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PT, Política Cultural e a gestão do MinC. Por Carlos Gustavo Yoda

12 - 17 minutos de leituraModo Leitura

"O PT ainda não incorporou os avanços da experiência do Ministério Gil."
André Martinez, presidente do Instituto Diversidade Cultural, entende que o
Partido dos Trabalhadores não absorveu as experiências realizadas pela equipe de
Gilberto Gil no Ministério da Cultura. "O orçamento contingenciado do MinC é
apenas a evidência mais explícita dessa disfunção. Ainda assim, a proposta que
eu desejo para a cultura, sejam quais forem nossos próximos presidentes, é a
política Gil", afirma.


Poucos são os que entendem de políticas públicas
para a cultura no Brasil. Talvez isso se deva pelas distorções sobre o que seja
política cultural entre as práticas tão acomodadas do balcão de negócios. O
consultor André Martinez, especializado em planejamento e gestão de políticas e
empreendimentos culturais, é uma das poucas pessoas que podem falar livremente
sobre a situação do setor e sua relação com o Estado no Brasil.

Autor do
livro Democracia Audiovisual, foi coordenador dos programas culturais do SESC-RS
e diretor de programação do Teatro SESC Porto Alegre, além de desenvolver
dezenas de projetos para empresas e outras instituições públicas. Atualmente,
Martinez é presidente do Instituto Diversidade Cultural (saiba mais aqui),
diretor executivo da Brant Associados e professor titular da Universidade
Anhembi Morumbi.

André Martinez entende que antes de Gil assumir o
Ministério da Cultura (MinC), o Brasil ensaiou muitas práticas de Estado para a
cultura, mas jamais conseguiu planejar e realizar políticas culturais. "Não
podemos sequer afirmar, por exemplo, que a doutrina ‘Cultura é um bom negócio’
tenha configurado uma política econômica para a cultura", diz.

Mesmo
assim, Martinez critica a visão do Partido dos Trabalhadores e do governo Lula
como um todo sobre a Cultura: "O discurso do ministério tem mais
sustentabilidade nos movimentos do Terceiro Setor do que nos dos demais
ministérios. Mais nos movimentos da Unesco, que nos do Planalto. O orçamento
contingenciado do MinC é apenas a evidência mais explícita dessa
disfunção".

O consultor foi procurado por Carta Maior para fazer uma
avaliação de Gil no ministério e das políticas públicas para a cultura
apresentadas pelos dois candidatos à presidência no segundo turno. Sobre o PT, o
maior erro, segundo ele, é o partido não ter absorvido os avanços da experiência
do Gil ministro. Quanto ao PSDB, "persiste a lógica cartesiana dos termos
bélicos ocupando o espaço do rizoma, que melhor caberia à cultura e à
sustentabilidade. Ainda o papo do bom negócio. Não mais para sustentar promoção
de marca, mas um modelo de desenvolvimento pseudo-sustentável, ditado pelo
capital, em que a cultura é apenas meio para tapar buracos". Leia abaixo a
entrevista na íntegra realizada via correio eletrônico:

Carta Maior –
Como o sr. avalia a gestão da política pública para a cultura no
Brasil?
André Martinez – É preciso antes definir a premissa do que se espera,
ou se deveria esperar, de um ministério em um Estado democrático. Não tão
somente conduzir movimentos governamentais em relação ao atendimento de demandas
emergentes dos eleitores, mas, acima de tudo, articular a práxis de uma
sociedade em relação à conquista de sua própria autonomia. Como estrutura
formalmente constituída para esta práxis, espero que o poder executivo articule
políticas públicas, o que significa dizer articular os movimentos
sócio-econômicos na sociedade em direção à conquista de seu bem-comum, da razão
em si destes movimentos terem se articulado para instituir um estado de direito.
A capacidade de articulação, portanto, é uma vocação indispensável para
justificar a existência das instituições públicas. As políticas públicas são os
instrumentos para o exercício desta vocação, mobilizando e deixando-se mobilizar
por esforços coletivos em relação a determinados propósitos específicos, mas
também caros para todos, também universais. A interdependência, aliás, entre o
específico e o universal é a própria razão de ser da política
pública.

