O cantar das calopsitas e a caixa de Pandora. Por Mauro Santayana
Dizem os proprietários de passarinhos – entre os quais não me incluo, já que não prenderia ninguém a não ser que fossem esgotados definitivamente todos os recursos de defesa – que as calopsitas, quando começam a gritar e a se agitar, ou estão chamando o dono, ou tentando dizer alguma coisa.
Já seus primos, os papagaios, ao menos aparentemente, conseguem chamar quem querem pelo nome.
Conheci um que pertencia a uma amiga chamada Maria Teresa, que morava no Rio, que gritava, da área de serviço, solicitando sua presença: Terezinha!!! Terezinha !!!, com a mesma entonação do “Alô, Alô” Terezinha! do Chacrinha.
E um outro que, descoberto por um amigo na varanda do prédio de apartamento em que morava, em Copacabana, só o chamava pelo mais poderoso insulto, palavrão ou expressão da língua portuguesa, até hoje não se sabe se por não ter-se adaptado ao novo lar, ou porque acreditava, quem sabe, haver sido subtraído de alguma forma de sua antiga existência, ou residência – que para nós ficava em paradeiro ignorado, apesar de cartazes colados pela vizinhança com a foto do dito-cujo – pelo novo dono.
Há outros animais de asas, como o Pássaro Lira – um compatriota australiano da calopsita que faz muito sucesso com seus vídeos nas redes sociais – que vão além em suas artimanhas pseudo canoras, e conseguem imitar serras elétricas, marteladas, serrotes, alarmes de carro, que poderiam, teoricamente, se quisessem, emular o ruído de situações ainda mais marcantes, como o ronco de motores de tanques, o sinistro rufo do martelar noturno de coturnos sobre o asfalto cercando quarteirões e ruas, os gritos de comando lançados, durante golpes de estado, a tropas de choque na repressão a manifestações em defesa da liberdade, o matraquear de metralhadoras em improvisados pelotões de fuzilamento ou sobre multidões em fuga.
Se deixado sobre o ombro de ditadores ou em salas de tortura – daquelas que se pretende agora celebrar carnavalescamente em blocos de rua – quem sabe que espécie de gritos, sons, imprecações, não poderia aprender, em curto espaço de tempo, esse pequeno passeriforme, cujas penas lembram as do pavão, além de raivosos discursos fascistas, estes não tão diferentes do ladrar de canídeos em fúria?
Quem não se lembra da antiga piada do papagaio que latia para chamar o cão de guarda mudo?
Seria interessante saber o que estão pretendendo dizer – e fazer – como certos periquitos quando estão inquietos – alguns figurões da República que, especialmente no âmbito do Judiciário, ao se meter indubitavelmente e cada vez mais na seara política, não fazem o menor esforço para esconder a sua mais profunda indiferença – para não dizer desprezo – pela prudência, o equilíbrio e o bom senso e um total desrespeito pela Constituição, a quem tratam como um boneco de massinha que podem torcer e distorcer em uma espécie de vodú a qualquer momento, para atingir certos partidos e desafetos que, para galgar os altos poleiros em que se encontram, andaram procurando em passado não muito distante.
Como é possível que o TSE aprove a liberação de outdoors com slogans fascistas e o rosto de pré-candidatos, sem nenhuma restrição de uso; e o autofinanciamento total de campanha por candidatos milionários, em clara concessão de privilégio, que contraditoriamente facilitará em muito o Caixa 2; enquanto setores da justiça destroem a República, o país e a economia com o discurso de que a corrupção e o financiamento empresarial de campanha distorcem o equilíbrio e o resultado dos pleitos, e se pretende impedir a candidatura de certos candidatos em benefício de outros, com uma evidente e descarada campanha de lawfare que está escandalizando o mundo inteiro?
Antes, as mais altas instâncias do Judiciário pareciam que estavam apenas se deixando levar pela pressão da mídia e de grupelhos sectários instalados em corporações como o Ministério Público e a Polícia Federal.
Nesta triste e lamentável quadra da vida nacional, parece que agora se esmeram em tentar traduzir e antecipar – tratando-os como se fossem seus – os desejos e pressões desses grupos, como se pretendessem sinalizar à opinião pública que a iniciativa está em suas mãos, quando até mesmo jovens procuradores destratam publicamente membros da Suprema Corte e a população não espera nada de seus ministros além de que cumpram – principalmente quando a confusão e os desafios se avolumam – o dever e sua missão precípua de respeitar, defender e proteger a Constituição da República.
Qual é a motivação que está por trás de certos erros e equívocos?
A egolatria espetaculosa e farsesca que parece estar contaminando segmentos cada vez maiores da polícia, do Judiciário e do Ministério Público?
O medo de destoar daquela que consideram – erradamente, muito erradamente – ser a opinião da maioria?
A conspiração intuitiva, empírica, subjacente, que parece estar empurrando, nos últimos quatro anos, certos setores da plutocracia estatal para um verdadeiro assalto ao poder, voltado para desvalorizar os eleitos e a soberania popular e acuar homens públicos que, com todos os seus defeitos, não caíram onde estão de paraquedas e foram ungidos, nas urnas, por dezenas, centenas de milhares de votos?
O que ocorrerá quando, por causa de um discurso hipócrita e mendaz de criminalização, a política tradicional for alijada, na prática, da vida nacional?
E certos setores que almejam substituí-la deixarem – ao menos momentâneamente – de brincar com fogo sobre os despojos da República, como um bando de aprendizes de nero armados dos novos lança-chamas lançados por Elon Musk, a mil e quinhentos dólares a peça, para combater eventuais epidemias zumbis, no mês passado?
Restando apenas, com claríssimo prejuízo para a diversidade democrática, pecuaristas, pastores e policiais no Congresso Nacional?
Alguém acredita que se estabelecerá entre essas forças uma longa PAZ TUPINICÂNICA?
Ou a balbúrdia institucional – se não for eleito um maluco autoritário para disciplinar todo mundo na taca – continuará imperando e o espólio do poder será disputado a tapa, como já ocorre, por exemplo, no âmbito da polícia, do Judiciário e do Ministério Público, com relação ao direito de se negociar acordos de leniência e de delação premiada?
A Justiça precisa parar de ficar olhando, entre fascinada e embevecida, pelo buraco da fechadura, enquanto balança a Caixa de Pandora para adivinhar o que tem dentro.
Não se brinca com a Democracia impunemente.
Como por várias vezes já lembramos aqui, infeliz e inutilmente, a História não perdoa os amadores.
Artigo publicado em https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-cantar-das-calopsitas-e-caixa-de-pandora-por-mauro-santayana/