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O Brasil sob o signo da violência. Por Gustavo Conde

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Marielle Franco é o rosto do Brasil neste momento. Mulher, negra, de esquerda e assassinada. O crime violento é também um recado bem claro, um recado do golpe. Ele está dizendo que não tem medo de represálias nem da justiça nem do estado e nem da imprensa.

Ele está dizendo que essas três instâncias são, inclusive, suas aliadas nesse momento, está dizendo que quem ousar romper a lógica do estado violento vai sofrer as consequências.

O golpe, através de suas várias faces, vai se impondo como a realidade de turno. O país inteiro ficou mais violento. As polícias ficaram mais violentas, os políticos ficaram mais violentos, as pessoas nas ruas ficaram mais violentas, os proprietários de terras ficaram mais violentos, os maridos ficaram mais violentos.

Nós vivemos sob o signo da violência que, por sua vez, está sob a chancela zelosa e interessada da imprensa – que nem merece mais ser chamada de imprensa. Violência, não nos esqueçamos, vende. Vende notícia. Mas, violência também é controle.

A violência como controle político

Violência é cabresto, é cooptação, é coação. Uma sociedade violenta com um poder público violento dispensa a democracia como vetor de resoluções dos conflitos sociais. Essa violência passa a ser o motor do funcionamento simbólico desta sociedade e retroalimenta todas as suas dimensões, num processo que passa a ser espontâneo. A violência no Brasil tornou-se espontânea.

O que esperar de um país em que um senador que ameaça matar alguém esteja em franca campanha em seu estado? O que esperar de um país em que ex-integrantes recém saídos do primeiro escalão do governo se ameaçam de morte na cadeia (Geddel Vieira Lima e Lúcio Funaro, moradores da Papuda)?

O Brasil não deu apenas um mergulho no abismo: o Brasil deu um salto na violência. É como se a violência tivesse sido “liberada”. É triste lembrar a primeira virada de ano deste golpe.

A chacina familiar em Campinas decorrente de ódio político somado a justificativas “lógicas” para vingança conjugal foi um soco na nossa percepção: o empoderamento político do gesto violento estava em pleno curso. A carta suicida do assassino, publicada pelos veículos de imprensa com requintes similares de ódio recalcado e os respectivos comentários dos leitores da grande imprensa que a subscreviam foram tão assustadores quando o próprio crime: eles “compreendiam” as razões assassino.

Não bastasse essa chacina tão conectada com o instinto assassino do golpe, tivemos as rebeliões nos presídios decorrentes, sobretudo, da “estratégia” de transferir presos do PCC para prisões do norte e do nordeste, obra do nosso glorioso ministro do STF, Alexandre de Moraes, não sem o endosso técnico da área humanitária do PSDB – desculpem a ironia indignada.

Só em Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, segundo relatório da ONU, foram mais de 100 mortes (e não 26, como alegam governos federal e estadual até hoje). Neste presídio, os rebelados cortavam as cabeças dos outros presos e jogavam por cima do muro de 5 metros que protegia o pavilhão carcomido pelo tempo. Essas imagens ficaram, evidentemente retidas pela grande imprensa, não porque são “extremamente fortes”, mas porque consolidam a vergonha internacional que se apoderou do Brasil após o impeachment fraudado de Dilma Rousseff.

A violência do golpe

Massacre de Alcaçuz, massacre de Manaus (56 mortos oficiais, 144 fugas), massacre em Roraima (33 mortos oficiais). Isso foi só o começo. Os massacres em presídios se sucedem de maneira vertiginosa e diária no país.

Às vezes, esquecemos do tamanho do Brasil, mas a prática de se ficar baseado em notícias do cenário político confuso toma conta do noticiário. Enquanto isso, as violações gravíssimas de direitos humanos vão se multiplicando nos 26 estados da federação.

Tudo isso é fruto de uma violência primeira, conceitual e simbólica que é a violência do golpe. O autor intelectual desse volume inédito de violência generalizada espalhada pelo Brasil atende pelo nome de Michel Temer. Os co-autores são o PSDB, o MDB e, sem a menor sombra de dúvida, a Rede Globo de Televisão.

A resposta a ela e a esses criminosos do poder está em gestação (avançada). Não há porque sofrer por antecipação diante da aparente impunidade desses maus elementos. A população brasileira, hoje, rechaça a Rede Globo e os autores do golpe. Isso está escancarado nas pesquisas de opinião, nos rostos das pessoas nas ruas e nos atos contra a Globo Brasil afora.