Como é a formulação de uma política pública? Em primeiro lugar,
buscar uma abrangência que represente a sociedade como um todo monístico capaz
de participar. Tentar entender a diversidade da sociedade. Em segundo lugar,
propor um foco de transformação, um propósito específico, administrável, que a
todos interesse. Uma forma de pensar e agir orgânica, que possa ser
universalmente compartilhada. Todos queremos saúde, trabalhemos por ela, sigamos
este norte.

Mas o que acontece quando agregamos à política pública o
adjetivo cultural? Qual é a consistência da especificidade a que nos referimos?
Qual o sentido da política cultural, se a cultura abrange um espectro tão amplo
que vai dos modos de vida à construção do imaginário? Onde está o foco? Não
sendo possível uma única especificidade para a complexa relação de sistemas do
domínio da cultura, ao pensarmos em políticas culturais, adquirimos o vício de
compreendê-las somente conforme a situação de mundo que mais afeta nossa vida no
tempo e no lugar que habitamos. Políticas de economia, políticas de identidade,
políticas de orgulho, políticas de prevenção, políticas de reparação, e assim
vai, dependendo de nossas carências.

Por estes motivos, tenho afirmado
que, antes do Gil, o Brasil ensaiou muitas práticas de Estado para a cultura,
jamais políticas culturais. E jamais políticas de qualquer outra ordem. Não
podemos sequer afirmar, por exemplo, que a doutrina "Cultura é um bom negócio",
tenha configurado uma política econômica para a cultura. Jamais passou de
arremedo tímido, buscando gerar algumas oportunidades esquálidas para que os
agentes setoriais da atividade econômica formal da cultura pudessem subexistir.
O ônus dessa ineficácia tem sido a apropriação literalmente gratuita do capital
e do simbólico públicos pelos interesses privados. Ainda que reféns dessa ordem,
sequer fomos capazes de aprender a fazer negócios no mercado bilionário da
cultura. Um erro estratégico numa economia multicultural como o Brasil. No
sentido oposto, não podemos admitir qualquer avanço no campo das políticas de
garantia ao direito constitucional do exercício das identidades. As intenções
"antropológicas" dos sucessivos governos imperiais e republicanos no Brasil
jamais conseguiram superar a tutela cínico-paternalista de querer levar a alta
cultura aos desvalidos ou emoldurar a cultura dos pobres ou exóticos em
paspartouts. Sintomas de crise histórica do Estado Brasileiro, já em situação
avançada.

CM – E em relação à gestão do ministro Gil, o sr. acredita
que houve avanços nesse pensamento?
AM – A gestão Gil, a despeito de todas
suas fragilidades executivas, introduziu tecnologia de política cultural no
Brasil. Compromissada em sustentar a complexidade da cultura, segue construindo
com muito profissionalismo um discurso que aposta com franqueza na articulação,
ao mesmo tempo em que reconhece a cultura como direito, modo de vida e
liberdade. A Secretarias do MinC são rigorosamente orientadas por
especificidades, enquanto o ministro empenha-se em construir uma pauta pública
que reconheça a universalidade dos mesmos aspectos. Um avanço sem precedentes
que tem colocado o país à frente da agenda internacional pela Diversidade
Cultural.

Além dessa inteligência pública melhor institucionalizada,
adquirimos nosso ministro-poeta-popstar-negro-baiano, brasileiríssimo
com seus sincretismos identitários. Por um lado, personifica a ruptura de todas
as dicotomias culturais ditadas pelo pensamento eurocêntrico. Sendo, agindo e
pensando, ministro Gil abre caminhos concretos para uma reflexão mais complexa
acerca da questão política da cultura no Brasil e no mundo. Por outro lado, o
mito é um artista-articulador unânime e ativo. Ninguém deixa de ouvir Gilberto
Gil e ele nunca deixa de cantar sua poética. Tê-lo à frente do ministério
potencializa sobremaneira o efeito de discurso das políticas culturais
propostas. Ano passado, em Dakar, durante o primeiro encontro da Rede
Internacional de Políticas Culturais após a promulgação da Convenção da
Diversidade Cultural (leia a reportagem aqui), pude presenciar Gilberto Gil
ocupando o centro das atenções entre 50 ministros de cultura dos países
signatários da Unesco. O articulador da diversidade.

