O Tribunal não é de exceção, mas o julgamento sim por Wanderley Guilherme dos Santos (*)
Não sei se José Dirceu é inocente ou se, como outros, cometeu algum crime à sombra do ilícito caixa 2. Os autos devem esclarecer isso. Há algo que não depende dos autos, todavia: será um julgamento de exceção se condenado por não haver provas contra ele.
Alguns magistrados do Supremo estão prontos a contorcionismos chineses para escapar à evidência de que a legislação eleitoral é causa eficiente do caixa 2 e que este proporciona a oportunidade para diversos crimes que nada têm a ver com tal ilícito.
Comentários antecipando votos condenatórios com base em provas nos autos preparam o caminho para condenações sem provas. A premissa de que chefes de quadrilha não deixam rastros – interpretação peculiar da tese do domínio do fato – pode ser defensável, mas requer comprovação sem sombra de dúvida e, até, agora, nenhuma condenação se apoiou em tal tese ou na versão mais amena de que quanto mais elevado nas hierarquias de poder, maior a possibilidade de que criminosos eliminem os indícios. As condenações por corrupção passiva de João Paulo Cunha e de Henrique Pizzolato são exemplos de que os discursos são para outros.
João Paulo Cunha foi condenado com fundamento na prova de que os recibos que explicariam os 50 mil recebidos por sua mulher foram forjados. Enquanto as falas do procurador e do ministro revisor só apontavam indícios a que atribuíam hiperbólica significação, a ministra Rosa Weber revelou que os recibos possuíam numeração seriada, embora supostamente preenchidos em datas afastadas no tempo. Com isso, a ida da mulher de João Paulo Cunha ao banco para retirar o dinheiro em espécie deixou de ser um comportamento esdrúxulo, sem dúvida, mas não criminoso, e muito menos da conta de ministros do Supremo, para se tornar um indício poderoso da ilegalidade do recebimento. Até porque os comentários dos juízes eram contraditórios: para Carmem Lucia fazendo sua mulher descontar o cheque à luz do dia era manifestação solar de arrogância de poder de João Paulo, indicativo seguro de que se sentia impune; para Rosa Weber, disfarce, dissimulação, sombra; para César Peluso, garantia de que chegaria em casa e não seria apropriado por outrem (esse comentário é interessante em outro contexto). Comentários diversos e contraditórios, mas o fundamento do voto foi o mesmo: a seriação dos recibos falsos. Ora, o presidente da Câmara é terceiro na linha de sucessão do poder executivo e os próprios magistrados exaltaram sua posição para melhor revelar como o crime merecia ainda mais forte repulsa. Não obstante, apesar desta posição hierárquica elevada, joão paulo deixou rastros toscos, elementares. Não foi porque, dada sua posição elevada, João Paulo não deixou pistas e foi condenado assim mesmo. Rosa Weber e todos os que o condenaram o fizeram com base nas provas toscas que deixou. A tese abstrata de Rosa Weber e do procurador é contrária aos fatos aqui.
O mesmo em relação a Henrique Pizzolato. Ele foi condenado porque não apresentou a pessoa que, segundo sua explicação, seria o destinatário final do pacote cujo conteúdo alegava desconhecer. Alegação tosca e rude que, não sendo provada, prova o seu oposto, isto é, que ficou com o dinheiro indevido. Membro do corpo mais elevado da administração do Banco do Brasil, deixou, não obstante, rastros que permitiram aos juízes do Supremo o condenarem. Ele deixou rastros e foi condenado por eles, não porque tenha faltado provas. Outro exemplo em que o discurso abstrato sobre o domínio do fato nada tem com o voto real, sendo apenas preparatório para o momento em que não houver mesmo prova alguma e os juízes condenarem assim mesmo, configurando um julgamento de exceção.
João Paulo Cunha e Henrique Pizzolato não foram condenados em virtude de pertencerem a algum esquema diabólico efetivamente comprovado, como querem o procurador e o ministro relator, mas justamente porque não conseguiram comprovar que os ilícitos que cometeram resultaram da participação no ilícito caixa 2. Eram corrupção passiva mesmo. Assim como o ilícito de Marcos Valério, que no contrato com a Visanet cometeu apropriação indébita, via corrupção ativa, e Pizzolato corrupção passiva, via adiantamento de pagamentos. Do mesmo modo, Marcos Valério não foi condenado por se mostrar um elo de mirabolantes enredos, mas por se apropriar indevidamente dos bônus de contrato de publicidade do BB, que não tem conexão com caixa 2, embora propiciado por este. ESSES FORAM OS FUNDAMENTOS DE ROTINA PENAL NO PRIMEIRO BLOCO DA AÇÃO PENAL 470, DESCONECTADOS DAS ESPECULAÇÕES SOBRE AS LIGAÇÕES ENTRE NIVEL DE AUTORIDADE PÚBLICA E AUSÊNCIA PROVAS. AO CONTRÁRIO, TODAS AS AUTORIDADES PÚBLICAS CONDENADAS NO PRIMEIRO PACOTE DEIXARAM PROVAS SUFICIENTES E, ALGUMAS, BASTANTE TOSCAS, QUE NENHUM MELIANTE MEDIANAMENTE EXPERIMENTADO DEIXARIA DE EVITAR.
