Precisamos falar da direita, por Fernando Horta
Há quem diga que não existe direita ou esquerda no Brasil. Eu discordo. Há quem diga que não há mais diferença entre direita e esquerda no mundo. E eu, também, discordo.
Mesmo que as coisas tenham se tornado muito mais complexas no final do século XX e início do XXI do que no XIX ou início do XX, ainda é possível diferenciar direita e esquerda pelo antagonismo mais básico da economia: trabalho e capital. Aqueles que valoram o trabalho de forma mais essencial que o capital se colocam no que chamamos de “esquerda”. Os que valoram o capital acima do trabalho ficam à direita.
É claro que existe um termo-médio aí. Difícil de definir, mas ele existe. E é também evidente que não se pode derivar todo um conjunto de valores apenas destas percepções. Daí que podemos ter uma direita ecológica, que prega sustentabilidade, assim como podemos ter uma esquerda que aceite e nutra algum respeito pelo “mercado”. Podemos ter uma esquerda reformista e uma direita que quer romper com o status quo (as coisas como estão). Claro que querem romper para trazer mais à direita, mas não deixa de ser uma defesa de rupturas … não digo “revolução” porque guardo este termo em especial lugar … especialmente nos Cem Anos da Revolução Russa.
Há, portanto, que essencialmente se verificar no programa do partido ou da pessoa com quem estamos tendo uma conversa onde, afinal, ela coloca o trabalho. E por conseguinte, onde coloca o ser humano. Se ele é mais um elemento do mercado ou um insumo disponível que pode ser precificado, colocado em disponibilidade ou ter sua condição de vida alterada simplesmente porque “as forças econômicas” assim querem, me parece claro que este programa ou indíviduo se encontra no que chamamos de “direita”. Por outro lado, se o capital é tratado como um elemento apenas da relação capitalista e se o trabalho (e por consequência o ser humano) devem ser protegidos da relação com o mercado, então estamos no campo da “esquerda”.
Muito temos escrito sobre a equerda. Sobre seus rumos e desgovernos, sobre seus líderes e seus projetos. Muito, enfim, falamos sobre como retomar a força da esquerda e como ir adiante. Mas não damos o devido cuidado à direita. Aliás, o golpe aconteceu porque ninguém imaginou que ele pudesse acontecer, até ter praticamente acontecido. Eu acho, particularmente, que a palavra “coxinha” ajudou no golpe. Por anos deixamos de chamar estas pessoas pelo que são: golpistas, autoritários e até fascistas. Demos espaço, achamos graça e não acreditamos que alguém pudesse ouvir um Alexandre Frota em questões de educação, um Kim Kataguiri em qualquer questão ou mesmo não levamos a sério um Jair Bolsonaro.
E o mundo se tornou tão estranho que até estão tentando retirar Paulo Freire da condição de patrono da educação brasileira.
É preciso começar a prestar séria atenção no que nos parecia surreal demais. Estamos com pastores impondo leis com censura, donas de casa carolas atacando museus e artistas e generais mostrando todo seu “vasto” conhecimento sobre história e sociologia, trazendo de volta o medo do “comunismo ateu” dos anos 50, se tanto.
Existem três diferentes projetos de direita no Brasil e dois grandes perigos. Eles tem uma pequena agenda comum e isto é o grande problema. Todos juntaram-se para o golpe. Mas este momento foi breve e já se desfez. Hoje se digladiam por apoio político, verba e visibilidade, como mostraram algumas reportagens recentes. Aquele momento de conciliação com dancinhas e gritos de “Tchau querida” acabou.
O primeiro projeto de direita está no poder. Flertou com o reformismo petista durante os treze (quase quatorze) anos de governo. Ofereceu apoio político em troca de espaço. E nesta troca domou o PT. Não apenas travou pautas que este grupo achava “muito radicais” como também obteve espaço para seus esquemas de corrupção. Se os governos petistas sabiam ou não é algo para noites de acalorados debates. O que importa é que não havia como mudar um centímetro de Brasil sem um acordo com estas elites encalacradas no poder. Eduardo Cunha, Geddel, Moreira e Temer não são a causa da fisiologia política brasileira, mas a consequência. Consequência esta que perdura deste sempre, ou vocês acham que Maluf, Sarney e ACM – criados durante a ditadura militar – eram de alguma forma mais honestos do que a patota que aí está?
O objetivo deste primeiro projeto é exatamente continuar vendendo seu apoio por vistas grossas à corrupção. É o pior que existe. Antes de um Temer, que tivessemos um governo neoliberal de fato. Dos males o menor. Além de cercados por incompetentes completos, o governo Temer não tem qualquer escrúpulo em hipotecar o país para salvar a pele. Felizmente, acho que este projeto não tem mais apoio de ninguém no Brasil. Isto diz também os 3% que aprovam Temer.
