Para compreender a crise financeira por Antonio Martins
Mercados internacionais de crédito entraram em colapso e há
risco real de uma corrida devastadora aos bancos. Por que o pacote de 700
bilhões de dólares, nos EUA, chegou tarde e é inadequado. Quais as causas da
crise, e sua relação com o capitalismo financeirizado e as desigualdades. Há
alternativas?
Segunda-feira, 6 de outubro. No momento em que esta nota é
redigida, há uma onda de pânico percorrendo o sistema financeiro em todo o
mundo. A crise iniciada há pouco mais de um ano, no setor de empréstimos
hipotecários dos Estados Unidos, viveu dois repiques, nos últimos dias. Entre 15
e 16 de setembro, a falência de grandes instituições financeiras
norte-americanas [1] deixou claro
que a devastação não iria ficar restrita ao setor imobiliário.
No início de outubro, começou a disseminar-se a sensação de que o pacote de 700
bilhões de dólares montado pela Casa Branca para tentar o resgate produziria
efeitos muito limitados. Concebido segundo a lógica dos próprios mercados (o
secretário do Tesouro, Henry Paulson, é um ex-executivo-chefe do banco de
investimentos Goldman Sachs), o conjunto de medidas socorre com dinheiro público
as instituições financeiras mais afetadas, mas não assegura que os recursos
irriguem a economia, muito menos protege as famílias endividadas.
Deu-se então um colapso nos mercados bancários, que perdura até o
momento. Apavoradas com a onda de falências, as instituições financeiras
bloquearam a concessão de empréstimos – inclusive entre si mesmas. Este
movimento, por sua vez, multiplicou a sensação de insegurança, corroendo o
próprio sentido da palavra crédito, base de todo o sistema. A
crise alastrou-se dos Estados Unidos para a Europa. Em dois dias, cinco
importantes bancos do Velho Continente naufragaram [2].
Muito rapidamente, o terremoto financeiro começou a atingir também
a chamada "economia real". Por falta de financiamento, as vendas de veículos
caíram 27% (comparadas com o ano anterior) em setembro, recuando para o nível
mais baixo nos últimos 15 anos. Em 3 de outubro, a General Motors brasileira
colocou em férias compulsórias os trabalhadores de duas de suas fábricas (que
produzem para exportação), num sinal dos enormes riscos de contágio
internacional. Diante do risco de recessão profunda, até os preços do petróleo
cederam, caindo neste 6/10 a 90 dólares por barril – uma baixa de 10% em apenas
uma semana. A tempestade afeta também o setor público. Ao longo da semana, os
governantes de diversos condados norte-americanos mostraram-se intranqüilos
diante da falta de caixa. O governador da poderosa Califórnia, Arnold
Schwazenegger, anunciou em 2 de outubro que não poderia fazer frente ao
pagamento de policiais e bombeiros se não obtivesse, do governo federal, um
empréstimo imediato de ao menos 7 bilhões de dólares.
Desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas podem sacar
seus depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança
na própria moeda. Em tempos de globalização, seria "a mãe de todas as corridas
contra os bancos"
Nos últimos dias, alastrou-se o pavor de algo nunca visto, desde
1929: desconfiados da solidez dos bancos, os correntistas poderiam sacar seus
depósitos, o que provocaria nova onda de quebras e devastaria a confiança na
própria moeda. Em tempos de globalização, seria "a mãe de todas as corridas
contra os bancos", segundo a descreveu o economista Nouriel Roubini, que se
tornou conhecido por prever há meses, com notável precisão, todos os
desdobramentos da crise atual.
Os primeiros sinais deste enorme desastre já estão visíveis. Em 2
de outubro, o Banco Central (BC) da Irlanda sentiu-se forçado a tranqüilizar o
público, anunciando aumento no seguro estatal sobre 100% dos depósitos confiados
a seis bancos. Na noite de domingo, foi a vez de o governo alemão tomar atitude
semelhante. Mas as medidas foram tomadas de modo descoordenado, porque terminou
sem resultados concretos, no fim-de-semana, uma reunião dos "quatro grandes"
europeus [3], convocada pelo
presidente francês, para buscar ações comuns contra a crise. Teme-se, por isso,
que as iniciativas da Irlanda e Alemanha provoquem pressão contra os bancos dos
demais países europeus, onde não há a mesma garantia. Além disso, suspeita-se
que as autoridades estejam passando um cheque sem fundos. Na Irlanda, o valor
total do seguro oferecido pelo BC equivale a mais do dobro do PIB do país…
Também neste caso, os riscos de contágio internacional são
enormes. Roubini chama atenção, em especial, para as linhas de crédito no valor
de quase 1 trilhão de dólares entre os bancos norte-americanos
e instituições de outros países. É por meio deste canal, hoje bloqueado, que o
risco de quebradeira bancária se espalha pelo mundo. Mesmo em países menos
próximos do epicentro da crise, como o Brasil, as conseqüências já são sentidas.
