Os intestinos do Brasil por Bob Fernandes
A Polícia Federal fez tudo para que Daniel Dantas fosse preso. A Polícia Federal
fez tudo para que Daniel Dantas não fosse preso.
A Polícia Federal
trabalhou contra a Polícia Federal.
Esse é mais um capítulo do mergulho
nos intestinos do Brasil. Estão presos o banqueiro do Opportunity, o
megaespeculador Naji Nahas, o ex-prefeito Celso Pitta e outros 17 dos 21 que
tiveram a prisão decretada. É quarta-feira, 9 de julho.
Nas telas, ondas, bits e páginas, a futebolização de sempre:
aplausos entusiasmados, críticas ferozes à ação da polícia. O que ainda não
chegou à tona é a verdadeira história dessa gigantesca ação policial, da
encarniçada batalha que se travou nos setores de Inteligência e da
Polícia.
O que se narra aqui são cenas, é o contorno dessa batalha, mas
antes é preciso lembrar que este é apenas mais um capítulo.
Crucial, decisivo para que se entenda o todo, o que se movia, se
move – e se moverá -, mas apenas mais um capítulo no enredo da maior disputa da
história do capitalismo brasileiro, disputa essa que carrega em si o esteio, a
sustentação do poder. Do Grande Poder.
O delegado Protógenes Queiroz comandou as investigações no
último ano. Antes dele, ao tentar seguir a pista da organização comandada por
Dantas, outros delegados fraquejaram. Ou desistiram, ou…
Protógenes foi conduzido ao comando da investigação sigilosa
pelo então diretor geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, hoje chefe da
Agência Brasileira de Inteligência, Abin. Paulo Lacerda queria e autorizou a
operação até deixar a direção da PF.
Um dia, convidado pelo presidente Lula, Lacerda foi para a Abin.
Em seu lugar assumiu Luiz Fernando Corrêa, que chefiava a Força Nacional de
Segurança Pública. Luiz assumiu com fama de amigo de José Dirceu.
Se era ou se não era, se suas relações vinham apenas da
proximidade no trabalho de segurança da PF ao candidato Lula em eleição
anterior, é uma outra questão, mas o fato é que Luiz Fernando chegou ao cargo
com essa fama: amigo de José Dirceu.
Logo ao assumir, o diretor da PF quis mais informações sobre que
investigação seria aquela relativa aos negócios e métodos de Daniel Dantas.
Normal. Parte das suas atribuições de comando.
O delegado Protógenes, por seu lado, ofereceu explicações
genéricas, mas guardou o que era secreto, segredo de justiça.
Normal. Manhas de um tira brilhante, esperto, do policial que
prendeu Paulo Maluf, o contrabandista Law Kin Chong, que pôs na marca do pênalti
o Corinthians da MSI, Kia Joorabichian e Dualib, que investiga para a FIFA as
lavanderias do futebol mundo afora.
Normal, em meio aos rumores sobre vazamentos na investigação e,
pior, propinas. Subornos em favor de Dantas.
Na diretoria de Inteligência, um aliado do diretor geral na
busca de informações amplas sobre o núcleo das investigações: o delegado Daniel
Lorenz.
Protógenes Queiróz é duro na queda. Primeiros embates, e a
operação Satiagraha perde estrutura. O comando esvazia parte da logística;
retira agentes e peritos, encolhe a sala, asfixia as investigações.
corriqueiro nos jogos de guerra.
O jogo é maior, muito maior. As pedras se movem. Ao diretor da
Polícia Federal chega o recado. Suave, mas direto: as investigações devem
prosseguir.
Fim do ano. Mídia afora, o festival de plantações, versões. A
batalha, que é política, comercial, policial, segue seu leito também nas telas,
ondas, bits e páginas. Véspera do Natal. Estranhíssima entrevista do diretor
geral.
Luiz Fernando Corrêa escolhe o encarte semanal "Brasília" do
jornal mineiro Hoje em Dia para mandar um recado em forma de entrevista.
Manchete:
-Cada geração tem um papel a cumprir. Cumpriu, sai
fora!
Até o vidro fumê do edifício sede da PF em Brasília captou a
mensagem e os destinatários: Paulo Lacerda e antigos delegados que comandaram a
Polícia durante 4 anos e 8 meses do governo Lula.
Para não haver dúvidas, a capa do tablóide berrou:
-PF dividida.
Véspera do Natal, peru, nozes, vinhos, poucos civis devem ter
lido. Mas a polícia inteira leu. Comentou, discutiu. E mesmo o mais desatento
agente sacou que a barca do delegado Protógenes Queiroz, fosse qual fosse, não
era uma boa aos olhos da direção.
Parênteses. Daniel Dantas e os seus comemoravam, vibravam a cada
boa notícia. Sim, o que não faltou nesse enredo foi notícia. Capas e
capas.
O carnaval se foi. E um fato: a repórter quer falar com o
delegado Queiroz. Quer informações sobre uma investigação que envolveria Daniel
Dantas e o Opportunity. Apreensão, no início de abril – e isso são fatos.
Objetivos. Conhecidos desde então: a repórter vai publicar o que tem se não for
recebida.
A situação se agrava. Por ordem do comando, o delegado
Protógenes Queiroz perde quase toda a logística. Fato registrado, inclusive, em
imagens: a sala sendo esvaziada, a tralha tecnológica removida.
