O berimbau, um único neurônio e o abaixo assinado: a confluência dos ditos por Jocélio Teles
Como admitir um QI baixíssimo entre estudantes de melhor desempenho no
vestibular e na instituição de maior prestígio na Bahia? As declarações do
coordenador do curso da Faculdade de Medicina da UFBA provocaram reações
diversas e adversas. Se a reação foi vigorosa, as análises ainda estão por
acontecer.
O curso
de Medicina é ressaltado como o de maior concorrência e, consequentemente, de
melhor desempenho estudantil nas instituições públicas do ensino superior no
Brasil. Por conseguinte, passamos a associar "maior inteligência" a resultados
no vestibular. Tratar-se-ia de uma conseqüência "lógica". Os estudantes
aprovados em Medicina teriam o melhor desempenho em qualquer curso da UFBA.
Relacionam-se desejo/vontade/expectativa
do estudante ao seu desempenho no vestibular e na universidade. Reproduziu-se
uma hierarquia da inteligência nas áreas do conhecimento acadêmico. O poder da
inteligência dos profissionais da área médica tornou-se dominante nos discursos
e no imaginário da sociedade brasileira. Mais que um totem, uma dominação
simbólica, mesmo para quem é crítico desse modelo hegemônico.
O desempenho no curso de Medicina tem nos servido de
contraponto aos que apostavam no fracasso das ações afirmativas para os
estudantes oriundos das escolas públicas, negros e indígenas. Desde o ano de
2005, comparamos o desempenho dos estudantes que foram aprovados pelo sistema de
cotas em cursos considerados de prestígio e de alta concorrência como
Odontologia, Psicologia, Arquitetura, Direito, as Engenharias e Medicina. Os
resultados são similares aos da Unicamp, Universidade de Brasília e da
Universidade Federal do Paraná. Há cursos em que os alunos ingressos pelo
sistema diferenciado têm resultado igual, ou melhor, que os ingressos pelo
sistema tradicional. E, no espaço público, divulgamos o desempenho dos
estudantes de Medicina no vestibular, e nos três primeiros anos do sistema de
cotas da UFBA, para demonstrar como a seleção pelo sistema do vestibular tem
sido limitada e elitista.
Reiteramos, portanto, uma hegemonia hierarquizante de uma
área do conhecimento, bem como tomamos como amostra básica esse mesmo
modelo.
Por
isso, uma pergunta se apresenta. O que significa o uso de conceitos/notas e o
desempenho dos alunos nas nossas avaliações internas e externas, como a do
MEC? Quais são os indicadores para a avaliação dos nossos
estudantes e, por conseguinte, da metodologia empregada? Estamos refletindo
sobre esses instrumentos de avaliação ou nos encontramos apáticos diante de um
modelo tecnocrata?
A
avaliação do curso de Medicina da UFBA demonstra muitas facetas. O imaginário
sobre esses detentores do saber perpassa, no espaço público, o perigo de
visualizarmos uma péssima avaliação dos futuros "conhecedores e dominadores" dos
nossos corpos. Afinal, mesmo levando em consideração o boicote dos alunos, quais
foram os critérios considerados para tal decisão? Esse seria um ponto para
começarmos a refletir menos sobre o curso de Medicina e, sim, acerca das
avaliações de outros cursos da instituição. Quem sabe, desse modo, deixaríamos
de ser reféns do modelo hegemônico sobre a produção do conhecimento, e seríamos
capazes de pensar pluralmente sobre essa mesma produção. Afinal, o bom
desempenho de estudantes em outros cursos não provocou nenhum alarde da mídia e,
muito menos, declarações estapafúrdias de algum membro do corpo docente, como a
do coordenador do curso de Medicina. .
A ênfase
do coordenador do curso de Medicina sobre o QI dos baianos e, de modo
peremptório, a associação imediata com o berimbau teve uma confluência deveras
singular. Um das suas considerações sobre o baixo desempenho dos alunos é que
"houve uma contaminação da questão das cotas". No mesmo dia em que essas
declarações eram divulgadas na imprensa, o presidente do Supremo Tribunal
Federal recebeu um abaixo-assinado de intelectuais e artistas (Ruth Cardoso,
João Ubaldo Ribeiro, Caetano Veloso
et alli) em apoio as duas ações de inconstitucionalidade da Confederação
Nacional dos Estabelecimentos de Ensino contra o Prouni e o sistema de cotas da
Universidade estadual do Rio de Janeiro.
Há um
nexo na retórica argumentativa e a lógica do capital. Os argumentos no
abaixo-assinado encontram-se amoldados às expectativas de universidades e
faculdades privadas sobre a inconstitucionalidade do ProUni.
Estamos
diante de um paradoxo. Os intelectuais, desde o período do regime militar, não
bradam pela autonomia das idéias e decisões nos seus espaços institucionais? Por
que, então, deveria o Supremo Tribunal Federal julgar e impedir decisões
acadêmicas? O que se argumenta sobre a reiterada autonomia universitária? Ou
trata-se de uma retórica cuja finalidade é a manutenção de status e privilégios?
Fico a imaginar os ministros do STF arbitrando sobre decisões que envolveram nos
conselhos universitários a participação de estudantes, professores e
funcionários de instituições universitárias como a UFBA, UnB, UFPR, UFRGS, UFSC,
UFAL, UFSP, UFMA, UFPA, UEMS, Uneb, Unicamp, UFAL, UFSM.
Destaco
quatro argumentos no abaixo-assinado.
Primeiro, é que "nada pode ser mais falso:
as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de estudantes de
classe média e conservam intacta, atrás de seu manto falsamente inclusivo, uma
estrutura de ensino público arruinada".