A INTERPRETAÇÃO do domínio do fato é a espinha dorsal para a condenação sem provas. Para tanto, o procurador insinuou e o relator apresenta repetidamente, em paralelo aos autos, um enredo perverso que ligaria todos os ilícitos, como se todos fossem uma mesma coisa, cujo Autor sem assinatura seria José Dirceu. A idéia é tornar aceitável a interpetação segundo a qual “quanto mais elevada for a posição do criminoso nas hierarquias sociais, mais fácil a ocultação de provas”, hipótese heurística defensável (embora não existam pesquisas que comprovem indubitavelmente que se trata de uma verdade, mesmo que apenas probabilística). Equivale a “não havendo provas, é forte indício de que há o mando de uma autoridade”. Além de ser contrária aos fatos na Ação Penal 470, a tese hipotética aceitável não se transforma na segunda senão por subterfúgio. Da proposição verdadeira de que todos os ímpares são números não se segue que todos os números são ímpares. Essa tentativa, se bem sucedida, é que fará deste um julgamento de exceção, ou seja, nunca mais se repetirá. Imagine o que não diriam os editorialistas diante da seguinte proposição: Fernando Henrique Cardoso locupletou-se durante a presidência precisamente porque não existem provas de que o fez. É o que se pretende fazer em relação a Dirceu: uma interpretação ad hominem, isto é, só vale para casos singulares. Fazer da ausência de provas uma “prova” de que houve crime é a evidência de que se trata de julgamento de exceção, vingativo.
A grande imprensa clama unanimemente por isso, mas não penso que os juízes estejam necessariamente se submetendo a ela. Acho, sim, que, neste caso, alguns juízes raciocinam como a grande imprensa. Por isso não se sentem pressionados, exceto o Lewandowski, claro. Eles sentem com absoluta convicção que o projeto do PT, Lula e Dirceu são um mal. Representou a quebra do monopólio do voto de classe média como fiel da balança eleitoral, a seduzir pés rapados que se elegem e os elegem. E se não há provas desse mal, é porque são diabólicos e não deixam rastro. Vai ser preciso condenar sem provas porque, no fundo, acham que estão certos.
Os ilícitos para os quais existem provas não podem ser somente conseqüência do caixa 2, do qual a justiça eleitoral é causa eficiente, ou da banal corrupção, por hábito ou oportunidade. Precisam estar dentro de um enredo maléfico, que parece impossível demonstrar. Isso, é claro, se o julgamento for até o fim do mesmo jeito. Se provarem que Dirceu afanou algum, é uma coisa, daí a “provar” um esquema perverso em que todos tinham consciência e cumplicidade no objetivo final, obscuramente definido como “permanecer no poder”, vai grande distância.
O objetivo partidário de permanecer no poder foi satanizado pelo procurador, pelo relator, pelo preconceito que sai pelos poros de vários dos juízes e pelo prefácio de oratória proferido por Celso de Mello antes de votar o primeiro pacote de julgamentos. Em discurso abstrato, sem nomes, mas cheio de adjetivos degradantes sobre autoridades públicas que cometem ilícitos – o que, de fato, me lembrou o IPM a que respondi, e era o clima da época, em que coronéis e tenentes, impunes, esbravejavam contra várias coisas das quais eu não podia ser acusado, pois não havia provas, chegando ao cômico (mas não ri na hora) de me acusarem, além de subersivo, de ser suspeito; acredite, fui acusado de ser suspeito e isso era crime! – o ministro decano estava na verdade manifestando desprezo a priori pela atividade política e pelo PT como partido político.
É fácil demonstrar que sem partidos políticos e parlamentos livres, nenhuma outra instituição é seguramente livre. Quando os partidos são fechados, a imprensa é censurada e o judiciário se acoelha. Tal acontece em todas as ditaduras e assim aconteceu no Brasil, durante o Estado Novo e durante a ditadura militar. Os advogados de presos e torturados políticos – Nilo Batista, Modesto da Silveira e a Rosa Maria Cardoso da Cunha, e que está na comissão da verdade, o falecido Heleno Fragoso, entre vários outros – sabem muito bem o que foi o rebaixamento silencioso do judiciário nesse último período. Quem garante a liberdade das demais instituições democráticas é um sistema partidário livre, não o contrário.
(*) Com 76 anos, Wanderley Guilherme dos Santos tem destacada carreira em Ciência Política mas notabilizou-se em 1962 a partir do texto “Quem Vai Dar o Golpe no Brasil” – que prenunciou a derrubada do presidente João Goulart em 1964 e se tornou referência bibliográfica nos meios acadêmicos. Publicou também Décadas de Espanto e uma Apologia Democrática, Roteiro Bibliográfico do Pensamento Político-Social Brasileiro, O Ex-Leviatã Brasileiro: do Voto Disperso ao Clientelismo Concentrado e Paradoxos do Liberalismo: Teoria e História, dentre outros livros.
Graduado em filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1958, doutor em Ciência Política na Stanford University em 1979, com a tese Impass and Crisis in Brazilian Politics. Fez seu Pós-Doutorado em Teoria Antropológica na, UFRJ, em 1986. É professor aposentado de teoria política da UFRJ, professor e fundador do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj).
Durante sua carreira de escritor, dentre outros prêmios, recebeu da Associação Brasileira de Ciência Política o Prêmio Victor Nunes Leal no Concurso Brasileiro de Livros em Ciência Política e Relações Internacionais, por seu livro Horizonte do Desejo – Instabilidade, fracasso coletivo e inércia social e da Academia Brasileira de Letras em 2004, o prêmio na categoria Ensaio, com seu livro O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira, publicado pela UFMG.