Aldeia Nagô
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O método Veja de fazer jornalismo. Por Luis Nassif

13 - 18 minutos de leituraModo Leitura

A degradação jornalística da revista Veja foi fruto de dois fenômenos
simultâneos que sacudiram a mídia nos últimos anos: a mistura da cozinha com a
copa (redação e comercial) e o afastamento dos princípios jornalísticos básicos.


 Vamos analisar um processo de cada vez.
 
 A copa e a
cozinha
Os grupos de mídia sempre tiveram muitos interesses em jogo.
Mas, para não contaminar as redações, se procurava tratar em âmbito das cúpulas
das empresas. Sempre havia maneiras "técnicas" de vetar determinadas matérias
que não interessavam, assim como conferir tratamento jornalístico a matérias de
interesse da casa.
 
 Para administrar esse território delicado, as boas
redações jamais prescindiram de comandantes fortes e competentes. Eram os
avalistas do jornalismo perante a empresa e da empresa perante a redação. Eles
não iam contra a lógica comercial, mas eram os radares, aqueles que informavam
até onde se poderia avançar ou não no noticiário sem comprometer a credibilidade
da publicação.
 
 Apos a crise cambial de janeiro de 1999, o quadro
começou a mudar. Apertos financeiros levaram gradativamente muitas publicações a
abrirem mão de cuidados básicos, não só permitindo a promiscuidade entre a copa
e a cozinha (redação e comercial), mas também em manobras de mercado. Quanto às
manobras de mercado, deixo apenas registrado, porque não será tema dessa série.

 
 Um episódio, no inícios de 1999, marcaria os novos tempos. Em 10 de
março de 1999, em pleno escândalo das "fitas do BNDES", a revista recebeu
material demonstrando que a Previ tinha assinado acordo com o banco Opportunity,
de Daniel Dantas, mesmo tendo sido desaprovado por sua diretoria. A matéria foi
feita pelo repórter Felipe Patury (clique aqui).

 
 "No início de fevereiro, um diretor do fundo, Arlindo de Oliveira,
mandou uma carta ao presidente da Previ. São três páginas, e o tom é de
indignação, expresso em frases que se encerram com três pontos de exclamação. Na
carta, o diretor relata que a diretoria da Previ, reunida em julho do ano
passado, decidiu que não faria parceria com o Opportunity no leilão das teles
tendo de pagar ao banco 7 milhões de reais por ano de "taxa de administração". A
diretoria achou o valor descabido e decidiu só fazer o negócio se não tivesse de
pagar a taxa. O estranho é que essa decisão foi ignorada. A Previ associou-se ao
Opportunity na compra de três teles (Tele Centro Sul, Telemig Celular e Tele
Norte Celular) e comprometeu-se a arcar com os 7 milhões de reais por ano,
apesar da decisão contrária da diretoria.
 
 Segundo a matéria, a Previ
também havia entrado – sem autorização da diretoria – na operação de compra da
Telemar que – na época – pensava-se que sairia para o Opportunity".
 
 Na
semana seguinte, o repórter conseguiu mais material das suas fontes. Chegou a
preparar a matéria. Na edição seguinte, de 17 de março de 1999, a matéria não
saiu publicada. Mas, pela primeira vez, o banco Opportunity – denunciado na
edição anterior – bancou duas páginas de publicidade na revista.
 
 Não
batia. O Opportunity não é banco de varejo, não atua sequer no middle market.
Não havia lembrança de publicidade dele nem mesmo em revistas especializadas –
como a Exame.
 
 No dia 31 de março de 1999, mais duas páginas de
publicidade do Opportunity.
 
 Esse mesmo procedimento – em mão inversa –
seria empregado nas duas edições em que Diogo Mainardi me atacou, em defesa de
Daniel Dantas. Só que, nesses casos, a fatura foi mais alta: 6 páginas de
publicidade da Telemig Celular e Amazônia Celular em cada edição, 12 ao todo.
Também não se justificava tamanho investimento publicitário por parte de
empresas que tinham atuação regional.
 
 Qualquer manual de administração
ensina que, quando a empresa passa a fugir do comportamento ético nas suas ações
externas, acaba contaminando toda a estrutura.

 
 
 Aparentemente, ocorreu um liberou geral na revista. É o que
explica as atitudes de Eurípedes com Eduardo Fischer ou as de Mário Sabino
manipulando relações de livros para incluir o seu na lista. E o lobby
escancarado da revista em favor de Daniel Dantas, especialmente através das
colunas de Diogo Mainardi.
 