A questão aqui é: esse consórcio do golpe não apenas viola a democracia, vende o patrimônio público, degrada a soberania e distribui favores e pagamentos a todos os veículos de informação alinhados à sua causa destrutiva e difamatória. Esse consórcio é um agente deliberado de violência. Ele estimula a violência. Está em seu DNA a prática de violência como estratégia de perpetuação no poder. E a matriz conceitual de toda essa violência é o impeachment sem crime contra uma mulher. Esse evento disparou simbolicamente a violência em todo o país. Foi uma “senha”.

A senha para a prática da violência

A senha para que questões agrárias, por exemplo, fossem tratadas na base do olho por olho, dente por dente, foi dada pelo golpe. Há casos de moradores de rua que entraram em propriedades rurais particulares e foram mortos com requintes de violência. Pessoas compartilham – com mórbido prazer – imagens desses assassinatos, degolas e esquartejamentos em Wathsapp (são imagens primas-irmãs das imagens de acidentados em estradas). Há demanda simbólica por elas.

O que dizer das mensagens de Whatsapp de médicos do Sírio Libanês que descreviam tutoriais de como levar Marisa Letícia “a óbito”? O que dizer dos adesivos de Dilma Rousseff nas bocas dos tanques de gasolina dos carros? O que dizer da condução coercitiva de Lula – vazada para a produção de um filme cujo financiamento segue em suspeito sigilo? O que dizer dos genocídios indígenas em curso na região norte? O que dizer das tribos isoladas sendo dizimadas por garimpeiros, sem uma gota de preocupação da Funai aparelhada ou do STF? O que dizer da estranha reincidência de agressões físicas a professores em governos tucanos? O que dizer dos estupros coletivos? O que dizer da tentativa de proibir cursos sobre o golpe?

O dizer estancado na história

O que dizer, o que dizer, o que dizer. Talvez, tenhamos perdido essa capacidade de dizer. Essa capacidade de dizer depende em grande medida da democracia. O dizer não é apenas um espasmo vocal ou a produção de um enunciado controlado. O dizer é social. O dizer requer estímulo, é um gesto delicado que depende de cuidados a longo prazo de todo o tecido social.

Parte da sociedade brasileira que se apresenta hoje neste cenário pós golpe cresceu habitando zonas de silêncio. Talvez, seus signatários se ressintam disso, dessa capacidade de “não dizer” para não ser preso, para não ser torturado, para não ser morto. É um corolário da Síndrome de Estocolmo (que deveria se chamar Síndrome de Brasília): estabelece-se um apego ao seu algoz, à mordaça, com seu cheiro umedecido na própria saliva.

Mas, não só. A intervenção do dizer se dá sob a égide mais sofisticada das sabotagens discursivas espontâneas, sem face, que habitam a estrutura que nos dá direito a uma porção controlada de sentido. Essa matriz de sentido foi sabotada, o ímpeto básico do dizer, o processo elementar de perceber o mundo real e lhe dar significação através da ‘minha’ subjetividade e da ‘minha’ história.

Como na canção “O Trem Azul”, obra-prima de Lô Borges, há “coisas que a gente se esquece de dizer”. “As frases”, ele diz – e ele consegue dizer através de sua canção -, “o vento vem às vezes lembrar”. O vento lembra o que a memória interna esquece.

O céu da democracia pelo inferno do golpe

O vento da violência nesse instante está nos lembrando que ‘temos que dizer’, que não podemos ‘parar de dizer’. E temos que dizer com contundência, com assertividade, com autoestima, com amor próprio, com amor pelo outro, com respeito pelos que se foram para nos dar esse direito de dizer em passado não tão distante.

“Eu quero garantir o seu direito de dizer”. Era essa a tônica do governo Dilma. “Prefiro a voz rouca das ruas gritando no meu ouvido, do que o silêncio dos cárceres e da tortura da ditadura”. As palavras de Dilma Rousseff durante sua gestão marcam a diferença infinita daquele para este governo golpista que nos tomou todos os tempos da percepção: passado, presente e futuro.

Muitos economistas – esses seres autocentrados, autossuficientes e, por consequência, autômatos – acham que as comparações dos governos – se é que se pode chamar o governo Temer de um governo – se limitam a estatísticas e ao mundinho financeiro da Avenida Paulista. Até assim, o golpe toma uma surra acachapante. Mas, isso é o de menos. A questão em jogo é o espírito, é o conceito, é o conjunto de pressupostos que pode fazer um país andar para frente ou para trás.

De modo que, a sociedade brasileira trocou o céu da democracia, pelo inferno do golpe. Trocou a liberdade de expressão pela violência. Trocou os seus direitos trabalhistas pelo arrocho salarial. Trocou o preço estável da gasolina por reajustes diários. Trocou sua vida pela morte, entregou seus filhos a um governo pária e suicida.