Então, a pergunta
que fica é: se temos ministério e política cultural, por que é insuficiente a
ação do poder executivo? Penso que o quê da questão não seja a potência da
proposta do Governo Lula, mas uma deficiência estrutural da política operada a
partir dela. Além de discurso consistente, de valor simbólico e de liderança
engajada, uma política pública requer também outras categorias para gerar
transformação: a sustentabilidade do discurso, a capacidade de estruturação e o
orçamento. Aí reside o calvário do projeto e da equipe de Gil, pois uma
abordagem que tem a cultura como centralidade nos modos de vida e no exercício
das liberdades requer um Governo capaz de incorporar esta noção em absolutamente
todos os seus movimentos. O que se passa no Brasil é a precariedade dessa
incorporação. O discurso do ministério tem mais sustentabilidade nos movimentos
do Terceiro Setor do que nos dos demais ministérios. Mais nos movimentos da
Unesco, do que nos do Planalto. O orçamento contingenciado do MinC é apenas a
evidência mais explícita dessa disfunção. Além disso, precisamos conviver com a
antiadesão de nossas instituições sociais privadas – sempre tão vorazes e
imaturas – aos interesses públicos. No episódio da Ancinav, pudemos vivenciar a
toda a brutalidade e potência de intervenção das grandes redes de televisão, que
conseguiram congelar o debate público acerca da apropriação dos meios e
conteúdos audiovisuais. No andar da carruagem, tudo o que os brasileiros
conseguiram institucionalizar a favor de sua liberdade cultural foram algumas
poucas estruturas, como os Pontos de Cultura e o SNC, vitais, porém
insuficientes. Ainda assim, a proposta que eu desejo para a cultura, sejam quais
forem nossos próximos presidentes, é a política Gil.

CM – Qual a
avaliação do sr. das propostas do Partido dos Trabalhadores para a área?
AM –
As propostas do PT refletem, na perspectiva de partido, o desalinhamento que
mencionei entre práxis de ministério, de governo e de sociedade. É um reflexo da
crise do Estado. O PT não incorporou os avanços que a experiência com o
Ministério Gil teria permitido. E talvez não o tenha feito até mesmo devido à
fragilização das ideologias de esquerda no Brasil, fenômeno que protagonizou.
Restou uma visão setorial dúbia travestida de Unesco, fragmentária, linear,
muito distante do discurso orgânico que foi o grande mérito da atual gestão e
mesmo da proposta que elegeu o partido anteriormente. Muito frustrante.
Priorizar a continuidade de projetos fundados sobre a exigência de continuidade
é redundância, não proposta. Dar escala ao Cultura Viva e consolidar a
implantação do SNC e do PNC são obrigações mínimas, compromissos anteriores.
Pontos que poderiam ser grandes trunfos tentam, mas não conseguem, incorporar a
complexidade da questão política da cultura. O mínimo que se poderia esperar da
esquerda. A aproximação com a Educação, por exemplo, quer que a escola veja a
cultura como um conceito mais amplo, mas parece reduzir o conceito em si de
escola. O tratamento da questão da Comunicação, então, é constrangedor pela
forma como é evasivo em relação ao papel regulador do Estado. Parece que não
houve aprendizado algum com o fracasso da Ancinav. Se o discurso da política Gil
teve as estruturas como fragilidade, a do pleito do partido, agora, parece
adorná-las.

