Pré-sal – a ameaça e o leilão. Por Haroldo Lima
O segundo leilão em áreas do pré-sal nem tinha ainda começado, no dia 27 de outubro passado, e já da parte do Governo vinha uma séria ameaça: acabar com o regime de partilha da produção naquela área.
Foi o que declarou a figura que vem ocupando a Secretaria Geral da Presidência, Moreira Franco, que secundou outro pronunciamento identicamente grave, do Presidente da Câmara Rodrigo Maia que, na véspera “anunciou que vai discutir o fim do regime de partilha da produção no setor de petróleo” ( O Globo 26/10/2017).
O argumento de ambos era absolutamente despropositado. Segundo Maia, “se fosse na concessão, o Brasil iria arrecadar aproximadamente R$ 40 bilhões” no leilão do dia 27, e não R$7 bilhões como previsto. Não disse como isto seria possível, nem poderia dizer.
Só se arrecada dinheiro em leilão de blocos exploratórios, através de bônus de assinatura. Contudo, nos sistemas de partilha da produção, não é este o objetivo mais importante. Aliás, na maioria dos contratos de partilha em vigor no mundo, não há cobrança de bônus. O bônus é fundamental nos contratos de concessão. Nos contratos de partilha, o decisivo é a percentagem do “excedente em óleo” que a União recebe de todo o petróleo ou gás produzido, deduzidos os “custos recuperáveis”. Essa é a diferença e a vantagem da partilha sobre a concessão. Uma boa participação da União no “excedente em óleo” é o objetivo dos contratos de partilha firmados no mundo. Uma partilha vantajosa se estenderá por todo o período produtivo dos 35 anos de duração do contrato, podendo ser renovada.
Quando houve a primeira licitação no pré-sal, a do campo de Libra, o bônus fixado foi de extraordinários R$15 bilhões por duas razões: a primeira porque o preço do barril do petróleo estava nas alturas, batendo recordes, a segunda porque a empresa britânica Gaffney, Cleide, contratada pela ANP, certificou a existência de cinco bilhões de barris de petróleo no campo de Franco e adjacências, cedidos depois à Petrobras, o que indicava a existência de uma quantidade similar de petróleo no vizinho campo de Libra. Sem essas condições, especialmente com o preço do barril de petróleo despencando, os bônus teriam que cair, o que, como dissemos, não é o mais importante.
Quando descobrimos o pré-sal em 2006, rapidamente tomamos decisões para resguardá-lo. Em 2007, como Diretor Geral da Agência Nacional de Petróleo (ANP), propus, e com o decisivo apoio de Lula foi aprovada, a retirada de 41 blocos da lista que iria à iminente 9ª Rodada. Eram os principais blocos do pré-sal.
Em seguida, o governo Lula criou uma “comissão interministerial de oito membros” para definir o marco regulatório para a nova área e propô-lo ao Congresso. A comissão percebeu que locais com grandes reservas no mundo em geral utilizam o regime de partilha da produção. Na Rússia, a concessão é usada em várias partes, mas em áreas de grande produção vigora a partilha. Na vastidão daquele país existem os dois contratos, como no Brasil passou a existir, concessão e partilha, depois da descoberta do pré-sal.
A razão central para a preferência pela partilha, em locais de baixo risco exploratório e elevado potencial de óleo, é que a grande reserva traz em si a “maldição do petróleo”. Vários países, não gerindo bem a abundância desse produto, empobreceram-se. A “maldição” provoca a perda da competitividade da economia de países, que se desindustrializam, ante a grande concentração de atividade, investimento e lucros em um setor único, o do petróleo, e ante a inescapável valoração cambial. Os demais setores se degradam.
Para enfrentar esse problema, os países armam-se de um marco regulatório – a partilha da produção – apto a assegurar ao Estado o controle da produção. Nesse marco, a propriedade do óleo extraído é da União, na concessão, é do concessionário, privado ou estatal. A “comissão interministerial de oito membros” optou pela partilha no pré-sal e o Congresso a aprovou.
