Aldeia Nagô
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Preâmbulo de uma dramática história por Jenner Barreto Bastos Filho

20 - 28 minutos de leituraModo Leitura

Os conflitos do sangrento século 20
alteraram profundamente a geopolítica do mundo

As guerras coloniais de finais do século XIX
e de começo do século XX e as duas Grandes Guerras Mundiais, respectivamente de
(1914-1918) e de (1939-1945) representaram grandes tragédias para a humanidade.


As situações dramáticas e trágicas não ficaram apenas nesses tenebrosos eventos
de grandes proporções: o período de aproximadamente duas décadas entre as duas
grandes guerras foi especialmente tenso, para se dizer o mínimo, haja vista a
sangrenta Guerra Civil Espanhola de 1936. No Brasil, como nos demais cantos do
mundo, o cenário era de grande tensão.

 Em 1930 cai a retrógrada República Velha
do café com leite, de economia predominantemente baseada na exportação do café,
e ascende o populismo getulista. Em 1937 instaura-se o regime autoritário do
Estado Novo. No contexto mundial o período (1945-1989) chamado de Guerra Fria
representou outra tragédia para os povos com a aceleração da corrida
armamentista associada à procura de hegemonia tanto nas relações comerciais
quanto na própria presença militar no estrito senso do termo.

A partir de 1989 a
outrora exacerbada polarização entre capitalismo e socialismo real é substituída
por outra polarização maniqueísta, pois os detentores da nova hegemonia tiveram
estrategicamente que fabricar inimigos, além daqueles concretamente já
existentes, que fossem contraposição, passível de justificação através de
propaganda e proselitismo, aos seus interesses hegemônicos. Passaram a se
sofisticar os fundamentalismos de todos os tipos desde aqueles do mercado
financeiro que procuram lucros e mercados a quaisquer preços como aqueles que se
opõem aos primeiros com violência.

Hoje temos um mundo no qual tecnologias
altamente sofisticadas de comunicação, de transporte, de modificação genética de
organismos, entre outras, convivem com um mundo de impactos ambientais sem
precedentes na humanidade. Some-se a isso um mundo de desigualdades abissais e,
crescentemente abissais.

O historiador Eric Hobsbawm considerou que até então
o século XX foi o mais sangrento de toda a história da humanidade e hoje, diante
dos impactos ambientais, das guerras, da contaminação química generalizada, da
exploração exacerbada dos recursos e bens naturais e do desenvolvimento
predatório acarretados por programas hegemônicos em curso, não sabemos se o
século XXI será melhor, embora tenhamos obrigação de lutar para que se
configurem os melhores cenários de futuro.

Onde estão e onde estiveram os
cientistas durante esse quadro de horrores?
Em primeiro lugar, para responder a esta
pergunta, que implica certo grau de complexidade, é necessário levar em conta as
grandes tensões sociais, políticas e econômicas de uma época dramática e, mais
ainda que dramática, de uma época trágica. As comunidades científicas estavam
sujeitas a enormes estresses diante de um quadro que exigia decisões rápidas e
difíceis. Em situações dramáticas os cientistas nas sociedades tecnologicamente
mais avançadas foram convocados para os esforços de guerra. Recusar a participar
desse esforço em nome de princípios éticos e de foro íntimo significava tomar
decisões enormemente difíceis, inclusive, a de estar sujeito a perseguições
explícitas e com conseqüências severas para os membros da família desses
cientistas.


A degradação moral que um quadro do gênero
propiciou levou expressivos contingentes das comunidades científicas a práticas
enormemente nocivas também no período de guerra fria. Os financiamentos para as
pesquisas viam-se condicionados a participações dos cientistas que legitimassem
justamente o que era do interesse do establishment dominante. Se o interesse
fosse o de colocar no mercado um produto lesivo à saúde pública, mas que
propiciasse exacerbados lucros aos seus fabricantes, todas as vozes que
participassem da fraude que consistia em legitimar a "inocuidade" do produto
eram prestigiadas, festejadas e financiadas. Aquelas que por razões éticas,
humanitárias ou que simplesmente se imbuíssem de um sentimento de dever, eram
marginalizadas, difamadas e perseguidas.

