O Brasil e o Jogo do Galinha, por Fernando Horta
Existe um campo de estudos da Ciência Política, da Matemática e da Economia chamada de “Teoria dos Jogos”. Ele estuda o comportamento interativo dos sujeitos colocados em situações em que as escolhas de ambos, relacionadas, afetem os resultados também para os dois.
Existem vários “tipos” de jogos que são estudados e são chamados de “teóricos”. Quando, por exemplo, o resultado é do tipo “um ganha e outro perde” chamamos de “jogo de soma zero”. Ocorre que, frequentemente, existem estratégias a serem desenvolvidas em que ambos ganham.
Imagine uma situação de duelo de dois pistoleiros. Um na frente do outro, armados. Existem quatro possibilidades: um acertar o outro, o outro acertar o “um”, os dois errarem e os dois acertarem. Dado que a melhor estratégia individual (mirar e acertar o outro) ela não traz o melhor resultado (porque o outro também vai mirar e acertar em você e os dois morreriam), o melhor resultado possível é uma estratégia colaborativa de “os dois errarem”. Assim, saem os dois vivos. O estudo destas situações é muito importante para predizer o comportamento de indivíduos. Claro que a teoria tem problemas, você está contando que os dois pistoleiros tenham como maior valor a vontade de sobreviver (que na teoria é chamado de “ator racional”) e que os dois pistoleiros compreendam perfeitamente os sinais enviados de um para o outro (que na teoria é chamado de “jogo de informações completas”) e que não haja nenhuma interferência externa neste processo. Daí que estes modelos são raros de acontecerem (se é que acontecem) de forma perfeita.
Ainda assim, são úteis para se compreender uma determinada situação. Existem vários tipos de jogos como, por exemplo, o “dilema do prisioneiro”, a “caça ao veado” e uma infinidade deles. Existem jogos colaborativos, jogos de confrontação, jogos sequenciais, jogos infinitos e a coisa vai ficando maluca mesmo … não se desespere.
Meu ponto é que o Brasil hoje vive hoje um modelo de jogo chamado de “Jogo do Galinha”. O termo vem do inglês “chicken game”, e algumas vezes é traduzido errado para “jogo da galinha”, mas o termo “chicken” aqui quer dizer “covarde”, logo, a tradução para o português é “Jogo do Galinha”. Este jogo é mais conhecido por uma cena do filme “Nos tempos da Brilhantina” (Grease, em inglês) com o John Travolta e Olívia Newton-John. Agora que você parou de tentar acertar a minha idade, a cena mostra o protagonista do filme, dentro de um carro acelerando contra um outro sujeito em linha reta. A aposta é que quem desviar o carro primeiro perde o seu carro. Exatamente por isto que é chamado de “o jogo do galinha”.
Na teoria, este jogo é pensado de duas formas: Se os dois jogadores não podem fazer acordos e se eles podem fazer. Se eles não podem fazer acordos existem as opções de alguém desviar e perder o carro, ou os dois baterem e perderem os dois carros (não vamos falar na vida, porque isto muda o jogo). Já, se há a possibilidade de fazer acordo, os dois podem acelerar e desviarem no mesmo momento, acordando que cada um fica com o seu carro. Quando há acordo, chamamos de “estratégia colaborativa”, quando não há, chamamos de confronto. Muitas vezes, de posse de todas as informações os agentes encontram um meio de colaborarem, ainda que esta colaboração seja contra o melhor resultado individual possível. É claro que se eu acelerar o carro e o fizer de forma a amedrontar o outro, eu ganho, mas se o outro fizer a mesma coisa, os dois perdemos.
O Brasil está travado num “Jogo do Galinha”. As instituições brasileiras, ao se tornarem politizadas, tornaram-se atores político-eleitorais e estão trancadas nesta posição. Mas as instituições não têm legitimidade por si só, dependem do apoio popular. Em que pese que não há, ainda, gente nas ruas e quebradeiras, o apoio popular é medido pelas pesquisas. Todas têm mostrado que o judiciário está queimando legitimidade desde 2013. O STF não só esteve acovardado o tempo todo, como agora é refém da República de Curitiba. E isto dito por Gilmar Mendes, Celso de Mello e Marco Aurélio.
No outro carro, temos Lula. Aumentando seu prestígio e apoio popular ininterruptamente desde 2013. Mesmo preso.
Ambos os carros, o da legitimidade institucional e o da legitimidade popular ou eleitoral estão acelerando um contra o outro. Neste “jogo do galinha” existem duas opções: um jogo colaborativo e um jogo de confronto. No jogo colaborativo, já vimos que o melhor caminho é que ambos os jogadores escolham ações que levem a um resultado de ganho médio dos dois lados. No jogo de confronto, Lula e a justiça brasileira vão se explodir um contra o outro, os dois perdendo.