O segundo argumento é que "a propaganda cerrada em favor
das cotas raciais assegura-nos que os estudantes universitários cotistas exibem
desempenho similar ao dos demais. Os dados concernentes ao tema são esparsos,
contraditórios e pouco confiáveis".
Corroborada por cientistas sociais, as
afirmações revelam-se pífias.
Para tais argumentos, há necessidades de dados. E onde eles
se encontram? Em que estudo e em qual universidade? As análises do impacto do
sistema de cotas na UFBA indicam que, no primeiro ano da sua implantação, em
1995, houve um significativo ingresso de estudantes pobres. O percentual dos
estudantes aprovados que tinham renda familiar até três salários mínimos
aumentou de 13,8% , em 2004, para 22,9% , assim como diminuiu o
percentual dos que tinham renda familiar acima de vinte salários mínimos. Eram
15,5% , em 2004, e passaram a ser 10,4% , em 2005. A diminuição de
estudantes oriundos das classes médias é visível. Não é à toa o aumento, nos
últimos três anos, das demandas para a "assistência estudantil", assim como o
descontentamento do sistema privado e dos cursinhos pré-vestibulares com a
implantação das ações afirmativas. Milton Santos em entrevista já
dizia que as classes médias no Brasil querem é privilégio e não cidadania.
O terceiro
argumento – "a propaganda cerrada em favor das cotas…" é cínico e
enganoso. Um levantamento quantitativo e a análise de conteúdo de editoriais,
matérias e artigos nos jornais de grande circulação no país indicam
privilegiados espaços concedidos, com regularidade, aos que são contra as
ações afirmativas, muitos dos quais assinam o abaixo-assinado. Então, onde está
a propaganda? Há, sim, uma desigualdade na ocupação de espaços na
mídia.
O
quarto argumento é cinicíssimo: "(…) a
crítica informada dos sistemas de cotas nunca afirmou que estudantes cotistas
seriam incapazes de acompanhar os cursos superiores ou que sua presença
provocaria queda na qualidade das universidades". No período que se seguiu à
institucionalização do sistema de cotas nas universidades estaduais do Rio de
Janeiro e da Bahia, assim como nas universidades federais, a exemplo da UFBA,
UnB e UFPR, o argumento do mérito sempre foi recorrente: os estudantes cotistas
não teriam condições de obter um bom desempenho nas universidades, devido à
falência do sistema público de ensino. Daí, o vaticínio: haveria
queda da qualidade de ensino nas universidades.
Um
aforismo de Nietzsche é pertinente: "pensar mal significa tornar
mau – As paixões se tornam más e pérfidas quando são consideradas mal e
perfidamente" (Livro 1 $ 76).
Um olhar mais acurado pelos intelectuais e artistas que
assinam o manifesto indicaria a pluralidade de objetivos e sentidos
nas decisões dos conselhos universitários das mais de quarenta instituições
públicas que adotarem programas de inclusão diferenciada para estudantes
oriundos das escolas públicas, negros e indígenas.
Daí, as
perguntas poderiam ser: qual o impacto dessas mudanças nas nossas vetustas
instituições? Por que a maioria da população brasileira, segundo o Instituto
DataFolha, passou apoiar as ações afirmativas? O que significou
para as sociedades indígenas, como a dos Pataxós, no sul da Bahia, a inserção em
espaços seculares de reprodução das elites baianas?
Uma outra pergunta que deveria ser refletida é: qual a razão de atualizarmos na
nossa história recente uma "obsessão" por cotas? São vários exemplos. Nos anos
quarenta, o governo de Getúlio Vargas instituiu um sistema de cotas para
trabalhadores nacionais. Em 1968, os técnicos do Ministério do Trabalho, devido
às denúncias de preconceito racial, propuseram reserva de vagas para negros na
empresas. No final do regime militar, o governo João Figueiredo determinou a
reserva de vagas no curso de Medicina Veterinária para estudantes filhos de
fazendeiros, popularmente denominada "Lei do Boi".
O abaixo assinado entregue ao presidente do Supremo
manifesta preocupação com as "divisões perigosas" e a racialização
na sociedade brasileira. Um temor é catastrófico: o nosso futuro indica
conflitos irreparáveis com a adoção da política de cotas. A ironia é cabal. Um
simples exercício do pensamento social brasileiro e da historiografia mostra que
os intelectuais somos desastrosos quanto a vaticínios sobre o futuro do país. E
isto, desde o século XIX, não é exclusivamente brasileira.
A entrega
do abaixo assinado no Supremo foi um rito. E os seus autores e autoras não
querem que este ritual se esgote. Há quase dois anos, um abaixo-assinado foi
entregue ao presidente do Congresso Nacional e, como o segundo,
também foi midiatizado. Se o propósito da espetacularização é evitar a agonia
dos nossos mitos pretéritos, nada mais justo que impedir, com certa
periodicidade, o seu sacrifício. Como rito, objetiva-se a sua reiteração no
espaço público, principalmente, o macro-institucional. Resta saber para quem
será dirigido o próximo abaixo-assinado. Ao presidente da
República?
Convido os colegas antropólogos, sociólogos, cientistas
políticos e historiadores que
assinam o abaixo assinado a se
debruçarem sobre os dados do impacto do sistema de cotas em universidades
brasileiras, comparando-os e criticando-os. Não é este o fazer
científico? O problema é que meus neurônios não me facultam a
possibilidade de tocar um simples berimbau. Que diabo de baiano, é
esse?
Diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais da
UFBA