Um quadro dantesco do gênero abaixou de tal maneira os patamares de conduta
ética que hoje nos deparamos com sérios perigos de investidas concretas no
sentido da privatização da vida e da água na face da Terra.

Hoje assistimos, perplexos, que grande parte
da elite que constitui a comunidade científica mundial se vê comprometida com a
manutenção de paradigmas dominantes e, ainda pior, seriamente comprometida com o
complexo industrial militar bélico. As coisas se apresentam de maneira tão
entrelaçadas que hoje em dia é difícil se separar a atividade bélica, daquela
dos transgênicos, dos fármacos, das práticas inúteis de vivisecção, de um
sistema de aceitação de artigos que passa por vícios homéricos. A democracia e a
autonomia foram vilipendiadas. Como bem disse o astrofísico Halton Arp, trata-se
de uma elite que se legitima por meio de uma auto-seleção. É justamente essa
elite que proclama o que seja verdade científica. Evidentemente, trata-se de uma
falsa democracia.

O Grupo de Nápoles é formado por um conjunto de pessoas de
todas as partes do mundo que estão atentas ao controle democrático da ciência e
da tecnologia o que, evidentemente, inclui a crítica às más práticas vigentes
nas comunidades científicas e nas academias em geral. Propugna-se em prol de uma
ciência séria, ética que esteja a serviço dos povos e não a serviço de sua
opressão.
Isso requer que a Sociedade Civil se engaje no controle social e
democrático da ciência e da tecnologia.

O GRUPO INTERNACIONAL DE NÁPOLES:
CIÊNCIA E DEMOCRACIA

Desde 2001, se reúne em Nápoles, Itália, um grupo de
pessoas de diversas partes do mundo que tem uma preocupação em comum: a do
controle social da ciência e da tecnologia nas sociedades democráticas. A
preocupação das pessoas constituintes deste grupo reside precisamente na
constatação da precariedade dos mecanismos mediante os quais esse controle é
levado a termo no seio das imperfeitíssimas democracias que conhecemos.

O grupo
de pessoas que aqui denomino por Grupo de Nápoles, embora o próprio grupo não
tenha assim se autodenominado, tem em mente o crescente e avassalador poder das
grandes corporações, quer sejam elas explicitamente bélicas, farmacêuticas, de
organismos geneticamente modificados, petrolíferas ou de quaisquer outras
naturezas. Tem consciência de que diante da assimetria de poderes a sua função é
a de catalisar o ambiente no sentido de encorajar tanto a manifestação da
inteligência de espíritos independentes quanto no sentido das tomadas de
iniciativa em prol da organização cada vez mais aprimorada da sociedade civil em
defesa dos seus mais legítimos interesses e mais geralmente, dos interesses dos
povos que habitam o mundo.

Essas corporações adquiriram um poder de tal
magnitude que passaram cada vez mais a chantagear governos, influir em grandes
complexos militares e industriais dos quais são também parte, influindo
decisivamente em Estados hegemônicos através dos quais também se manifestam por
meio de políticas que os favorecem em detrimento de quaisquer outros interesses
da população, por mais legítimos que sejam.
Deste modo, não se trata de
empreender uma luta de Davi contra Golias ou de formar um quixotesco exército de
Brancaleone. Trata-se isso sim de um grupo de estudiosos de amplo espectro
(cientistas, jornalistas, artistas, acadêmicos, membros engajados em
organizações da sociedade civil, entre outros) que assumem posições corajosas,
mesmo em detrimento de onerosas conseqüências para as suas respectivas carreiras
e prestígios pessoais. Dado deveras alarmante é que grande parte da comunidade
científica legitima todo esse tipo de propaganda e proselitismo enganosos
exercidos por esse poder, agindo por venalidade e em detrimento da vida, da
saúde e dos interesses mais legítimos dos povos. A Instituição da ciência e da
tecnologia a ela associada passou a se constituir, em larga medida, em uma
opressão aos povos que se distingue claramente de seu papel revolucionário no
século XVII de Galileu quando a própria nascente ciência era vítima do
avassalador poder da Instituição da Igreja Católica e também se distingue
claramente das promessas Iluministas do século XVIII de autonomia e libertação
dos grilhões que oprimiam os povos e as pessoas
individualmente.