Ao final ficou assegurado que quando um consórcio ganha, em licitação aberta, o direito de operar um campo no pré-sal, em regime de partilha, ele o faz através de um “comitê operacional”, no qual a União conta com a metade de seus membros, com a presidência, com o direito a voto de qualidade e com o poder de veto. Assim, fica garantido o controle da operação.
Mas, para que isto pudesse institucionalmente funcionar, o Estado teve que criar uma empresa 100% estatal, mirando-se em vitorioso exemplo norueguês.
Naquele país, os interesses do Estado nos negócios do petróleo eram geridos pela Statoil, estatal criada em 1972. Não é assim que a Statoil abriu seu capital em 2001, que passou a ser “apenas” 67% do Estado. A Noruega considerou que a Statoil já não representava inteiramente o Estado. E criou, no mesmo ano, outra empresa, 100% estatal, a Petoro, não para perfurar poço, mas para controlar os grandes interesses do Estado nas rendas petrolíferas.
Assim, criamos aqui a Pré Sal Petróleo SA, a PPSA, 100% estatal, porque sabíamos que o capital privado estrangeiro, basicamente americano, no governo de FHC, tinha ficado “apenas” com 61% do capital social da Petrobras, enquanto o Estado ficou com 39%. A PPSA é quem indica a metade dos membros dos “comitês operacionais” e seus presidentes.
Com a cessão onerosa que fizemos de Franco, no governo de Lula, recapturamos parte do capital perdido pela Petrobras, e o Estado brasileiro ficou, como está hoje, com 49% do capital social da Petrobras, enquanto os 51% “restantes” são do capital privado, basicamente estrangeiro e principalmente norte-americano.
Problemas tem existido na gestão do pré-sal brasileiro, não por causa da partilha, mas pela nossa enorme inapetência desenvolvimentista.
Em 2008, suspendemos toda licitação de blocos exploratórios no país por cinco anos, não permitindo qualquer exploração petrolífera em área nova. No pré-sal, após onze anos de sua descoberta, só fizemos um leilão, e de um único campo. A lentidão era grande e se somava a outros fatores de atraso. As empresas petrolíferas que arremataram blocos para serem perfurados em 2003, até agora não conseguiram perfurar um único poço, por problemas ambientais não resolvidos. (Valor, 01/08/2017). De sorte que, trocar o regime de partilha pelo de concessão, no pré-sal e áreas petrolíferas estratégicas, é sim, um grande problema para a Nação, um grande erro.
E assim chegamos, doze anos depois de descoberto o pré-sal, à segunda licitação para blocos exploratórios, ou melhor para campos determinados. O regime era o de partilha da produção. Da lei originalmente aprovada, havia sido retirada a obrigatoriedade da Petrobras ser operadora em todos os blocos, o que não era intrínseco ao formato de partilha, e que por sinal não é dispositivo que conste de nenhum contrato de partilha conhecido no mundo.
E por que dito dispositivo foi posto na lei aprovada? Porque na “comissão de oito” acima referida, prevaleceu corretamente a ideia de se propor ao Congresso dois benefícios específicos para a Petrobras a partir do pré-sal: 1) ceder-lhe 5 bilhões de barris de petróleo e capitaliza-la, o que foi feito com a cessão onerosa de Franco, a partir do que “o Brasil ficou mais dono da Petrobras” (Folha de S.Paulo 10/08/2010); e 2) colocá-la como operadora única, já que o petróleo continuava nas alturas e o caixa da Petrobras estava bem recheado.
Quando mudou a conjuntura, com a queda drástica do preço do petróleo e grande endividamento da Petrobras, aquele dispositivo ficou muito oneroso para a companhia, que tinha que arcar com os pesados ônus de 30%, pelo menos, para toda a atividade de exploração de todos os blocos a serem licitados.
