Aldeia Nagô
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Primavera partida por Emiliano José

6 - 9 minutos de leituraModo Leitura

Mario Benedetti é um autor provocante. Li dele A Trégua,
notável romance publicado em 1960, em que o amor, a paixão, a solidão, a vida
sem perspectivas dos centros urbanos aparecem tecidos pela sensibilidade de um extraordinário
escritor.


O protagonista, Martín Santomé, um viúvo com três filhos, só vive um
momento de redenção quando se apaixona, e é correspondido, por uma bela e jovem
mulher, que sacode sua vida cinzenta, Laura Avellaneda. Será, como o leitor
poderá conferir, apenas uma trégua.

Para mim, que o considero um autor imperdível, que tornou-se ainda mais imperdível
com Primavera num espelho partido.  Me fez mergulhar no tempo. No tempo do
exílio da prisão, da tortura. No tempo do companheirismo, da solidariedade na
dor . Da solidão da prisão. Da tentativa permanente de não sucumbir. Das
lágrimas furtivas dos homens de ferro que pretendíamos ser, quase convocados a
ser assim para não nos desintegrarmos. Ensimesmei-me nas últimas horas com a
leitura de Benedetti, quase autobiográfico.

Benedetti, ao construir Santiago, prisioneiro político no Uruguai, Graciela, sua
companheira no exílio argentino, dom Rafael, o intelectual pai de Santiago, e
ao retratar as grandezas e as miudezas de tantos outros personagens, incomoda,
e muito a quem tenha, como eu e tantos companheiros e companheiras, vivido a
dureza e a grandeza de ter enfrentado e sofrido as consequências do terror de
uma ditadura. Aqui, no Uruguai, na Argentina, no Chile, onde quer que seja,
ditadura é a mesma coisa.

Fomos grandes e fomos pequenos. Acertamos e erramos. Fomos voluntariosos e donos
do caminho correto. Amamos e desamamos. Encontramos amores e nos desencontramos.
Fomos surpreendidos pela força das armas dos generais. Pela tortura que eles
determinavam. Pelo assassinato de tantos dos nossos, sempre pelos métodos mais
brutais e mais covardes. Em nossos corpos e em nossas almas esse tempo
cravou-se para sempre. Nós nunca o esqueceremos, para o bem e para o mal. E não
esquecer, e aqui é para o bem, quer dizer que sempre lutaremos contra qualquer
ditadura.

O eixo narrativo do romance – será que deveria chamá-lo romance, considerando
que ele próprio, Benedetti, é personagem explícito? – gira em torno de Santiago
e Graciela, com o ingrediente de que ela vai sentir o tempo e a distância
corroerem o desejo e o amor por Santiago, e levá-la a se apaixonar por Rolando,
companheiro antigo de Santiago e que também vive no exílio argentino.

Tudo nos toca. As reflexões das cartas de Santiago a Graciela e a Beatriz, filha
de 9 anos do casal, de dom Rafael, do próprio Benedetti, de Rolando, de
Graciela. A decisão de Graciela, a conselho do próprio dom Rafael, de não contar
a Santiago do amor dela por Rolando enquanto ele estiver preso, é um dos
momentos mais sensíveis e tensos do livro.

Se a boa literatura for aquilo que incomoda, estamos diante de um belíssimo livro.
Desculpando-me naturalmente pela emoção e quem sabe parcialidade da leitura.
Porque a mim, em alguns momentos, parecia estar revivendo um período,
descontadas as diferenças de tempo e lugar.

Penso na reflexão de dom Rafael acerca do Uruguai sob ditadura, e dizendo que
não sabia como nem quando, mas que a garotada de hoje, daquele tempo em que ele
estava situado, é que seria a vanguarda de “uma pátria realista”.  E que
os veteranos, “as carroças que ainda estivermos rodando, nós os ajudaremos a
recordar o que viram. E também o que não viram”.

Parece triste, e é, mas é ao mesmo tempo esperançoso, ao dar alento a uma espécie
de diálogo entre gerações, de modo que não sobrevenha o esquecimento sobre
ditaduras. Quando lembrarmos sobre as ditaduras, não pensem tratar-se apenas de
raiva, asco ou nojo delas. Também. Mas o que pretendemos, os que estamos na
luta e guardamos fortemente as lembranças daquele tempo, é que os mais novos
firmem cada vez mais suas convicções democráticas, valorizem a liberdade, e
saibam o quanto é triste, pesado, sombrio o período de uma ditadura.