O primeiro congresso de Nápoles, ocorrido de
20-21 de abril de 2001 no Palazzo Serra di Casano do Instituto Italiano de
Estudos Filosóficos foi organizado pelos Professores Marco Mamone Capria do
Instituto de Matemática da Universidade de Perugia, Francesco Attena da
Universidade de Nápoles e Ermenegildo Caccese da Universidade da Basilicata. A
partir desse congresso foi publicado um livro intitulado Scienza e Democrazia
(Ciência e Democracia) organizado pelo Professor Mamone Capria. O segundo
congresso de Nápoles realizado de 12 a 14 de junho de 2003 na mesma sede onde
ocorreu o primeiro foi organizado pelos Professores Stefano Dumontet da
Universidade de Nápoles, Antonio Gargano do Instituto Italiano de Estudos
Filosóficos e Marco Mamone Capria da Universidade de Perugia.

A partir desse
segundo congresso foi publicado o livro intitulado Scienze, Poteri e Democrazia
(Ciências, Poderes e Democracia) também organizado pelo Professor Mamone Capria.
O terceiro congresso de Nápoles, ocorrido de 20 a 22 de outubro de 2005 na mesma
sede dos dois congressos precedentes foi organizado pelos mesmos três
Professores. O quarto congresso está previsto para ser realizado de 15 a 17 de
maio de 2008, na mesma sede que os anteriores e será organizado pelos mesmos
professores que organizaram o segundo e o terceiro congressos.

Livros do grupo de Nápoles:
>>
Scienza e Democrazia, Marco Mamone Capria (ORG.), Liguori Editore, Nápoles,
2003
>> Scienze, Poteri e Democrazia, Marco Mamone Capria (ORG.),
Editori Riuniti, Roma, 2006.
www.dipmat.unipg.it/~mamone/sci-dem

O CONTROLE DEMOCRATICO DA CIÊNCIA
E DA TECNOLOGIA

Muito frequentemente, nos dias de hoje, as apreciações
sobre as virtudes da ciência e da tecnologia aparecem com tons nitidamente
maniqueístas. O maniqueísmo é aquela doutrina que separa muito radicalmente o
bem do mal e, desta maneira, quem o adota na sua forma extrema é incapaz de
enxergar qualquer traço de mal no que se pressupôs ser o bem, nem qualquer bem,
ainda que mínimo, naquilo que se pressupôs ser o mal. Sob a ótica de uma
concepção maniqueísta extrema, o mundo parece dividido entre indivíduos bons, de
um lado, e indivíduos maus, do outro. Às vezes ainda pior: em indivíduos 100%
bons, de um lado, e indivíduos 100% maus do outro.


Para dizer o mínimo, uma concepção do gênero
é claramente inadequada, além de ser estimuladora de dogmatismos e
fundamentalismos de diversos teores, advindos de todos os lados. Mas como já se
disse mais de uma vez o bem e o mal habitam juntos nos corações de todos nós e
se manifestam como propensões (tendências) enormemente complexas.

 Essas
propensões são expressões de condições e situações neurológicas, psicológicas,
sociais, políticas, econômicas, ambientais, etc. Isso, evidentemente, não
significa dizer que todos nós somos simultânea e igualmente bons e maus. Há,
obviamente, que se distinguir o ato virtuoso do ato hediondo e decididamente
haveremos de distinguir quem os pratica. O que estamos querendo dizer é
simplesmente o seguinte: em um mundo, como o nosso, as virtudes e os defeitos da
ciência e da tecnologia devem ser concebidos como um complexo envolvendo
múltiplas dimensões.