O senador José Serra rápido apressou-se, na véspera do leilão, em relembrar de seu papel nessa questão e aproveitou para pregar o fim da partilha no pré-sal (Estadão 26/10/2017). O fim da partilha ele o defende com clareza, assumindo com nitidez essa posição retrógrada. E o seu papel na questão da Petrobras como operadora única ele não diz do grande prejuízo que teria a Petrobras caso seu PLS 131/2015 tivesse sido aprovado. Pelo seu projeto, a Petrobras deixaria de ser a operadora única no polígono do pré-sal e seria colocada como uma multinacional qualquer, sem qualquer regalia por ser brasileira, no pré-sal brasileiro. Diferentemente, o que foi aprovado foi um substitutivo que dava à Petrobras o direito de escolher os blocos que quisesse para operar em licitações no pré-sal brasileiro. A Petrobras de forma alguma ficou como se fosse uma estrangeira qualquer, passou a ter a preferência da escolha para operar blocos.
Foi precisamente este preceito que permitiu à Petrobras escolher, entre os seis campos que foram arrematados no dia 27 de outubro, três, onde ela ficou como empresa operadora.
Resta saber como ficaram as percentagens dos “excedentes em óleo” destinados à União, para cada um dos blocos.
Em nosso país, a parte que o poder público recebe, dos contratos de concessão existentes, é da ordem de 52%, o que é pouco, mas que beneficia fundamentalmente à Petrobras, detentora da ampla maioria das concessões, inclusive no pré-sal. Em Libra, a percentagem mínima do “excedente em óleo” foi de 41,65%. Somando com outros tributos, aceita-se que, no total, ficariam para a União algo como 75% da renda petrolífera, dos maiores índices do mundo, como na China.
Os índices mínimos de “excedente em óleo” estipulados em edital para as rodadas do pré-sal foram estranhamente pequenos, os maiores da ordem de 22%, os menores em torno de 14%. Os resultados apresentados, após as ofertas, dão conta de que o menor na segunda rodada ficou em 11,53%, o maior em 80%. Na terceira rodada, o maior e o menor ficaram em 76,9% e 22,87%. Como se anunciam mudanças em tributos, cálculos precisam ser feitos concretamente para se saber como, no total, ficaram as parcelas governamentais.
Duas questões a mais a respeito das rodadas recentes feitas no pré-sal. A política de conteúdo local não foi valorizada. Índices menores que os costumeiros foram introduzidos, 18% para blocos em mar em águas rasas, 25% a 40% para a etapa de desenvolvimento em águas rasas. Mais que isto, inovou-se com o conceito da média do conteúdo local em serviços e bens, de tal maneira que os índices estipulados podem ser atingidos só com serviços, sem que se compre nenhum bem no Brasil.
Esta política de conteúdo local chegou a grandes vitórias entre nós, especialmente nos estaleiros navais. Mas estava sendo muito questionada. Particularmente pela Petrobras, vinha protestando muito, chegando a pedir a ANP isenção total de cumprimento de percentuais de conteúdo local para uma plataforma de Libra.
Nessas condições, para guarnecer o interesse nacional fazia-se necessário ajustamentos na política, sem negá-la ou reduzi-la a índices que prejudicam a indústria nacional.
Por último, além da Petrobras, só empresas estrangeiras participaram das 2ª e 3ª Rodadas da ANP no pré-sal. Ninguém esperava que alguma nacional participasse. Mas isto porque não temos tido uma política de fomentar e ajudar o desenvolvimento de petroleiras brasileiras. Se tivesse umas três ou cinco já de certo porte, poderiam participar de um consórcio numa empreitada deste porte. Mas não. Diversas das cerca de 25 brasileiras que existiam há poucos anos, tiveram que sair do ramo, se enfraqueceram, não tiveram apoio governamental, nem acesso a campos em declínio que a Petrobras poderia vende-los como ativos, para ela secundários, mas fundamentais para alavancar uma indústria nacional formada de pequenas, médias e até grandes petroleiras brasileiras
Haroldo Lima é engenheiro, ex- Diretor Geral da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis e membro da Comissão Política Nacional do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).