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O amor ao dinheiro bloqueia a glória!. Por Marconi De Souza Reis

9 - 12 minutos de leituraModo Leitura
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Caetano Veloso foi eleito o terceiro maior compositor brasileiro do século XX, em eleições dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, e das revistas Rolling Stone e Bizz. Ele perdeu apenas para Tom Jobim (1º) e Chico Buarque (2º). Concordei com a posição referente à música, mas, com potência para brilhar em outras artes, a exemplo do cinema, o filho de dona Canô revelou-se imbatível no passado.

Caetano seria o cara mais genial da cultura brasileira, não fosse o fato de ele próprio ter violado o que pregara na canção “Beleza Pura” (1979) – “me amarrar, dinheiro não” –, violação esta que o levou a experimentar do veneno de outros versos seus, que, também por ironia, estão na sua obra-prima “Luz do Sol” (1982): – “Finda por ferir com a mão essa delicadadeza, a coisa mais querida, a glória da vida”.

Entre 1967 e 1984, Caetano era o pós-filósofo que melhor expressava a nossa geração. Nessa fase, ele reinou absoluto como difusor da pós-modernidade brasileira. Suas canções e entrevistas puxavam o tapete das pessoas da sala de estar. A sua simples aparição era soberana. Até a rivalidade com Chico Buarque, iniciada em 1967, esmaeceu-se diante da sua estranha força nas duas décadas seguintes.

Acontece que, no âmbito musical, a fonte melódica – combustível para profusão das ideias – costuma secar com a chegada dos cabelos brancos, e com Caetano não foi diferente, posto que, após o lançamento de “Velô”, em 1984, aos 42 anos de idade, quase mais ninguém interpretou algo genial da sua lavra – Vaca Profana (1985), com Gal, e Reconvexo (1989), na voz de Bethânia, são exceções.

Ele próprio só lançou um disco com canções inéditas entre 1985 e 1988 – um fiasco, onde se salva apenas a bela capa do álbum que leva o seu nome. Para quem exibia dez pérolas por ano nas vozes alheias – Roberto, Gal, Bethânia, A Cor do Som e Marina, dentre outros intérpretes –, e ainda lançava um disco anual com outras composições inéditas, a segunda metade dos anos 80 surgiu “mortífera” em sua carreira.

Acontece que Caetano iria surpreender mais uma vez… Crítico de cinema por vários anos no início da década de 1960, ele percebeu os fortes sinais da estiagem na seara musical, e decidiu então partir definitivamente para a carreira de cineasta. Caetano lançou, em 1986, o seu primeiro filme – “Cinema Falado” –, uma obra fantástica, genial, mas que a crítica burra da época foi incapaz de percebê-la como tal.

O filho de dona Canô ficou muito mal – até hoje ele se queixa com razão das críticas absurdas –, mas prometeu voltar ainda mais ousado na sétima arte, e todos sabiam que sim, porque seu talento era demais imagético naquela fase. Os versos de “Diamante Verdadeiro” – uma canção siamesa de “Reconvexo” – falam por si: “Meu ambiente é o que se instaura de repente, onde quer que chegue, só por eu chegar…”.

Mas, infelizmente, foi neste momento da vida do gênio baiano, que lhe surgiu uma encruzilhada – investir na liberdade deste sonho de se tornar um novo Antonioni ou insistir apenas na carreira de cancioneiro. Viu-se entre a luz e a treva. E como dizia a minha mãe lá na velha Queimadas, “o diabo nunca vem desacompanhado de um rabo de saia, quando é para testar a força de um homem, e vice-versa”!

Pois bem: exatamente nessa época, Caetano casou com a empresária Paula Lavigne, que, de plano, prometeu revolucionar a sua vida financeira. E ele cedeu… Paula tomou conta da carreira do compositor, dirigindo shows, produzindo vídeos e, principalmente, fechando os contratos milionários. O novo Caetano, que as gerações futuras passariam a conhecer a partir dos anos 90, não existiria sem Paula Lavigne.

Dona da empresa Natasha Records, ela turbinou os negócios do marido, assumindo quase que 100% de sua obra (deixou os empresários de Caetano de mãos abanando). E o levou a ter fãs no mundo inteiro, com shows que Caetano, antes “pobre”, jamais vislumbrara. De 1989 para cá, Caetano lançou uma dezena de discos, mas nenhum acrescentou algo substancial à sua obra anterior (de 1967 a 1984).

O seu melhor trabalho dessa nova fase – “Estrangeiro” (1989) – revela exatamente a pegada cinematográfica que o inundava àquela época. A letra e o clipe da canção título revelam que, se a estupenda energia fosse dispensada ao cinema, o gênio baiano seria um Pedro Almodóvar melhorado. Com efeito, Caetano exalava “cheirinho” de Cannes, César, Globo de Ouro, o que se torna evidente em “Fina Estampa” (1995).