Efetivamente, as ciências de hoje, embora sejam filhas daquela ciência dos
tempos de Galileu e Newton, se distanciaram sobremaneira da ciência mãe. E isso
em muitos e muitos aspectos. Alguns desses aspectos são os seguintes: (1) hoje
essas ciências se encontram sofisticadamente institucionalizadas, o que,
evidentemente, não era o caso da ciência galileana; (2) a instituição da ciência
tornou-se intensamente instrumental e serve a gigantescos poderes que são
qualitativamente diferentes dos gigantescos poderes dos quais a própria ciência
era vítima na sua forma nascente no século XVII que eram aqueles da instituição
da Igreja Católica.

As várias faces de uma situação muito
complexa: No dia 31 de janeiro de 2008, o jornalista e editorialista Helio
Schwartsman da Folha de São Paulo publicou um artigo intitulado "Ciência sob
Ataque" no qual criticou a ministra do Meio Ambiente Marina Silva por ter
defendido – na saída de um evento criacionista para o qual fora convidada- o
ensino de teorias "alternativas" ao darwinismo. (As aspas na palavra
alternativas foram postas por Schwartsman). Ele argumentou que a ministra Marina
Silva tem o direito, enquanto cidadã, de expressar a sua adoção pessoal, pois
essa é uma prerrogativa democrática de qualquer cidadão em um Estado de Direito,
mas enquanto Ministra de um Estado laico e, portanto, representante desse
Estado, não deveria fazê-lo. O editorialista estendeu suas críticas aos
ex-governadores, Rosinha e Antony Garotinho, por terem introduzido o ensino do
criacionismo nas escolas da rede pública do Rio de Janeiro.

 Schwartsman escreveu
que "admitir que padres e pastores profiram suas sandices epistemológicas em
seus templos é uma necessidade democrática. Mas não faz nenhum sentido
repeti-las nas salas de aula de um Estado laico". Aduz ainda ele que "fatos
sobre o mundo não são matéria que se decida com base em convicções pessoais ou
maioria".


Tal como Schwartsman concordo que os três políticos evangélicos acima citados
têm o direito de exercer livremente suas crenças, pois trata-se de uma
prerrogativa democrática do cidadão. Devem eles, por outro lado, não confundir
esse direito com as suas funções de homens e mulheres representantes de um
Estado laico.

No entanto, o foco de minha questão não é esta e sim outra
bastante diferente. Ao colocar no seu artigo o título "A Ciência sob Ataque" e
ao argumentar na forma como o faz, o editorialista da Folha de São Paulo parece
atribuir demasiadas luzes à Instituição da Ciência e demasiadas trevas a
quaisquer eventuais oposições aos poderes que essa institucionalização passou a
representar, muitos dos quais nada ou pouquíssimos científicos.

Como físico teórico e professor desta
disciplina, defendo o desenvolvimento livre de todas as ciências, mas defendo
igualmente que o desenvolvimento dessas seja controlado pelos cidadãos, pois
entendo também que o controle democrático da ciência e da tecnologia seja um
direito do cidadão. Em outras palavras, os produtos da ciência e da tecnologia
não estão acima de qualquer suspeita e a sociedade não tem apenas o direito de
se manifestar como também tem o dever de exercer esse controle. Desenvolvimento
livre não significa desenvolvimento irresponsável.


Aqui, é necessário um contraponto. Em um
país como o nosso em que há carências graves -como aquelas representadas pelo
déficit de alguns milhares de professores nas várias ciências, notadamente
física- temos a obrigação de estimular e incentivar na juventude o gosto pelas
disciplinas científicas que são essenciais para o desenvolvimento do país e esta
é uma ponderação necessária. Este estímulo, no entanto, para ser honesto, deve
necessariamente vir acompanhado da crítica aos produtos da ciência e da
tecnologia que eventualmente possam causar danos à saúde pública, à qualidade de
vida das pessoas, ao ambiente por todos nós constituído e compartilhado, e assim
por diante.

