o caso, toda a história. E disse a ela em tom de desespero: - O cara está fazendo análise há três anos e está daquele jeito. E a mãe dele me disse que ele faz três sessões por semana!

Minha amiga me deu uma resposta clássica, em se tratando de psicanalistas: - Henrique, imagina como ele estava antes de fazer análise...

Bem, não dá para imaginar, mas se, em três anos, ele estava daquele jeito, eu não queria mais saber de psicanálise. Para citar Walter Benjamim, eu não pensava em perfeccionismo, longe de mim, mas em perfectibilidade. Eu já aceitava a constante repetição de minha analista de que psicanálise não promete cura, nem mesmo remissão dos sintomas, mas transforma os sintomas, faz dos problemas uma fonte de criação. Sim, eu já havia aceitado a atitude da psicanálise de tirar a bunda da seringa, mesmo pensando sempre nas fantasiosas curas de Freud, relatadas em seus famosos casos clínicos – muitos deles inventados pelo bom fabulista e bom escritor que era o pai da psicanálise. Mas eu não aceitava viver três anos com meus insuportáveis sintomas. Além do mais, a resposta de minha amiga psicanalista era, no mínimo, corporativista demais. Afinal, se o rapaz se sente melhor, se ele está melhor, certamente, sobretudo no caso de uma pessoa que se isola em seu mundo – em sua casa –, é porque sai de casa três vezes por semana para fazer análise, e não porque faz análise. Se durante três anos saindo de casa três vezes por semana ele está como está, não é a psicanálise quem o está mudando – muito pouco ou nada – e sim o condicionamento físico – não a palavra, portanto. Isso se chama Behaviorismo, a palavra maldita no dicionário dos psi, o fruto das sementes lançadas por Pavlov e colhidas por Skinner. Em vez de psicanálise ele poderia receber outros comandos para sair de casa: jogar tênis de mesa, por exemplo... A diretora de teatro Anne Bogart, em seu livro A preparação do diretor, afirma: “Decisões dão origem a limitações, que, por sua vez, pedem o uso criativo da imaginação”. Portanto, acho que o Alexandre precisa ser incentivado a tomar decisões, só isso. Ainda segundo Bogart, no mesmo livro: “Para gerar o entusiasmo indispensável, tem de haver algo em jogo, em risco, algo importante e incerto. Segurança não desperta nossas emoções”. Paradoxalmente há uma segurança na psicanálise: ela nos assegura de que é melhor fazer análise, mesmo dizendo que não haverá cura para nossos problemas, nem mesmo remissão dos sintomas. É essa sua única segurança. E outra: os psicanalistas se acostumaram a criticar o uso de medicamentos, mas, se o presidente do planeta proibir o uso de medicamentos controlados para doentes mentais, haverá um surto de assassínios e suicídios. Tenho ciência da indústria farmacêutica querendo encher os cofres às expensas da dor e dependência química dos seres humanos, mas os remédios é que têm “segurado a onda”. O mundo seria um hospício ainda mais perigoso sem eles, e coitado do louco alienista de Machado de Assis.

O famoso ditado popular “quem não sabe rezar xinga Deus” cai como uma luva no “caso Freud”: na condição de judeu, o pai da psicanálise substituiu o confessionário pelo divã, mas não sem antes substituir Jesus, o Cristo, por si mesmo, sem subir ao Gólgota, é claro, “fazendo” histéricas levantarem da cadeira de rodas, entre outros “milagres”. Ou seja, sempre me pareceu, a psicanálise, menos uma tentativa de salvar a humanidade do que o revide arrivista de um judeu diante do ocidente cristianizado.

Agora o leitor deve estar se perguntado por que eu faço análise.

Porque eu já sei rezar.

Henrique Wagner é baiano de Salvador, onde reside. Nascido no dia 16 de maio de 1977, é poeta, contista, ensaísta e crítico de cinema. Colaborou com os jornais A TARDE, Correio Brasiliense, Rascunho, entre outros. Publicou os livros de poemas O grande pássaro e As horas do mundo, e o livro de ensaio A linguagem como estética do pensamento.

Artigo publicado originalmente em http://www.expoart.com.br/colunista/74/henrique_wagner.html

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