Mas a verdade é que o cara enriqueceu demais dentro do “sistema Lavigne de ser”, para tornar-se um cineasta. Caetano perdeu aquela autonomia dos anos 70, e isso é um consenso na crítica. Por sua vez, desde então não deu mais para comparar o seu patrimônio financeiro com o de Chico, Tom e outros. Ele ficou muito rico. E na exposição midiática, então, a comparação é de cem para um, com relação aos seus contemporâneos.

A esposa do cara foi fantástica nesta seara – multiplicou pães e peixes –, e, por ironia, mais recentemente criou a empresa “Uns Produções e Filmes”, produzindo campeões de bilheteria do cinema nacional, a exemplo de “2 Filhos de Francisco”, “O Bem Amado”, “Lisbela e o Prisioneiro”, “Ó, pai, Ó”, “Benjamim”, “Orfeu”, “Meu Tio Matou um Cara”, que tornaram o casal ainda mais rico.

A culpa é de Lavigne? Bem, para mim ela apenas despertou – parafraseando “Cálice” – a avareza que adormecia na lagoa santo-amarense. Esperta como qualquer empresário, Paula percebeu inclusive que o casal poderia ganhar muito dinheiro com o sucesso fácil, daí que apresentou o marido interpretando “Fera Ferida”, “Debaixo dos Caracóis”, “Sozinho” e “Você não me ensinou a te esquecer”.

Ora, nada demais nesse âmbito também, afinal ele já havia gravado Peninha, Odair José e Fernando Mendes, nos seus discos dos anos dourados. O desejo só estava adormecido no marido. Como bem diz a escritora Martha Medeiros, “se por trás de todo grande homem existe uma grande mulher, então vale o inverso também – por trás de um pequeno homem existe uma mulherzinha de nada”.

Por sua vez, Chico Buarque, o (ex) rival, sentiu também a fonte melódica secar na mesma época de “Velô”. Naquele ano de 1984, o compositor carioca lançou o seu último grande trabalho – “Vai passar”. Chico olhou para frente e, como ele próprio confessou outro dia, sentiu que não precisava mais trabalhar, porque já havia o suficiente à sobrevivência. Então pensou: Vai trabalhar, no que gosta, vagabundo!

E foi exatamente na falta de inspiração para compor melodias do mesmo nível de outrora, que ele releu seus próprios livros escritos até então – “Roda Viva” (1967), “Chapeuzinho Amarelo” (1970), “Calabar” (1973), “Fazenda Modelo” (1974), “Gota D´Água” (1975), “Ópera do Malandro (1978) e “A bordo do Rui Barbosa” (1981) – e percebeu que, no mundo literário, eram obras menores, irrelevantes.

Como a rivalidade com Caetano estava mesmo perdida no mundo do “show business” – o programa “Chico & Caetano”, ao longo do ano de 1986, na TV Globo, deixou isso muito claro –, decidiu-se pela literatura para valer, com apoio irrestrito da esposa Marieta Severo e das três filhas, mulheres excepcionais – bússolas da sua vida. De lá para cá, lançou raros discos, visto que o seu norte já estava em outra seara.

A verdade é que, a partir de 1991, com o incrível “Estorvo”, seu primeiro romance, Chico investiu como nunca em sua carreira literária. E seguiram “Benjamim” (1995), “Budapeste” (2003), “Leite Derramado” (2009) e “O Irmão Alemão” (2014). O carioca já ganhou todos os prêmios literários possíveis – no Brasil, Portugal e França –, com esses cinco best-sellers. Falta-lhe o Nobel, que os críticos afirmam ser uma questão de tempo.

Caetano e Chico poderiam ser, num breve futuro, laureados com o Oscar e o Nobel, respectivamente. Mas a vida (o tempo) é assim, cruel, com quem valoriza demais o dinheiro. Se o filho de dona Canô pudesse voltar 30 anos no calendário, saberia qual o caminho deveria trilhar naquela encruzilhada. Pegou a estrada errada e, o que é pior, até na música, segundo a crítica, está atrás de Chico.

Imperioso destacar, neste contexto, que Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, não ganhou o Nobel da Paz porque concedeu entrevista bombástica ao “El País”, em 2014, na qual avisou à Academia Sueca que não o premiasse, porque ele não aceitaria recebê-lo. Era consenso de que ele seria o vencedor, mas Mujica disse que “não teria paz se recebesse o prêmio milionário num mundo que jaz em fome e guerra”.

Ora, se tivesse 10% da consciência desse uruguaio, o ex-beatle Paul McCartney não seria hoje tão menor diante da monumental obra de John Lennon. Qualquer maníaco pelos Beatles, que toque piano e violão, sabe o quanto esses dois compositores ingleses foram parelhos enquanto a banda vigorou, nos 15 álbuns lançados entre 1962 e 1970. É quase impossível afirmar se um supera o outro nos anos 60.