Tudo isso é o que o Grupo de Nápoles Scienza
e Democrazia/Science and Democracy chama de Controle Democrático da Ciência e da
Tecnologia. Isso, evidentemente, nada tem de obscurantista. Muito pelo
contrário. Trata-se de uma oposição necessária e urgente frente a um novo
absolutismo representado pelos gigantescos interesses das poderosas corporações
que se utilizam de maneira instrumental dos produtos da ciência e da tecnologia.
Essas corporações cada vez mais tutelam e controlam a produção em ciência e
tecnologia, concentrando demasiado poder em suas mãos em sério perigo para as
instituições democráticas. Em larga medida -é bom que se afirme com todas as
letras- tais interesses não necessariamente coincidem com os interesses dos
povos por paz duradoura, boa saúde pública, ambiente limpo, alimentos saudáveis
e vida feliz e autônoma dos cidadãos, inclusive dos cientistas.


A tese que defendemos aqui é a de que a(s)
ciência(s) e a livre criatividade dos cientistas devem ser estimuladas com
entusiasmo, mas que os produtos dessas e das tecnologias a elas conectadas devem
ser severamente controlados pela sociedade civil. Além disso, defendemos que a
sociedade civil – contrariamente ao que elitistamente se afirma- tem condições
de exercer democraticamente este controle através de suas múltiplas
interlocuções e organizações. Não admitir isso seria equivalente a ceder
gratuita e irresponsavelmente espaço ao apetite absolutista das grandes
corporações multinacionais que têm obsessão por mercado e por lucro a qualquer
preço.

Essas corporações não apenas se utilizam instrumentalmente da(s)
ciência(s) atropelando princípios éticos que deveriam lastrear qualquer conduta
minimamente desejável. Elas tutelam, manipulam e chantageiam a comunidade
científica e tem o poder de pôr no ostracismo membros, inclusive famosíssimos e
muito prestigiosos, que a partir de então, através do braço repressor do
financiamento e do poder midiático dessas corporações, passam a ser foco de uma
cruel campanha de difamação. É triste constatar que diante de um quadro do
gênero, a venalidade e o carreirismo tornaram-se uma poderosa moeda de troca.

Alguns exemplos eloqüentes: IRWIN D. BROSS: O bioestatístico e
epidemiologista Irwin Bross (1921-2004) foi um cientista de peso no contexto da
ciência estadunidense e mundial. Na década de 50 do século passado foi o
responsável por planejar o primeiro grande teste clínico para a quimioterapia de
câncer de seio. Ele planejou também alguns entre os primeiros testes clínicos da
cura da leucemia infantil. As suas pesquisas repercutiram bastante e redundaram
em práticas que hoje se tornaram corriqueiras como, por exemplo, o uso
obrigatório dos cintos de segurança nos automóveis e a redução dos níveis de
alcatrão e nicotina nos cigarros.
Bross, outrora tanto prestigiado, passou a
ser colocado no ostracismo e impiedosamente perseguido após posicionar-se
contrariamente às teses defendidas pelo establishment dominante. Este último
incutia nas pessoas através de propaganda a idéia de que a exposição humana a
níveis baixos de radiação residual era inócua à saúde. Bross defendeu, em
oposição a esse ponto de vista, que tal radiação era e é severamente lesiva à
saúde.

Após as bombas de Hiroxima e de Nagasaki,
tropas estadunidenses ocuparam aquelas cidades japonesas. Estima-se que dos
222.000 veteranos expostos à radiação residual no período imediatamente
posterior à explosão, cerca de 50.000 soldados contraíram câncer, manifestado
tempos depois. A doutrina do Pentágono, sustentada por cientistas como Edward
Teller, era que aquela radiação residual constituía-se em algo inócuo para a
saúde. Muitos chegaram ao cinismo de especular que, no caso mais desfavorável,
quando a doença viesse a se manifestar, essas pessoas expostas ou "já estariam
aposentadas ou mortas por algum motivo e que assim não haveria
problema."


Os cientistas que por venalidade deram
legitimidade à tese do Pentágono, não são inocentes nesta história. Eles
participam do poder que persegue e põe na dissidência quem tem compromisso com o
bem público e que, em detrimento da própria carreira, assume posições corajosas.
Diferentemente desses, os venais conquistam fama e dinheiro com o sofrimento
alheio.