Só quem tiver passado por ditadura, ter enfrentado a prisão e a tortura saberá,
e sofrerá novamente, o que significa o que dom Rafael diz sobre a solidão do
enfrentamento com o torturador, com o carrasco que não tem olhos.
Nesse momento, “a pessoa fica espantosamente só, não tem sequer a companhia
da presença suja do teto ou das paredes, nem dos rostos imundos dos que o destroçam”.

Ali, na tortura, o prisioneiro “está só com seu capuz, ou mais exatamente com o
avesso do capuz; só com sua taquicardia, suas ânsias, sua asfixia ou sua
angústia sem fim”. No meu caso, era um grosso esparadrapo que tampava os meus
olhos enquanto os choques, o afogamento, o pau-de-arara dilaceravam meu corpo
jovem de 24 anos.

E quando supliciam um homem ou uma mulher, mais velho ou mais novo, não fazem
sofrer apenas aquele homem ou aquela mulher, matando-o ou não. “Martirizam
também (apesar de não prendê-los, embora os deixem desamparados e atônitos em
sua casa violada) sua mulher, seus pais, seus filhos, aqueles com quem se
relaciona.”

Nós, até hoje, não sabemos o destino de tantos que foram mortos e desaparecidos
pela ditadura brasileira, e o STF, quase que num escárnio, decide que os
torturadores foram alcançados pela anistia. Há viúvas, há filhos, há irmãos,
irmãs que até hoje querem enterrar um ente querido seu, e não podem. Nem esse
direito têm. Ditadura é isso.

Assustam-se os que nos ouvem dizer que na tortura a idéia da morte não impressiona.
Ao menos o desejo de algum descanso, desmaio, e se sobrevir, a própria morte.
Ali, naquela situação-limite da existência, “também está presente a idéia da
morte / vem e vai / às vezes coincide com o medo e outras não / em mim
geralmente não coincidia / no fim a dor provoca mais medo que a morte – pode-se
inclusive encarar a morte como um analgésico definitivo”. O desabafo é de
Santiago, embora ele conclua que “há sempre um pedacinho de primavera que
resiste”.

Ali, também, nesse tempo, dolorido, nossas reservas morais são postas à prova.
Não só na prisão, mas fora dela. E o caso de amor entre Rolando e Graciela é a
evidência disso. É um lindo encontro o deles. Mas um encontro que os põe diante
de conflitos morais – ou de uma espécie de moral – muito fortes. Ela, por todo
o dever de lealdade ao velho amor, pai de sua filha. Ele, por ter compartilhado
da luta com Santiago. E Rolando só é convertido a uma relação monogâmica pela
tempestade da paixão avassaladora por Graciela.Rolando confessa que nunca tinha
lhe acontecido isso com nenhuma mulher.
Tinha como princípio que a relação fosse sempre provisória. E agora Graciela,
encurralado pela paixão.

E Santiago, como se disse, só saberá dessa paixão, quando pisar os pés na Argentina,
ansioso, em busca do amor de sua companheira e de sua filha. E feliz também
porque vai rever Rolando. É a vida. É o amor. São as paixões, os sustos, os
alumbramentos, que surpreendem a todos. Benedetti deixa o leitor em suspense,
terminando o livro no momento em que Santiago divisa ao longe, ao desembarcar no
aeroporto, Graciela, Beatriz e o próprio Rolando, para sua infinita alegria. O
que será pela frente, ninguém sabe.

Benedetti é também grande poeta, e eu me lembro de seu belíssimo Táctica e estrategia.
Ele finaliza o poema, que fala do amor, dizendo

Mi estrategia es

en cambio

más profunda y más

simple

mi estrategia es

que um dia cualquiera

no sé cómo ni sé

com qué pretexto

por fin me necesites.

Quem sabe quem necessitará de quem ao final da história de Primavera num
espelho partido? Graciela de Rolando? Santiago de Graciela? Graciela de
Santiago? A resposta fica em
aberto. Para o exercício do leitor. Como na
vida, tudo pode ser.

Emiliano José
Emiliano José é jornalista, escritor, doutor em Comunicação e Cultura
Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. www.emilianojose.com.br

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