Acontece que, demais influenciado por sua esposa empresária Linda Eastman, dona da Kodak, Paul ficou tão vidrado em dinheiro quanto em música a partir do final dos nos 60. Foi o próprio Lennon quem afirmou, em entrevista à revista Rolling Stone, em 1971, que o fim dos Beatles foi provocado pela ganância do parceiro. “Eu demorei a perceber que tudo era por causa de grana”, disse Lennon.

A imprensa, os fãs e o próprio Paul colocaram a culpa em Yoko Ono, esposa de Lennon, pela dissolução da banda, mas a verdade era outra – a crítica mais especializada afirma hoje de que o vil metal, de fato, foi o grande vilão. Filha de um banqueiro japonês, Yoko levava uma vida à revelia dos negócios do pai, dedicando-se tão somente à arte plástica, fato este que encantou Lennon no primeiro contato numa galeria.

Somente para se ter uma ideia da diferença entre John e Paul, a rainha da Inglaterra condecorou os Beatles no ano de 1966 como “Membros do Império Britânico”. Três anos depois, Lennon foi pessoalmente ao Palácio de Buckingham devolver a condecoração, como protesto ao apoio da Inglaterra à guerra no Vietnã. Por sua vez, Paul bajulou tanto sua majestade, que ganhou o título de “Sir”, em 1997, honraria dada pela rainha.

Nesse contexto, imperioso destacar que, ainda no auge dos Beatles, em 1966, Lennon decretou: “Não vamos fazer mais shows”. Ora, somente um “louco”, na visão de quem prioriza o dinheiro, poderia imaginar que um artista, no momento mais espetacular da sua carreira, abrisse mão de tal expediente. Paul aceitou a decisão do parceiro, mas, pouco tempo depois, passou a importuná-lo, querendo fazer shows.

Com efeito, assim que o grupo se dissolveu, Paul criou a sua banda, “The Wings”, e pôs os pés na estrada fazendo inúmeros shows, produzindo seus discos e filmes, negociando os contratos com os empresários, enfim, aumentando a sua fortuna cada vez mais, a ponto de, em 1979, já ter o dobro do patrimônio de Lennon. Hoje, Paul é o músico mais rico da Inglaterra, com patrimônio de 1 bilhão de euros.

Lennon continuou longe dos palcos, mas, enquanto viveu, construiu uma obra incrível. Sem exagero, o que Lennon compôs entre 1970 e 1980, ano em que foi assassinado, supera em triplo, ou em quádruplo, a qualidade da obra construída por McCartney ao longo desses quase 50 anos pós-Beatles. A distância que os separa é tamanha, que alguns críticos passaram até a contestar que ambos eram parelhos nos anos 60.

Em meado dos anos 80, Paul sofreu o seu maior golpe financeiro, qual seja, seu amigo Michael Jackson comprou todos os direitos autorais dos Beatles. Bem, isso aqui é um capítulo à parte, mas serve como ilustração nesse texto, para lembrar apenas que, após o “rei do pop” adquirir o patrimônio dos Beatles, sua carreira também entrou em total declínio. Recentemente, Paul recomprou os direitos autorais dos Beatles.

Enfim, essa longa narrativa, que poucos tiveram paciência de ler, poderia ser empreendida num livro, trazendo mais personagens da música (e de outras artes) que trilharam suas vidas em torno da navalha da avareza. Essas palavras foram escritas no feriado de quinta-feira (12/10/17), para ser um simples comentário no texto “A maior virtude e o pior defeito de Lula”, que publiquei no domingo passado.

Acontece que o comentário foi crescendo tanto, que acabei por torná-lo numa crônica, com vida própria. A verdade é que, no texto de domingo passado, eu falei sobre a avareza de Lula e o despojamento de Pepe Mujica, não para destacar os “personagens políticos” como prioridade. Longe disso. O principal objetivo foi destacar o provérbio que escrevi inspirado numa entrevista de Mujica, em que afirmo:

– O homem fraco desconhece que o dinheiro é indispensável e, ao mesmo tempo, impeditivo ao alcance da independência necessária para fazer o que se gosta na liberdade.

Afinal, todos os personagens passam – Lula, Caetano, Paul, Michael, Chico, Mujica, Lennon, etc. –, e outros personagens surgem a cada dia, seja entre os famosos ou anônimos, mas as glórias e os dissabores de cada ser humano são, sem dúvida, diretamente proporcionais às suas virtudes e vícios. E na minha singela opinião, a avareza é o pior dos vícios, e contra o qual é preciso vigilância ininterrupta.

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