Queiroz começa a fingir que a operação faz água. Cede, aceita
conversar com a repórter; Andréa Michael, da Folha de S.Paulo. Mas faz uma
exigência aos superiores: quer a presença do diretor geral, Luiz Fernando
Corrêa, e de Lorenz, o diretor de Inteligência.
Corrêa não vai, manda alguém da comunicação social. Lorenz,
presente. Na conversa, o delegado Queiroz contorna, tergiversa, despista, e
guarda tudo o que disse e o que não disse.
Sábado, 26 de Abril. Anunciado o acordo das teles, vem aí a
BrOi. No caderno "Dinheiro", da Folha, em quase meia página a repórter Andréa
Michael relata os contornos de uma operação a caminho, destinada a prender
Daniel Dantas.
Domingo, 27 de Abril. A operação está morta. Protógenes Queiroz
faz dois movimentos. Primeiro, na véspera, a ligação para Lorenz, que está no
Chile. Cobra a conta da conversa com a repórter, quando apenas despistou. A
conversa, de parte a parte, não é boa.
Segundo movimento: Queiroz, para efeito externo, dá a operação
como morta. Para efeito interno, os fatos incendeiam agentes, peritos e
delegados envolvidos numa operação cada vez mais secreta.
Segue a semana. Queiroz é comunicado. Não há, não haverá mais
logística alguma. Caso encerrado. Caso que o diretor geral e o diretor de
Inteligência seguem a desconhecer em seu teor. O delegado está solto no
espaço.
Uma outra rede conecta-se, subterrânea, solidária. O outro lado
da polícia trabalha, secretamente, pela Satiagraha, a "firmeza na verdade" de
Gandhi.
Notas em colunas, sites. Chutes, bravatas, cascatas,
desinformação. A operação é adiada. Uma, duas, três vezes.
O delegado Protógenes Queiroz é monitorado, vigiado. Pela
Polícia Federal. E sua equipe contra-ataca: vigia, monitora, flagra e registra,
os movimentos dos monitoradores da própria PF.
Daniel Dantas e os seus estão tensos. Em dúvida: acabou, ou não
acabou? Na dúvida, encaminham ao Supremo Tribunal Federal um pedido de habeas
corpus preventivo, para Dantas e a irmã, Verônica.
Daniel Dantas morde a isca. Humberto Braz, ex-presidente da
Brasil Telecom e o amigo Hugo Chicaroni são os intermediários. A oferta é feita
ao delegado Vitor Hugo Rodrigues Alves.
Na churrascaria El Tranvia, bairro de Santa Cecília, São Paulo,
o ensaio para o acordo final: US$ 1 milhão.
Como sinal, duas parcelas, uma de 50 e outra de 80, e pagamento
em outras duas de US$ 500 mil. Encontros e acordos fechados em 18 e 26 de junho.
Para livrar a cara dos Dantas.
Há algo no ar. Frases soltas.
Gilmar Mendes é o presidente do STF. No meio da semana, pós-São
João, desponta nas telas, um tempão nos telejornais, nas manchetes do dia
seguinte. Refere-se a informações vazadas por policiais, uma "coisa de
gângsters" e ao "terrorismo lamentável".
A fala ecoa. Cada um entende como quer. Críticas gerais às
interceptações telefônicas (mesmo às autorizadas judicialmente)
Julho chegou. Fim de semana. Notas, boatos… Daniel Dantas está
em Nova Iorque… Daniel Dantas aguarda o habeas corpus para voltar ao
Brasil…
Sete de Julho. O delegado geral, Luiz Fernando Corrêa, que até a
véspera nada sabia sobre a verdadeira extensão de Satiagraha, quer agora saber
de tudo. De tudo, não saberá. Extrema tensão. Como há um mês, no Rio de
Janeiro.
Agentes da equipe de Queiroz seguiam gente dos Dantas, pelas
ruas do Rio. A polícia foi chamada, quase um confronto até o esclarecimento
"somos da PF" e o despiste numa operação banal qualquer. Mas a queixa
subiu.
Chegou ao diretor geral da PF, a Heráclito Fortes (DEM-PI) no
senado e ao advogado geral da União, José Antonio Toffoli, adentrou o Supremo
Tribunal.
Seis da manhã, 8 de julho. Avenida Viera Souto, Ipanema, Rio de
Janeiro. Daniel Dantas está preso.
Furacão na mídia, por todo o dia. À noite nos telejornais e no
dia seguinte, este 9 de julho, a repercussão.
Gilmar Mendes, o presidente do STF, ataca a
"espetacularizaçã
critica duramente o pedido de prisão, negado, contra a repórter da Folha de S.
Paulo:
-…isso faz inveja ao regime soviético…
Frases soltas no ar.
Miriam Leitão, a comentarista econômica, também está no ar. Na
rádio CBN, Miriam conversa com Carlos Alberto Sardenberg.
Meio dia e quarenta. Miriam diz não ter entendido direito porque
Daniel Dantas foi preso. Afinal, constata, as acusações são inconsistentes,
"coisas do passado", e é preciso que a Polícia Federal explique melhor por que
fez essa operação "com tamanho estardalhaço.
Miriam se vai. Sardenberg chama os comerciais, não percebe que o
microfone está aberto, e deixa escapar:
-…ela tava estranha, não?
Frases soltas no ar.
Daniel Dantas está preso. Esse, o policial, é mais um capítulo
da operação que chegou aos intestinos do Brasil.
Publicado originalmente no www.terramagazine.com.br