Não nos iludamos: a sociedade não opera com conteúdos lógicos e sob o signo da coerência. A sociedade opera sob efeito manada, sempre. Isso é técnico, isso é estrutural. E, nesse sentido, o dizer político da sociedade é ‘emocionalizado’. Daí, a explicação para a overdose de ódio que tomou conta do país, num processo gradativo que remonta a 2005 e que atingiu seu ápice em 2015.

Para combater a força da natureza que é essa deriva do discurso social, para “domá-lo”, não é preciso força, é preciso inteligência. Mas, também, não só inteligência. É preciso muita intuição, muita espiritualidade e muita conexão com o povo e suas raízes.

O afluente Lula

É por isso que nem preciso dizer quem é a única pessoa capaz de produzir esse ciclo virtuoso do debate público e da moenda econômica e social. É por isso que ele é sinônimo de democracia. É por isso que ele assusta tanto, é por isso que ele incomoda tanto, é por isso que ele “deve” ser destruído a qualquer custo.

Sobretudo, porque se trata, evidentemente, de um ponto fora da curva. Ainda que esteja para nascer um ‘Lula’ e que o legado simbólico e operacional dele esteja poderosíssimo e mais vivo do que nunca, ele é figura única. Um ‘Lula’ não é a cada cem anos, é a cada mil. É por isso que ele é a maior vítima de lawfare que o mundo conheceu e/ou irá conhecer.

Lula é o único antídoto para esse mar de violência que se apoderou do Brasil. Na ânsia de destruí-lo, a elite brasileira acabou produzindo o seu próprio encurralamento, o que é muito perigoso, inclusive para nós, do segmento democrático.

Porque, sem Lula, o país não se pacifica. Seja quem for que assuma o país do pós golpe – e pode ser o próprio Lula, num lance de justiça que o destino nos deve – a chave para qualquer reconstrução passa por Lula, por seu legado, por sua inteligência e por sua humanidade.

Lula, no entanto, não atende mais por suas características humanas: ele é um sistema de políticas e conceitos que se alastra nesse momento por dentro de todo e cada cidadão brasileiro que tenha noção do que significam as palavras ‘caráter’ e ‘dignidade’. Ou seja: Lula não é “eliminável” como muita gente pensa.

O assassinato de Marielle como ponto de basta

O país terá de resolver esse impasse que o está impedindo de ‘dizer’. É essa sociedade violenta que queremos? Será que nossa elite é tão mesquinha e destituída de sentido de sobrevivência assim? Será que eles darão a vida por uma causa cuja origem eles mal conhecem e tampouco partilham?

Estamos cada vez mais próximos das eleições. A calmaria continua assustando. A impressão que dá é a de que não teremos eleições. O golpe se apodera da “situação Lula” para prolongar a agonia do país e mantê-la sob controle: o impasse sobre Lula impede que se haja pré campanha e dificulta muito as articulações entre partidos e ideias. Que eleição pode sair desse cenário?

O assassinato de Marielle Franco se apresenta como um ponto de basta. Ele se junta aos assassinatos de Wladimir Herzog, ao desaparecimento de Stuart Angel, ao atentando no Riocentro e a toda violência que a ditadura militar teve a desumanidade de produzir em nosso país. Iremos falar de Marielle ao longo dos próximos anos e décadas. Mulher, negra, militante, filiada ao Psol, ativista, corajosa e, a partir de agora, exemplo e símbolo para mulheres e homens do mundo todo.

O golpe engloba a Globo

É preciso frear essa escalada de violência no país e, para isso, é preciso agir. Mas também é preciso ‘dizer’. É preciso identificar a origem da violência. E a violência não é essa pintada pela Rede Globo . A violência nasce da própria emissora de televisão, com sua histórica, conhecida e já cientificamente analisada manipulação da percepção política do país, via distorção dos fatos. Esse é o câncer violento a se combater.

Mas, o golpe – este golpe que já é tema de curso em 23 universidades pelo país – engloba a Globo. Ele e proprietário da prerrogativa de ser a matriz oficial dessa escalada de violência que tem funcionado como elemento de controle social e político. Em parceria com a Globo e, em grande medida, com o poder judiciário, o golpe avança e vai deixando recados via assassinatos, massacres e genocídios.

O Brasil, hoje, é, certamente, a capital mundial da violência urbana, rural, social e política. É possível dizer, sem pestanejar, que se trata do país que mais viola direitos humanos no mundo, considerando o volume de sua população e suas dimensões territoriais e geopolíticas.

Que o vento da história nos traga os dizeres necessários para restituir a brisa suave da humanidade cotidiana. O país não aguenta mais.

* Artigo originalmente publicado no Site Brasil 247

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