O PT precisa definir um vice. Por Aldo Fornazieri
Em artigo anterior se afirmou que o PT se encontra numa encruzilhada, com três estradas, e que cada uma delas implica altos riscos. Quais sejam: 1) marchar com a candidatura Lula até o fim; 2) escolher outro candidato; 3) participar de uma frente de esquerda, ocupando a posição de vice na chapa.
Afirmou-se ainda que as circunstâncias da condenação e da prisão de Lula implicam que o partido caminhe com ele até o fim, jogando para os ombros das elites e do Judiciário o custo de interditar a candidatura do líder mais popular do Brasil.
A estratégia de marchar com Lula, correta pelo que ele representa, correta pelo dever da lealdade, correta pelo sacrifício injustificado a que Lula está submetido por um Judiciário golpista, correta porque é preciso assumir uma política de enfrentamento contra elites predatórias e contra a marcha fascistizante no país, precisa, contudo, de um complemento. Trata-se de definir um vice na chapa de Lula para que a própria estratégia ganhe consistência e potência, para que saia de um terreno meramente defensivo e evite o definhamento do capital eleitoral de Lula, pois o seu capital político só tende a crescer.
É preciso notar que há uma diferença entre o capital político e o capital eleitoral. A força mítica de Lula se fortalece à medida em que ele sofre na cadeia, na medida em que ele está desterrado do convívio humano, na medida em que seu cárcere é pior do que os cárceres da ditadura e se parece com os calabouços dos martírios medievais ou com as celas dos campos de concentração dos regimes totalitários. Quanto mais Sérgio Moro assume a face de um juiz injusto, impiedoso, cruel, nazista e desumano, mais o sacrifício de Lula vai se tornando força e energia vivificantes de lutas e esperança de transformações.
A força mítica de um líder, contudo, pode permanecer latente por anos, por décadas, por séculos. Fica como uma brasa ardente sob as cinzas dos tempos históricos, cativos das tragédias e da impotência dos povos. Fica ardendo de forma latente até que um outro líder, um partido, um movimento a transforme novamente em chama viva, capaz de acender a imaginação, as mentes e as paixões orientadas para os combates criativos, transformadores da realidade injusta.
O problema do PT é precisamente este: como transformar a energia e a potência mítica de Lula em chama, em força viva, em movimento transformador. Um acampamento de solidariedade é importante, mas é insuficiente. Um eloquente e unificado 1º de Maio em Curitiba é simbólico, mas não pode se esgotar em si mesmo. Cartas, solidariedade das mais diversas personalidades, partidos e movimentos são reconfortantes, mas tudo isto precisa transformar-se em movimento de rua e em força organizada, principalmente quando a covardia neofascista desencadeia ofensiva crescente de violência política.
A força mítica do líder não é ativada por ele mesmo quando se encontra preso. Seja no caso em que se encontra preso, seja no caso de quando partiu para o além, a força mítica do líder só se torna energia e movimento se for ativada pelos seus herdeiros, pelos seus partidários, pelos seus seguidores e devotos. O PT não vem se mostrando capaz de ativar a potência de Lula. Em que pese o crescimento do apoio e da solidariedade a Lula, não está ocorrendo uma convulsão nas ruas cogitada por dirigentes petistas. Não se vêem barricadas, e os prédios dos poderes públicos não estão sitiados por manifestantes. A calma da resignação e da derrota contrasta com a estridência das declarações e das proclamações. Não dá para ficar no “só Lula isso…, só Lula aquilo”, enquanto Lula permanece preso sem perspectiva de sair e sem que haja força para libertá-lo. É preciso agir e construir essa força. A coragem precisa ser real, não pode ser pueril, bravateira.
Há um paradoxo em tudo isso. Desde 2016, com a instalação do governo golpista, o humor da sociedade vem mudando. O golpismo, o conservadorismo e o governo perdem espaços na opinião pública e uma opinião simpática às teses progressistas vem crescendo. Isto tudo contrasta com as sucessivas derrotas do PT e da esquerda no plano institucional, particularmente no plano das decisões judiciárias. A estratégia do PT errou ao acreditar em demasia nos meandros judiciais e advocatícios, não cuidando de organizar e mobilizar as bases sociais.
Por que um vice
A campanha eleitoral, a rigor, já está em andamento. Guilherme Boulos, Manuela e Ciro Gomes, corretamente, vão ocupando espaços políticos e eleitorais disponíveis, buscando consolidar suas candidaturas e angariar votos. Os candidatos de centro e direita também se movimentam. Com seu candidato na condição de prisioneiro político, o PT está paralisado eleitoralmente. E na medida em que Lula é prisioneiro, boa parte do seu eleitorado, naturalmente, busca alternativas porque, no seu cálculo realista, não acredita na possibilidade da candidatura Lula. Esta busca de alternativas não expressa uma erosão do capital político de Lula e nem uma deslealdade do eleitorado. Ela se define pelo caráter pragmático do eleitor. Em suma: a força mítica não pode ser mística. Ela incorpora a fé, mas precisa ser realista.
Quanto menos o PT ocupar o espaço eleitoral, mais crescerá a discrepância entre o capital político e o capital eleitoral de Lula. Até mesmo candidatos da direita e de centro tendem a capturar parcelas de eleitores de Lula, como mostram as pesquisas. Esta sangria, o PT tem a responsabilidade de estancar. E a forma de estancá-la consiste na definição de um vice para que ele se movimente nos espaços eleitorais existentes, defendendo Lula, defendendo um programa para o país e defendendo propostas orientadas para as necessidades do povo. Este candidato a vice, na ausência de Lula, tem que fazer-se Lula junto ao povo.
Todos sabem que a força do PT sempre esteve aquém da força de Lula. Sem Lula comandando um processo eleitoral, a erosão do PT tende a ser maior. Haverá uma despotencialização das candidaturas a deputado, governador e senador se não for apresentada uma estratégia que indique perspectiva de poder. Aliás, é incompreensível que o PT e os demais partidos de esquerda não tenham estratégias fortes para a disputa nos legislativos – instâncias de poder e de decisão fundamentais para a disputa de hegemonia e de viabilização de políticas progressistas. Por exemplo: no caso do PT, líderes como Tarso Genro, Olívio Dutra, Jacques Wagner, entre tantos outros, deveriam disputar cadeiras na Câmara dos Deputados neste momento angustiante para o povo brasileiro, neste momento em que há a necessidade e o dever de barrar o crescimento do conservadorismo e do neofascismo.
A necessária e urgente definição de um vice não deveria significar o fechamento do PT para o fortalecimento de relações e para possíveis negociações eleitorais com partidos progressistas e de esquerda. Neste momento há um dever que se sobrepõe aos interesses individuais e partidários: barrar a direita e fortalecer o campo progressista. Nesta conjuntura difícil e imprevisível, os dirigentes partidários e o próprio Lula, na sua solidão, devem ser iluminados pela sabedoria e pela prudência. Lutar pela liberdade de Lula, defender a democracia enfrentando os neofascistas e propor programas e propostas para tornar o Brasil mais justo, igualitário, livre e desenvolvido são as finalidades comuns dos progressistas e das esquerdas. É preciso virtude moral e competência operacional para manejar os meios e os métodos necessários para obter êxito nos fins.
Aldo Fornazieri é cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP)
Artigo publicado originalmente em https://www.brasil247.com/pt/colunistas/aldofornazieri/353103/O-PT-precisa-definir-um-vice.htm