Aldeia Nagô
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Quem é racista mesmo? Por Ernesto Marques

4 - 6 minutos de leituraModo Leitura
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Por mais comprometido que seja com o combate ao racismo, para um não negro é sempre delicado abordar o tema geral da discriminação. Mesmo contra a nossa vontade, somos, sim, beneficiados pela herança escravocrata que nos legou a fantasia da democracia racial brasileira.

Mesmo engajados na luta contra a discriminação, nunca sentiremos na pele, as dores do racismo. O tema se torna ainda mais sensível quando saímos da generalidade para a análise de um caso específico. Mas o episódio do uso eleitoral e exposição do assassinato brutal de uma criança negra e pobre, moradora de um bairro popular de Vitória da Conquista exige colocar os pingos nos “is”.

O caso surgiu na campanha eleitoral de 2012, como denúncia contra o radialista Hérzem Gusmão, naquele ano e neste, candidato a prefeito pelo mesmo PMDB que carreou votos contra cotas para o povo negro nos concursos públicos. Curiosamente, nestas eleições é o acusado quem traz o caso ao debate público, ao ocupar quase metade de seu programa eleitoral da quinta-feira 20 de outubro. E o faz na condição de acusador, pasmem!

E os acusados, quem são? O Professor José Raimundo Fontes, negro, ex-prefeito e também candidato, junto com o Partido dos Trabalhadores, que tem, em sua estrutura orgânica, um Setorial de Combate ao Racismo. É o espaço onde lideranças dos movimentos negros, estudiosos e militantes, em debate permanente, empunham bandeiras de luta convertidas em políticas públicas de promoção da igualdade racial e de combate ao racismo, colocadas em prática nos governos liderados por petistas, como é o caso de Vitória da Conquista.

Não se trata de alguma contradição demarcadora da distância entre discurso e prática, mas de um embuste eleitoralesco com pitadas de demagogia e cinismo. A “denúncia” e a acusação foram veiculadas no programa de tv do candidato em tom dramático, com um depoimento cuidadosamente editado do pai da vítima. A propaganda do candidato petista não abordou o assunto em seus programas de rádio e tv.

Nem vou discutir as motivações do pai, admitindo a justeza do incômodo da família em ver a tragédia exposta ao público mais uma vez. Mas entre as dezenas de áudios do radialista-candidato que circulam com as sandices ditas em seu programa, estava o seu comentário grotesco, quando o fato virou notícia: “nós estamos a anunciar vários tipos de violência, mas essa modalidade nós não tínhamos ainda tomado conhecimento. Uma criança negra. Raptar uma criança negra pra quê?”

Na cabeça de muita gente que não reconhece o racista dentro de si mesmo, o “normal” é negro sequestrador, e não vítima de sequestro. Seria este, o entendimento do radialista-candidato acusador? Cabe bem a um herdeiro de família tradicional do funesto coronelismo nordestino que, noutros tempos, capou quando não matou quem contrariasse os antigos donos da terra e do poder armado em tropas de jagunços. Uma rápida visita ao passado do Sertão da Ressaca traz revelações preciosas para se compreender a questão em perspectiva histórica, para muito além do caso específico.
Opressores e oprimidos trazem, cada um, suas marcas ancestrais. O inédito e, porque não dizer, exótico, da denúncia, é a pretensão de inverter as coisas a partir de uma tentativa risível de criar comoção. Na Bahia de Octávio Mangabeira, onde torturador já processou torturado, é só mais um absurdo a corroborar outros tantos precedentes bizarros.

O Professor Flávio Passos, liderança negra da cidade e estudioso do tema, não tem dúvidas: “ele não se referiu apenas àquela vítima, mas a qualquer criança negra. Ele não a xingou ou teve fala preconceituosa para com ela. Foi algo bem pior, foi racismo, sim.” Flávio e boa parte dos ativistas negros se referencia teoricamente no antropólogo e também professor congolês radicado no Brasil, Kabenguelê Munanga. Segundo Munanga, “o racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais, lingüísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo a qual ele pertence.” O estranhamento do radialista-candidato tem explicação, portanto, e está longe de ser fato inédito ou incomum.

O comentário de anos atrás só não foi mais infeliz do que a decisão de reabrir agora a discussão em forma de ataque contra Zé Raimundo que, além de afirmar sua origem social e étnica, atuou em defesa do povo negro quando foi prefeito. Ao analisar a investida do radialista-candidato, Flávio Passos bota o dedo numa ferida que a cidade precisa curar: “ele poderiasimplesmente perguntar por que sequestrar uma criança pobre, mas não”. Passos conclui corretamente que a prática do racismo está no uso de um meio de comunicação para induzir o ouvinte a entender que pessoas negras estariam do outro lado da história, como sequestradoras, e não como sequestrados. O parágrafo 2o. do artigo 20 da Lei 7.716, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, prevê penas ainda mais duras quando isso acontece.

É o velho coronelismo tentando voltar, agora em frequência modulada. É um caso digno de estudos acadêmicos, exemplo lapidar do que alguns pesquisadores da comunicação conceituam como coronelismo eletrônico. Sinais de cacoetes provincianos de um certo tipo de liderança subalterna que se oferece em vassalagem, como se vê nesses últimos dias de propaganda eleitoral em relação a figuras políticas de maior expressão. Vitória da Conquista merece mais do que isso.

*Ernesto Marques é jornalista e radialista

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