CM – E as do PSDB?
AM – Se a proposta do PT peca pela
disfunção discurso-ação, a dos tucanos, por sua vez, parte de um discurso
incipiente na origem. Questionado sobre o conceito de cultura pela revista
Cultura & Mercado (leia na íntegra aqui), Geraldo Alckmin a definiu como "o
conjunto dos valores e tradições que se acham em nossa formação como Nação, bem
como os sonhos e projetos que nossa sociedade construiu e vem construindo sobre
seu próprio futuro". Já faz tempo que a idéia de Cultura Nacional não mais
consegue defender sua suposta sustentabilidade. Em tempos de neoliberalismo
globalizado, o reconhecimento da Diversidade Cultural exige a transcendência do
conceito de nação, e o das Liberdades Culturais, a superação do paradigma da
nacionalidade. Sob pena de nossos filhos pagarem com a paz ou a vida pelos
nossos atos. Sem necessariamente considerar fascista a proposta do PSDB –
critico agora apenas o conceito em que está fundamentada – gostaria de lembrar
que a Alemanha nazista sustentou seu desenvolvimento na idéia de Cultura
Nacional. Cultura nacional como centralidade é um equívoco. Não é mais a questão
de uma Nação construir o seu próprio futuro, isso é do tempo em que
acreditávamos que desenvolvimento era virtude. É o caso de compreender a
interdependência, de pensar em sustentabilidade, de construir um futuro comum,
planetário. De entender o que se passa na cabeça de norte-americanos, de
palestinos e nas nossas próprias para poder dialogar. O diálogo (cultural)
tornou-se questão de vida ou morte.

A fragilidade do conceito é a
fragilidade do discurso tucano. Penso que se um discurso político não compreende
a complexidade do tempo em que é proferido, ou se mascara, ou não terá condições
de transformá-la sob qualquer circunstância. Pois não será capaz de rechear de
sentido público as estruturas articuladoras e executivas que a ele se
subordinam. O que resta, revestida talvez de boas intenções, é novamente a velha
cilada da "instrumentalização" ou da "estrategização" da cultura para
sustentar o bom-mocismo. O programa do PSDB é apresentado sob o título "Uma
questão estratégica na busca do desenvolvimento", mas não apresenta
estratégia. O que persiste é a lógica cartesiana dos termos bélicos ocupando o
espaço do rizoma, que melhor caberia à cultura e à sustentabilidade. Ainda o
papo do bom negócio. Não mais para sustentar promoção de marca, mas um modelo de
desenvolvimento pseudo-sustentável, ditado pelo capital, em que a cultura é
apenas meio para tapar buracos.

CM – O sr. compreende a necessidade de se
debater em conjunto com as políticas culturais a questão da comunicação. O sr.
acredita que as propostas dos candidatos levam em consideração a necessidade de
regulação do setor de comunicação para avançarmos nas políticas culturais?
AM
– É uma questão muito complexa. A regulação do setor de comunicação no Brasil –
depois de tantos anos de uma liberalidade obscena, em que indústrias
conquistaram o domínio da opinião pública, do imaginário e das referências
estéticas do país – exige um projeto claro e transversal de articulação em longo
prazo. Não são apenas as questões indispensáveis da legislação e das tecnologias
que pesam. É preciso muito antes o reempoderamento do público com forte
investimento em educação, em participação cultural, cívica e social e em todo o
conhecimento necessário à compreensão do fenômeno dos impactos culturais. Não
consigo pensar em políticas de comunicação que não sejam intrinsecamente
culturais, portanto, pois o reempoderamento do público é do domínio do
simbólico. Diria que a proposta do PT, ainda que tímida e indiretamente, pauta
um certo espaço para a regulação do setor de comunicação, porém sem apresentar
qualquer indício de tecnologia avançada ou suficiente de articulação. Situação
inaceitável para um partido que quer a renovação do mandato. A do PSDB não a
leva em consideração, o candidato, assim como as grandes redes de TV que o
apóiam, fala em estímulo à difusão de culturas regionais, mas considera os
mecanismos públicos de regulação um constrangimento.

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