É importante que se afirme que Irwin Bross
foi um peso pesado da ciência estadunidense. Pesquisador na Universidade John
Hopkins, chefe do setor estatístico do Sloan-Kettering Institute, que é um dos
mais importantes centros de pesquisa sobre tumores, e diretor do departamento de
estatística do Roswell Park Institute of Cancer Research em Buffalo, Estado de
Nova Iorque.

As conclusões de Bross que foram publicadas
em um capítulo intitulado Sul "fare storia" no livro Scienze, Poteri e
Democrazia organizado pelo Professor Marco Mamone Capria da Universidade de
Perugia são realmente eloqüentes na medida em que advertem para uma situação
enormemente perigosa para a humanidade. Tudo isso nos faz lembrar o escritor
português José Saramago, Premio Nobel de Literatura, que em depoimento asseverou
que o mundo vai mal e que a democracia vigente é uma ilusão, pois consiste
apenas em tirar um governo do qual não gostamos para substituir por outro que
talvez venhamos a gostar. Mas, a grande maioria dos governos, de fato, não
manda. São as grandes e gigantescas corporações sim, que estão exercendo o
poder.

A questão dos transgênicos: Trata-se de um
dos temas recorrentes em todas as três versões já realizadas dos Congressos de
Nápoles (2001, 2003 e 2005). Os trabalhos apresentados sobre o tema são
competentíssimos, além de escritos por autores sérios e honestos que têm
rigoroso respeito pelo interesse público. Infelizmente, a questão é quase sempre
posta para o grande público com aquele tom maniqueísta: progressistas versus
retrógrados.


De um lado estariam os pressupostos
progressistas que querem o bem da ciência e o progresso científico e tecnológico
e do outro lado estariam aqueles que passam a receber o epíteto de ‘retrógrados
ambientalistas’ que querem o atraso. Nada mais perverso, mais fraudulento e mais
enganoso. Stefano Dumontet, professor da Universidade de Nápoles, destacado
pesquisador da ciência agronômica e um dos organizadores dos congressos de
Nápoles
emitiu o seguinte parecer a respeito do tema.

Provavelmente, o debate sobre os organismos
geneticamente modificados (OGM) é colocado como um falso problema. Chamar em
causa a ciência neste debate é um despropósito. A ciência, ou melhor, a
tecnologia genética, desempenha um papel secundário e até mesmo absolutamente
marginal. E isso, quer seja no sentido da autonomia da pesquisa quer seja na
autonomia de sua função social.

Tal como afirma Dumontet os cientistas
trabalhando no campo sofrem da falta de autonomia em dois importantes sentidos:
no primeiro, devido a sua dependência de financiamentos pesados para poderem
levar adiante as suas pesquisas na medida em que esses financiamentos são
controlados pelas grandes corporações; no segundo sentido, e ainda com maior
razão do que no primeiro, esses cientistas carecem da autonomia para participar
das diretrizes das políticas públicas que são definidoras da função social que
os organismos geneticamente modificados exercem.


Os problemas acarretados pelos OGM não são
apenas de natureza científica no sentido estrito do termo. Eles acarretam também
enormes conseqüências éticas e políticas. As grandes corporações do campo se
interessam, em primeiríssima instância, pela privatização e por patentes, pois
têm o intuito de dominar mercados e obter lucros astronômicos.

Para tal produzem
sementes estéreis que deixam os agricultores em completa dependência. Os
agricultores ficam na posição de vassalagem frente ao novo absolutismo
emergente. Ao invés do absolutismo caracterizado pelo L’etat c’est moi (O Estado
sou Eu) de Luiz XIV, agora, com o advento de certos tipos de tecnologia
genética, passou a existir o novo absolutismo da Monsanto e suas co-irmãs
corporativas caracterizado pelo lema La vie c’est moi (A vida sou Eu). Sementes
estéreis somente podem ser utilizadas no primeiro plantio, mas as sementes daí
resultantes não podem mais ser utilizadas. Isso coloca os agricultores em
completa dependência do capricho das grandes corporações.