 Com escorregões cada vez mais freqüente,
passou a se tornar difícil – mesmo para os leitores mais atilados – identificar
o que eram falhas editoriais, o que era interesse da Abril e o que era interesse
dos diretores da revista.
 
 Havia um fator a mais a estimular a falta de
controle: a desobediência completa aos princípios jornalísticos básicos. E aí se
entra em um farto material sobre o mais completo compêndio de anti-jornalismo
que a história moderna da mídia brasileira registrou: o estilo Veja de
jornalismo.
 
 Desde os anos 80, cada vez mais Veja se especializaria em
"construir" matérias que assumiam vida quase independente dos fatos que deveriam
respaldá-las. Definia-se previamente como "seria" a matéria. Cabia aos
repórteres apenas buscar declarações que ajudassem a colocar aquele monte de
suposições em pé.
 
 Essa preparação prévia da reportagem ocorre nas
reuniões de editores, toda segunda-feira. É chamada de "pensata". É considerado
bom repórter, pela revista, aqueles que conseguem se adaptar melhor ao espírito
da "pensata".
 
 O que era um estilo criticável, com o tempo, acabou
tornando-se uma compulsão, como se a revista não mais precisasse dos fatos para
compor suas reportagens. Ela se tornou uma ficção ampla, o que é de conhecimento
geral dos jornalistas brasileiros.
 
 Ainda nos anos 80, o caso mais
célebre foi o do "boimate" – criação de Eurípedes Alcântara, já mencionado em
outro capítulo.
 
 Mas, à medida que se entrava na era Tales
Alvarenga-Eurípedes-Sabino, final dos anos 90 em diante, esse estilo ficcional
passou a arrostar os limites da verossimilhança.
 
 O primeiro filtro
sobre uma matéria é avaliar se os fatos relatados são verossímeis. Se passar
nesse teste básico, é que se irá conferir se, mesmo sendo verossímeis, também
são verdadeiros.

 
 Com o tempo, gradativamente o jornalismo de Veja deixou de passar
sequer por esse filtro básico. Tornou-se cada vez maior a quantidade de matérias
absurdas, sem nexo, sem conhecimento básico sobre economia, finanças, valores,
relações de causalidade. E sobre jornalismo, enfim.
 
 O modelo Veja de
reportagem
 
 Antes de análises de caso, vamos a uma pequena explicação
sobre como é esse estilo Veja de reportagem, que se parece muito com essa
brincadeira de desenhar juntando os pontos de uma página em branco.
 
 1.
Levantam-se alguns dados verdadeiros, mas irrelevantes ou que nada tenham a ver
com o contexto da denúncia, mas que passem a sensação de fazerem parte de um
todo maior. Ou de que o jornalista, de fato, acompanhou em detalhes o episódio
narrado.
 
 2. Depois juntam-se os pontos, estabelecem-se relações entre
eles ao bel prazer do repórter. Cria-se um roteiro de filme, muitas vezes
totalmente inverossímil, mas calçando-o em cima de alguns fatos supostamente
verdadeiros.
 
 3. Para "esquentar" a matéria ou se inventam frases que
não foram pronunciadas ou se tiram frases do contexto ou se confere tratamento
de escândalo a fatos banais. Tudo temperado por forte dose de adjetivação.

 
 O caso "boimate" é clássico. Depois de cair no conto de 1o de abril da
New Scientist – sobre um cruzamento de boi com tomate que resultou em uma carne
com molho -, coloca-se um repórter para obter uma frase de efeito de um
cientista da USP.
 
 O repórter pergunta o que o cientista acha. A
resposta foi óbvia: era impossível. O repórter tinha que voltar com a frase que
se encaixasse na matéria, então insiste: "E se fosse possível!". O cientista,
ironizando: "Seria a maior revolução da história da genética".
 
 A
matéria saiu com a frase do infeliz dizendo que era a maior revolução da
história da genética.
 
 As colunas de Diogo Mainardi sobre o caso
Telecom Itália são um exemplo amplo dessa deformação jornalística – claramente a
serviço de um lobby.

 
 Dentre todos os repórteres, no entanto, nenhum se esmerou mais na
arte ficcional que Policarpo Júnior, recentemente promovido a Diretor da
Sucursal de Brasília da publicação. Assim como Lauro Jardim e Mainardi cultivam
os lobistas cariocas, Policarpo é um freqüentador habitual do submundo de
Brasília, convivendo com arapongas, policiais e lobistas em geral.