Ocorre que, no caso brasileiro, há um componente externo que é o fascismo e as forças de extrema-direita. Para elas é melhor que a justiça e Lula se destruam. E neste pensamento está (ignorantemente) a República de Curitiba. No afã de “limparem” o Brasil, condenaram sem provas com base na moral do juiz e isto só coloca o país inteiro em risco. As pesquisas mostram que, sem Lula, Bolsonaro é eleito. Os liberais e a esquerda não têm ninguém mais a colocar no caminho.
O mesmo jogo foi jogado pelas elites na França, com vitória, elegendo Macron. E nos EUA, com derrota, assumindo Trump. Nos dois países, as esquerdas forma manobradas a se dividirem (ou serem boicotadas no caso de Sanders) para que um neoliberal concorresse com um fascista. As chances são meio a meio. É muito mais do que liberais e fascistas jamais teriam caso a esquerda estivesse no páreo.
Resta saber quais são as preferências dos atores. A Justiça brasileira estaria disposta a ver erodir sua legitimidade a ponto de guardas de rua começarem a matar pessoas e serem condecorados? Retirando totalmente a competência e o poder dos juízes? Estaria a justiça brasileira disposta a ver o capital internacional fugir do Brasil por falta de um cenário previsível, já que qualquer juiz em qualquer lugar pode condenar qualquer um baseado em “delações”, extraídas mediante tortura prisional? Quanto tempo a Justiça brasileira espera resistir perseguindo nominalmente o legislativo (retirando foro, decidindo quem pode ou não se candidatar, prendendo e espetacularizando as prisões) sem que leis sejam passadas em desfavor de juízes? Quanto tempo o judiciário brasileiro espera sobreviver quando o cidadão deixar de ter qualquer confiança nas instituições e começar a resolver as coisas por si mesmo?
No momento, Lula e o Judiciário aceleram um contra o outro. Preso, o carro de Lula segue acelerando, enquanto que o Fiat 147 de Carmem Lúcia dá já sinais de problemas no carburador militar. Peça de difícil reposição.
O choque só interessa ao fascismo, que existe no próprio judiciário, no legislativo e se vê representado nas Forças Armadas. Uma parte significativa da esquerda aposta que a Justiça tem mais a perder, afinal, Lula já está preso e este é o maior dano que se poderia fazer ao PT. Segue acelerando no “Lula presidente”. Uma outra parte, os “chickens”, já pularam fora e pedem um novo nome, “pelo amor de Deus!”. O que esta parte da esquerda não entendeu ainda, é que um novo nome só é possível se o jogo mudar de confronto para colaboração entre o judiciário e Lula. De outra forma, um “novo nome”, a ser apoiado por Lula, significa a manutenção de Lula nas masmorras de Moro eternamente.
Do outro lado, os juízes brasileiros com alguma capacidade crítica e analítica (o que exclui a Lava a Jato) percebem que acelerar não é o caminho. As togas não são superpoderes a serem usados displicentemente como Moro faz. Terão os defensores do liberalismo político no judiciário forças para se insurgir contra o fascismo e mudar o jogo para um pressuposto colaborativo? Os juízes sensatos conseguirão se afastar do corporativismo visceral da classe e passar a denunciar Moro, Dallagnol e os três de Porto Alegre pelo que eles são: péssimos juízes, moralmente corrompidos e tecnicamente falhos? Farão, os defensores do liberalismo político, o movimento que alguns jornalistas fizeram de se divorciarem do fascismo “brucutu” para voltarem a abraçar os direitos individuais e assim conseguirem alguma redenção frente ao poder legislativo?
Alguns poderão dizer que em caso de os carros se espatifarem um contra o outro é o “povo brasileiro” quem perde. Discurso populista de uma esquerda vestal. Populista e errado. O povo brasileiro já perdeu. Não há diferença para o “povo” entre um governo fascista e um governo neoliberal. Um vai ferrar o povo pela incompetência (o fascista) e o outro vai ferrar o povo por vontade mesmo (neoliberal). Ambos vão aumentar a violência e coerção, mas nada que os moradores de favelas e as populações negras pelo país já não conheçam e convivam o tempo todo. O “povo” vai continuar lutando para sobreviver, comendo menos ovo, mais pão velho, e assistindo novela e futebol. O “povo” sobrevive e, eventualmente, vai mudar de posição.
Os dois carros se batendo vão arrasar é com a classe média privilegiada. Nem mesmo juízes, promotores, militares ou políticos vão sobreviver incólumes. A batida dos dois carros vai incomodar a quem pode pagar ingresso para assistir com pipoca. O resto tem que trabalhar.
Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/blog/fernando-horta/o-brasil-e-o-jogo-do-galinha-por-fernando-horta