Na semana passada, o Banco Central viu-se obrigado a estimular os grandes
bancos, por meio de duas resoluções sucessivas, a comprar as carteiras de
crédito dos médios e pequenos – que já enfrentam dificuldades para captar
recursos.
Em conseqüência de tantas tensões, as bolsas de valores da Ásia e
Europa estão vivendo, hoje (6/10), mais um dia de quedas abruptas. Na primeira
sessão após a aprovação do pacote de resgate norte-americano, Tóquio perdeu 4,2%
e Hong Kong, 3,4%. Quedas entre 7% e 9% ocorreram também em Londres, Paris e
Frankfurt. Em Moscou, a bolsa despencou 19%. Em todos estes casos, as quedas
foram puxadas pelo desabamento das ações de bancos
importantes. Em São Paulo, onde o pregão ainda está em andamento, os negócios
foram interrompidos duas vezes, quando quedas drásticas acionaram as regras que
mandam suspender os negócios em caso de instabilidade extrema. Apesar da
intervenção do Banco Central, o dólar acumulava alta de mais de 5% às 13h,
subindo a R$ 2,13.
Até o momento, tem prevalecido, entre os governos, uma postura um
tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da excelência dos mercados,
apenas para… desviar rios de dinheiro público às instituições dominantes
destes mesmos mercados
A esta altura, todas as análises sérias coincidem em que não é
possível prever nem a duração, nem a profundidade, nem as conseqüências da
crise. Nos próximos meses, vai se abrir um período de fortes turbulências:
econômicas, sociais e políticas. As montanhas de dinheiro despejadas pelos
bancos centrais sepultaram, em poucas semanas, um dogma cultuado pelos teóricos
neoliberais durante três décadas. Como argumentar, agora, que os mercados são
capazes de se auto-regular, e que toda intervenção estatal sobre eles é
contra-producente?
Mas, há uma imensa distância entre a queda do dogma e a construção
de políticas de sentido inverso. Até o momento, tem prevalecido, entre os
governos, uma postura um tanto curiosa: eles abandonam às pressas o discurso da
excelência dos mercados, apenas para… desviar rios de dinheiro público às
instituições dominantes destes mesmos mercados.
O pacote de 700 bilhões de dólares costurado pela Casa Branca é o
exemplo mais acabado deste viés. Nouriel Roubini considerou-o não apenas
"injusto", mas também "ineficaz e ineficiente". Injusto porque socializa
prejuízos, oferecendo dinheiro às instituições financeiras (ao permitir que o
Estado assuma seus "títulos podres") sem assumir, em troca, parte de seu
capital. Ineficaz porque, ao não oferecer ajuda às famílias endividadas – e
ameaçadas de perder seus imóveis -, deixa intocada a causa do problema (o empobrecimento e perda de capacidade
aquisitiva da população), atuando apenas sobre seus efeitos superficiais.
Ineficiente porque nada assegura (como estão demonstrando os fatos dos últimos
dias) que os bancos, recapitalizados em meio à crise, disponham-se a reabrir as
torneiras de crédito que poderiam irrigar a economia. Num artigo para o Financial Times (reproduzido pela Folha de São
Paulo), até mesmo o mega-investidor George Soros defendeu ponto-de-vista
muito semelhantes, e chegou a desenhar as bases de um plano alternativo.
Outras análises vão além. Num texto publicado há alguns meses
no Le Monde Diplomatique, o economista francês François
Chesnais chama atenção para algo mais profundo por trás da financeirização e do
culto à auto-suficiência dos mercados. Ele mostra que as décadas neoliberais
foram marcadas por um enorme aumento na acumulação capitalista e nas
desigualdades internacionais. Fenômenos como a automação, a deslocalização das
empresas (para países e regiões onde os salários e direitos sociais são mais
deprimidos) e a emergência da China e Índia como grandes centros produtivos
rebaixaram o poder relativo de compra dos salários. O movimento aprofundou-se
quando o mundo empresarial passou a ser regido pela chamada "ditadura dos
acionistas", que leva os administradores a perseguir taxas de lucros cada vez
mais altas. O resultado é um enorme abismo entre a a capacidade de produção da
economia e o poder de compra das sociedades. Na base da crise financeira
estaria, portanto, uma crise de superprodução semelhante às que foram estudadas
por Marx, no século retrasado. Ao liquidar os mecanismos de regulação dos
mercados e redistribuição de renda introduzidos após a crise de 1929, o
capitalismo neoliberal teria reinvocado o fantasma.