Ainda que essa tecnologia fosse sem
problema, o que não é o caso, a vassalagem dos agricultores já seria um problema
ético e político de monta. Mas essas tecnologias são custosas, ineficientes e
com grande potencialidade de contaminação genética como foi o caso do milho
relatado pela revista Nature de 27 de setembro de 2001. Stefano Dumontet e
Giovanni Figliuolo escrevem que:
É de pouco tempo a descoberta de que o gene
Bt que confere resistência contra os insetos e portanto portador de vantagem
seletiva foi transferido por fluxo genético natural das culturas OGM às
variedades locais de milho cultivado no México, região que representa o centro
natural da diversidade genética desta cultura.(DUMONTET & FIGLIUOLO, p. 327,
In: MAMONE CAPRIA (Org.), 2006)

As sementes estéreis não constituem apenas
um problema ético e político na medida em que em função da dependência criada,
agricultores são compulsoriamente constrangidos a se transformarem em vassalos
das corporações. O próprio fato da esterilidade, em oposição fundamental ao
natural processo da vida, constitui-se em algo, no mínimo, suspeito. Quando
pensamos que isso se dá unicamente para proteger direitos de patente, prover a
conquista de mercado e incentivar o lucro exorbitante, então é forçoso concluir
que "algo está podre no reino da Dinamarca".

Os problemas não param por ai. A
contaminação química, a diminuição da diversidade biológica e o empobrecimento
dos solos são questões de monta. E todos esses problemas são deveras acelerados
pelos organismos geneticamente modificados.


Há, além disso, o problema geopolítico. O
exemplo do que sucedeu na Zâmbia é sobremaneira emblemático. Vejamos o relato do
cientista zambiano Mwananyanda Mbikusita-Lewanika que participa do Grupo de
Nápoles. Esse país tinha uma economia excessivamente voltada para a mineração.
Empreendeu esforços para diversificá-la por meio da agricultura. Sérios
problemas de transporte e armazenamento passaram a existir. Foi oferecida à
Zâmbia ajuda internacional na forma de oferta de alimentos transgênicos
(organismos geneticamente modificados).

A sociedade zambiana, através de suas
comunidades científicas, sociedade civil e a população em geral recusaram a
oferta. O governo zambiano solicitou, em contrapartida, grãos não geneticamente
modificados, mas os organismos internacionais se negaram a atendê-lo, pois os
principais doadores – à frente os EUA- misturavam os seus grãos genética e não
geneticamente modificados e desta maneira não haveria como discriminá-los. O
governo zambiano então sugeriu que uma ajuda em termos de transporte fosse
oferecida uma vez que havia superávit de produção em algumas regiões e déficit
em outras; deste modo, se fosse oferecida ajuda em termos de infra-estrutura,
então o problema poderia ser resolvido. Os organismos internacionais mais uma
vez se negaram a ajudar com o argumento de que não tinham como prestar esse tipo
de ajuda.

Esses organismos internacionais
conjuntamente com o governo dos EUA pressionaram politicamente para que a
proposta inicial da oferta de grãos geneticamente modificados fosse aceita e
quando viram que os zambianos mantinham a sua negativa, passaram a empreender
uma campanha difamatória a fim de que se
viesse a desacreditar no governo e
nas instituições daquele país como "retrógradas", "atrasadas" e "renitentes ao
progresso científico".

A questão dos transgênicos é profundamente
geopolítica e requer a participação da sociedade civil. Os cientistas não estão
em melhores condições que os não-cientistas para a tomada das melhores opções.
Mais uma vez ressurge o mito dos OGM tal como surgiu o mito da Revolução Verde
décadas atrás.
Pode-se ressaltar a questão geopolítica quando lembramos que
o governo Bush vem fazendo críticas ácidas à Comunidade Européia em função da
moratória dessa em relação aos organismos geneticamente modificados, com base no
Princípio da Precaução.

Jenner Barreto Bastos Filho é Físico e Prof da Universidade Federal de Alagoas
Artigo publicado originalmente na Gazeta de Alagoas
http://gazetaweb.globo.com/v2/gazetadealagoas

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