 
 Vamos a alguns exemplos pré-governo Lula para entender, na prática, em
que consiste esse estilo Veja, a partir de algumas obras de Policarpo.

 
 O caso Chico Lopes
 
 Em janeiro de 1999, quando houve o
estouro no câmbio, seguiu-se uma catarse geral na mídia, uma busca de escândalos
a qualquer preço. Foram publicados absurdos memoráveis, que acabaram se perdendo
no tempo – como o de que Fernando Henrique Cardoso se valia do seu
Ministro-Chefe da Casa Civil Clóvis Carvalho para informar os banqueiros sobre
as mudanças cambiais.
 
 O escândalo refluiu, cada publicação tratou de
esquecer as ficções que plantou e a vida prosseguiu.
 
 Na época, Veja
publicou uma capa acusando Chico Lopes de ter beneficiado os bancos Marka e
FonteCindam com informações privilegiadas. Chegou a afirmar que quatro bancos
pagavam US$ 500 mil mensais para terem acesso a informações privilegiadas sobre
câmbio (clique aqui).
 
 A matéria não respondia à questão central: se os
dois bancos recebiam informações privilegiadas de Chico Lopes, se Chico assumiu
a presidência do Banco Central com a missão precípua de mudar a política cambial
porque, raios!, apenas eles quebraram na mudança? Na época, a explicação de Veja
já era absurda. Assoberbado com os problemas da mudança cambial, Chico tinha se
esquecido de avisar seus clientes (que lhe pagavam US$ 500 mil mensais apenas
para ter aquela informação).
 
 O mistério persistiu até o dia 23 de maio
de 2001 quando saiu a capa da Veja "A História Secreta de um Golpe Bilionário"
um clássico à altura do "boimate", de Eurípedes Alcântara (clique aqui).

 
 

 
 A abertura nada ficava a dever a um conto de Agatha Christie.
 
 O
momento mais dramático do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso
ocorreu no dia 13 de janeiro de 1999.(…) O que ninguém sabia é que, desde
aquele dia, um grupo reduzidíssimo de altos membros do governo passou a guardar
um segredo de Estado, daqueles que só se revelam vinte anos depois da morte de
um presidente. Após quatro meses de investigação e 22 entrevistas com catorze
personagens envolvidos, VEJA desvendou peças essenciais para o esclarecimento do
mistério, que resultou na inesperada, e até hoje inexplicada, demissão do
presidente do Banco Central apenas duas semanas depois da desvalorização.

 
 A demissão de Lopes tinha sido mais que explicada: os erros na
condução da mudança da política cambial.
 
 O então presidente do Banco
Central, o economista Francisco Lopes, vendia informações privilegiadas sobre
juros e câmbio – e uma parte de sua remuneração saía da conta número 000 018,
agência 021, do Bank of New York. A conta pertencia a uma empresa do Banco
Pactual, a Pactual Overseas Bank and Trust Limited, com sede no paraíso fiscal
das Bahamas. Chico Lopes, como é conhecido, repassava as informações para dois
parceiros, que se encarregavam de levá-las aos clientes do esquema. Os contatos
entre os três eram feitos por meio de aparelhos celulares. A Polícia Federal
suspeita que os números sejam os seguintes: 021-99162833, 021-99835650 e
021-99955055
 
 Salvatore Alberto Cacciola, então dono do banco Marka, do
Rio de Janeiro, descobriu todo o esquema por meio de um grampo telefônico ilegal
e também passou a ter as mesmas informações privilegiadas. As fitas, que
registram as conversas grampeadas, estão guardadas num cofre no Brasil – e há
cópias depositadas num banco no exterior. Cacciola chegou a custear viagens a
Brasília para que seu contato obtivesse, pessoalmente, as informações de Chico
Lopes. Numa delas, seu contato voou do Rio a Brasília num jatinho da Líder Táxi
Aéreo (o aluguel do jato saiu por 10 500 reais) e hospedou-se no hotel Saint
Paul (a conta: 222,83 reais). Quebrado com a mudança cambial, que seu informante
não conseguiu avisar-lhe a tempo, Cacciola desembarcou em Brasília no dia
seguinte, 14 de janeiro de 1999, com o que chamou de "uma bazuca". Ela estava
carregada de chantagem: ou o BC lhe ajudava ou denunciaria ao país a existência
do esquema. O BC ajudou. Vendeu dólar abaixo da cotação e, no fim, Cacciola
levou o equivalente a 1 bilhão de reais.