Wallerstein vê nos sistemas públicos de Saúde, Educação e
Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais
anti-sistêmicas. Se todos tivermos direito a uma vida digna, quem se preocupará
em acumular dinheiro?
Marx via nas crises financeiras os momentos dramáticos em que o
proletariado reuniria forças para conquistar o poder e iniciar a construção do
socialismo. Tal perspectiva parece distante, 125 anos após sua morte. A China,
que se converteu na grande fábrica do mundo, é governada por um partido
comunista. Mas, longe de ameaçarem o capitalismo, tanto os dirigentes quanto o
proletariado chinês empenham-se em conquistar um lugar ao sol, na luta por poder
e riqueza que a lógica do sistema estimula permanentemente.
Ao invés de disputar poder e riqueza com os capitalistas, não será
possível desafiar sua lógica? O sociólogo Immanuel
Wallerstein, uma espécie de profeta do declínio norte-americano, defendeu esta
hipótese corajosamente no Fórum Social Mundial de 2003 – quando George Bush
preparava-se para invadir o Iraque e muitos acreditavam na perenidade do poder
imperial dos EUA. Em outro artigo, publicado recentemente
no Le Monde Diplomatique Brasil, Wallerstein sugere que a
crise tornará o futuro imediato turbulento e perigoso. Mas destaca que certas
conquistas sociais das últimas décadas criaram uma perspectiva de democracia
ampliada, algo que pode servir de inspiração para caminhar politicamente em meio
às tempestades. Refere-se à noção segundo a qual os direitos sociais são um
valor mais importante que os lucros e a acumulação privada de riquezas. Vê nos
sistemas públicos (e, em muitos países, igualitários) de Saúde, Educação e
Previdência algo que pode ser multiplicado, e que gera relações sociais
anti-sistêmicas. Se a lógica da garantia universal a uma vida digna puder ser
ampliada incessantemente; se todos tivermos direito, por exemplo, a viajar pelo
mundo, a sermos produtores culturais independentes e a terapias
(anti-)psicanalíticas, quem se preocupará em acumular dinheiro?
O neoliberalismo foi possível porque, no pós-II Guerra, certos
pensadores atreveram-se a desafiar os paradigmas reinantes e a pensar uma
contra-utopia. Num tempo em que o capitalismo, sob ameaça, estava disposto a
fazer grandes concessões, intelectuais como o austríaco Friederich Hayek
articularam, na chamada Sociedade Mont Pelerin, a reafirmação dos valores do
sistema [4]. Seus objetivos
parecem hoje desprezíveis, mas sua coragem foi admirável. Eles demonstraram que
há espaço, em todas as épocas, para enfrentar as certezas em vigor e pensar
futuros alternativos. Não será o momento de construir um novo
pós-capitalismo?
[1] Em 12/9, o
banco de investimentos Lehman Brothers quebrou, depois que as autoridades
monetárias recusaram-se a resgatá-lo. No mesmo dia, o Merrill Lynch anunciou sua
venda para o Bank of America. Em 15/9, a mega-seguradora AIG (a maior do mundo,
até há alguns meses) anunciou que estava insolvente, sendo nacionalizada no dia
seguinte com aporte estatal de US$ 85 bilhões
[2] O Fortis foi semi-nacionalizado pelos governos da Holanda, Bélgica
e Luxemburgo. O Dexia recebeu uma injeção de 6,4 bilhões de
euros, patrocinada pelos governos da França e Bélgica. O Reino Unido
nacionalizou o Bradford & Bingley (especialista em
hipotecas), vendendo parte de seus ativos para o espanhol Santander. O Hypo Real Estate segundo maior banco hipotecário alemão entrou
numa operação de resgate cujo custo podia chegar a 50 bilhões de euros, mas cujo
sucesso ainda não estava assegurado, em 5/9. A Islândia nacionalizou o Glitnir, seu terceiro maior banco
[3] Alemanha,
França, Reino Unido e Itália, os membros europeus do G-8
[4] Sobre a
contra-utopia hayekiana, ler, no Le Monde Diplomatique, "Pensando o
Impensável" , de Serge Halimi
Artigo publicado originalmente em: http://diplo.uol.com.br/
Le Monde Diplomatique – Brasil