O segundo projeto de direita em luta pelo país é o neoliberal. Seja o mais técnico com Armínio Fraga, Jorge Gerdau e Paulo Lehmann, seja o mais burlesco com João Dória e Luciano Huck ou seja o mais esquizofrênico do MBL. Todos querem diminuir o Estado. Mínimo, apenas com a polícia para garantir a propriedade privada, a diplomacia para garantir os mercados exteriores e um controle sobre as ações macroeconômicas. Como é apenas a propriedade privada que eles consideram como direito essencial, é apenas nisto que precisa o Estado se centrar. Dar porrada nos pobres, a mando dos ricos e o resto a mão invisível do mercado se encarregará de estapear todo mundo.
Falam em “Estado Mínimo” mas nunca perguntaram o que isto significa. Eu também sou a favor do Estado Mínimo. Mas para mim o “mínimo” que um Estado tem que dar é educação gratuira, saúde, segurança, infraestrutura, controle dos danos ao meios ambiente e justiça. O resto poderia tirar. A imensa maioria da população nunca vai usar diretamente um serviço consular ou diplomático. A imensa maioria nunca usou a justiça e quando o fez saiu sem a prestação devida. A imensa maioria das pessoas não vê a polícia como algo positivo. Se fôssemos decidir democraticamente o que tirar para o Estado atingir o “mínimo” penso que não faria sentido milhões gastos com armas não letais (para atacar o cidadão que se insurge) enquanto não se tem medicamentos e ferramentas básicas em hospitais.
É claro que esta discussão nunca será feita. Os defensores do “Estado Mínimo” querem o seu “Estado Mínimo” e nele por vezes não cabe nem a democracia.
O terceiro projeto de direita que está em curso no Brasil é o projeto autoritário. Seja ela dos pastores milionários ou dos que usam farda verde-oliva. Este projeto tem por característica não ter a mínima ideia do que fazer com a economia. O importante é acabar com a quintessência da maldade. A “pedofilia” para os pastores e o “comunismo” para os verde oliva. Veja que eles não se importam com a corrupção, por exemplo. Até acham aceitável se o fim for nobre. Vale plantar provas falsas para pegar um “pedófilo” ou um “comunista”. É pelo bem do “país”.
De novo, aqui eles não permitem discutir o que é “país”. Quem faz parte? Chegaram a dizer que quem usava vermelho não era brasileiro. Os pastores chegam ao crime de dizer que quem não reza pelo Deus dele não merece ter seus direitos respeitados. Aliás, não sei porque o nosso tão diligente (sic) MP ainda não os processou por charlatanismo, preconceito religioso, incitação à violência, falsidade ideológica e mais uma dezena de crimes que cada pastor destes comete. Deve ser falta de tempo do MP. Andam muito preocupados com a “corrupção”.
Estes três projetos se digladiam por visibilidade. Para atingirem as populações mais pobres. Lutam por verbas, lutam por espaço político e estão usando a violência numa disputa interna sobre quem mais choca o país. Num dia os apedeutas do MBL invadem um museu. No outro os descontrolados neopentecostais da Teologia da Prosperidade tentam invadir exposições e censurar artistas. É a luta pelo que for mais bizarro e chocante. E eu digo que os dois estão rigorosamente empatados. No quesito ignorância não há como se saber qual deles é o pior, mas toda semana eles conseguem nos surprender. Até ator pornô e parlamentar onanista se descontrolam ao falarem do “nu”.
O maior problema, no entanto, é que estes projetos todos têm um ponto em comum. Eles não aceitam o retorno da esquerda. E se para isto eles tiverem que degenerar para uma forma de fascismo no Brasil ou para um autoritarismo teocrático eles não pensarão duas vezes. Aqui estão os dois maiores perigos. Na impossibilidade de ganhar as classes baixas estes projetos de direita terminarão por seguir o caminho autoritário em essência. Seja justificando que “o povo brasileiro” não sabe votar ou seja porque é preciso “defender” o povo da “degeneração moral”. A desculpa não importa. Eles têm as cartas das intervenções – todas – na manga. Lula, é a grande pedra no sapato. Lula é, para eles, o mal encarnado. O estereótipo do comunista ou mesmo uma barreira para a internacionalização das riquezas do Brasil.
Nenhum dos três projetos deve ser subestimado. Todos os atores da direita devem ser cuidados, por mais mentecaptos, ineptos ou ignorantes que possam parecer. O fascismo surge também do descrédito. Eles conseguem convencer a população que nada mais pode dar certo e a esquerda se convence que ninguém vai acreditar nisto. Quando acordarmos um dia pela manhã, tem um semi-analfabato de farda, com uma bíblia na mão ou citando figuras difusas da economia alemã do século XIX (que sequer sabem ler no original) dando ordens.
Às ruas. A esquerda mostra a sua força nas ruas. E falando contra a miséria, pelo trabalho e pelo respeito que ganhamos os ouvidos. É falando em voto, escolha e futuro que ganhamos os braços e é falando para todos que ganharemos as eleições.
Às ruas.
Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/noticia/precisamos-falar-da-direita-por-fernando-horta