 
 Era um furo fantástico! Cacciola não seria mais o financiador das
informações privilegiadas de Chico Lopes. Em vez de pagar US$ 500 mil mensais,
descobrira o modo mais barato, de grampear os celulares por onde transitavam as
informações secretas.
 
 Na mesma abertura se dizia que ele se informava
através de um "grampo" e que ele tinha um informante.
 
 Nem se fale do
contra-senso de alguém experiente em mercado jogar todo seu futuro no resultado
de um "grampo". Não tinha lógica. Qualquer decisão de mudança de política
cambial seria imprevista, da noite para o dia. Como confiar toda sua vida
financeira a um mero "grampo"?
 
 Segundo a matéria, no dia aziago o
grampo falhou, e Cacciola quebrou. Indignado, foi tirar satisfações com Chico
Lopes, que cedeu à chantagem.
 
 Não tinha pé nem cabeça. Mas como foi
montado esse nonsense?
 
 Depois de "22 entrevistas com 14 personagens"
envolvidos, Policarpo havia conseguido – de fato – as seguintes informações:

 
 1. Com Luiz Cezar Fernandes, ex-controlador do Pactual, em briga com
seus ex-sócios, o número da suposta conta-corrente do Pactual em Nova York, de
onde sairiam os supostos pagamentos para Chico Lopes. Na verdade o numero
apresentado era o de registro do banco na praça de Nova York, feito junto ao
Banco de Nova York – equivale aquele 001 que você confere nos cheques do Banco
do Brasil.
 
 2. Na declaração de renda de Luiz Bragança (o suposto
intermediário de Chico Lopes no vazamento das informações) algum araponga
brasiliense levantou os números dos três celulares. Ou seja, o sujeito montava
um esquema super-secreto para transmitir informações, que supostamente renderia
US$ 500 mil mensais, valendo-se de telefones celulares – e colocava o numero dos
aparelhos na sua declaração de renda.
 
 
 Eram essas as informações
de Policarpo, e algumas outras, como o vôo de Cacciola a Brasília, o hotel onde
se hospedou, informação sem nenhuma relevância e fartamente divulgada pela
imprensa em janeiro de 1999.

 
 Como tempero final, um apanhado de fatos e dos boatos mais
inverossímeis que circularam por ocasião da mudança cambial. De fatos, a conta
que Chico Lopes tinha no exterior – descoberto pela Polícia Federal.

 
 Bastava isso para se para se ter um enredo que provocou gargalhadas em
todos os jornalistas que cobriam a área financeira. Veja tinha a informação
sobre os celulares de Bragança, tinha declarações de Cacciolla de que fizeram
alguns "grampos". Pronto: bastou para concluir que as informações transitavam
pelos celulares (o mais vulnerável dos meios de comunicação) e Cacciolla ficava
sabendo através de "grampos". Nenhum dado adicional respaldava essa conclusão.

 
 Na época apontei a maluquice; minha colega Mirian Leitão também. E
menciono a Mirian por que, anos depois, essa crítica estimularia uma revanche de
Veja: ataques continuados a seu filho Matheus Leitão, repórter da revista Época.
Essa história será contada em outro capítulo.
 
 Citado na matéria, o
economista Rubens Novaes, enviou carta a Veja esclarecendo todos esses pontos. A
carta jamais foi publicada. Ele limitou-se a enviar cópias para alguns
jornalistas.
 
 Longe de mim afirmar que não houve irregularidade, que
Cacciola era inocente, ou mesmo colocar a mão no fogo por Chico Lopes. Na época,
mesmo, divulguei indícios fortes de que Cacciola tinha, no mínimo, alguém que
lhe passava informações sobre as taxas de juros praticadas pelo Central – e até
sugeri a metodologia para identificar essa prática de "insider".
 
 Mas
era evidente que toda a matéria de Veja se constituía em ficção ampla.

 
 Anote esse exemplo porque, longe de se constituir em exceção, refletia
um padrão de "jornalismo" presente em todas as coberturas bombásticas da
revista.
 
 Na era Eurípedes-Sabino, Policarpo, repórter de escândalos,
freqüentador, como jornalista, do submundo dos lobbies de Brasília, tornou-se
diretor da sucursal da revista. E se tornaria o autor das capas mais
rocambolescas da cobertura do "mensalão".

 
 Coube a ele divulgar o vídeo em que o funcionário dos Correios,
Mauricio Marinho, aceitou a propina de R$ 3 mil. E que deflagrou a campanha do
"mensalão".
 
 Mas isso é tema para outro capítulo.

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