Representantes que não nos representam por Roberto Sansón Mizrahi
Em uma democracia representativa, aqueles que governam o fazem em nome e à conta dos interesses, das necessidades e das emoções dos que os elegem. Não obstante, um dos mais críticos e frequentes desafios que as democracias contemporâneas enfrentam é que os representantes acabam não representando apropriadamente seus eleitores:
não se respeita o rumo e as prioridades escolhidas pelos representados,
comprometendo, com esse desvio do mandato solicitado, o sustento
político dos governos. Essa brecha de representatividade pode ter várias
explicações.
A mais benévola é que certos governos não sabem se
comunicar adequadamente com sua base populacional, o que faz com que
setores que estão sendo servidos e levados em conta ao tomarem-se as
decisões estratégias não percebam essa afinidade no plano dos fatos. Se
fosse este o caso, as soluções seriam relativamente simples e passariam
por melhorar canais e conteúdos comunicacionais. Lamentavelmente, há
muitos casos onde não é esse o problema, e sim que os representantes
simplesmente não nos representam. Pior ainda, em vários casos de
representatividade questionada, utiliza-se a comunicação e a publicidade
para procurar que os representados percebem o menos possível que não se
governa defendendo seus interesses, necessidades e emoções.
Pode-se dizer que a forma como se percebe a qualidade
representativa está mediada por um tipo de véu comunicacional: em
algumas ocasiões, esse véu impede de reconhecer uma plena e autêntica
representatividade dos que nos representam e, em outras, possibilita que
os que acabam não nos representando nos façam crer que o estavam
fazendo. Está claro que entre esses extremos – plena ou nenhuma
representatividade – existe toda uma gama de graus de representatividade
que é o que ocorre com maior frequência.
Armadilhas nas democracias representativas
O funcionamento de uma democracia representativa
assenta-se na divisão de poderes, na regência de normas e regulações e
conta com uma variedade de mecanismos de monitoramento e controle. Este
marco institucional é essencial para canalizar potencialidades e ordenar
a convergência de tantos e tão diversos interesses em jogo.
Supõe-se que todas as pessoas e organizações sejam
iguais diante da lei e, portanto, que os distintos interesses são
considerados sem que lhes sejam outorgados privilégios nem prebendas,
mas isso nem sempre é respeitado. Mais ainda, são demasiados os casos
onde os que dispõem de maior poder impõem seus interesses sobre os dos
demais. É que existem armadilhas nas democracias representativas que são
muito difíceis de encarar. Algumas dessas armadilhas são enunciadas a
seguir.
O viés financeiro
É óbvio que o poder econômico não se distribui
igualitariamente. Isto é resultado de um longo processo de concentração
que se apresenta em quase todos os países do mundo. O mais dramático
desse processo são duas de suas principais características: por um lado,
a concentração, longe de ser reduzida, tende a se ampliar
aceleradamente e, por outro lado, é o setor financeiro, a intermediação
financeira, quem concentra cada vez mais um maior poder em relação a
todos os demais atores da economia real. O único ator que, com sérias
limitações, poderia se erguer para mudar essa tendência e transformar o
rumo sistêmico é o Estado cuja ação é conduzida por governos surgidos do
funcionamento de uma democracia representativa. Eis a armadilha em que
caímos: aderimos a um sistema de governo baseado na democracia
representativa, mas os que têm maior poder para incidir nas decisões
governamentais são setores cada vez mais concentrado do mundo financeiro
que, sob sua supremacia, conseguem alistar outros grupos afins que
lucram servindo, direta ou indiretamente, a esses interesses.
Dois esclarecimentos imprescindíveis antes de seguir
avançando. Por um lado e ainda com todas as suas imperfeições e
armadilhas, não conheço – até hoje – um melhor sistema de governo que a
democracia representativa. Isto não significa permitir aquilo que
desvirtua a representatividade democrática, mas obriga a nos envolvermos
com mais determinação e compreensão na dinâmica democrática procurando
levantar uma a uma – ou todas juntas – as mais perigosas armadilhas que
impedem de construir trajetórias de desenvolvimento justo e sustentável.
O outro esclarecimento é sobre um erro que
frequentemente cometemos: o sistema financeiro não é um universo
homogêneo, mas compreende uma diversidade de atores, alguns muito
necessários para poder financiar as atividades da economia real e
outros, em vez, dedicados a uma cruenta especulação financeira: atuam
como abutres lucrando com as dificuldades dos demais. Se bem disponham
de vultosas somas e se desloquem velozmente de um mercado a outro, os
especuladores constituem uma minoria que não pode defender seus
interesses em campo aberto: para incidir sobre as políticas públicas,
necessitam camuflar-se em alianças com outros atores. Alguns aliados são
cúmplices da especulação, mas outros acabam se somando alienados por
antagonismos que não os diferenciam dos próprios grandes especuladores.
O viés midiático
É indubitável a influência que os meios de comunicação
exercem sobre a opinião pública; dia após dia decidem o que é importante
ver, conhecer, enfrentar, ignorar. Determinam, ou quando menos
condicionam, a agenda econômica e política. Daí que os fatores de poder
busquem dispor de canais midiáticos afins para fazer valer suas
perspectivas, posições, interesses.
Se houvesse uma grande diversidade de meios, cada um com
afinidades explícitas para com determinadas correntes políticas e
grupos de poder, não se poderia falar que existe um viés midiático
porque todas as opiniões e perspectivas poderiam ser expressadas e assim
enriquecer um construtivo diálogo democrático. Não obstante, quando a
propriedade dos meios é deixada ao jogo do mercado, resta claro que os
que dispõem de maiores recursos terão maior capacidade que os demais
para tomar controle dos meios mais importantes. Este é um fato que
ocorre em muitos países onde se estabelecem grandes oligopólios
midiáticos que incidem desproporcionadamente sobre a opinião pública e a
agenda política e econômica.
Esta situação deveria ser considerada anômala em uma
democracia representativa, mas termina sendo moeda corrente. Corresponde
a nossos representantes buscar formas de superar o viés midiático; uma
das mais transcendentes soluções é a aprovação de normativas que regulem
o espaço midiático assegurando que todo o espectro de opiniões e
interesses possa se expressar em igualdade de condições.
O viés governamental
Por outro lado, dá-se também, com frequência, que os
governos da vez usem e abusem para seu próprio proveito dos recursos
públicos que administram. As ditaduras levaram ao extremo o controle dos
meios e se serviram deles para desinformar e manipular a opinião
pública. Ainda que com muitíssima menor virulência, alguns governos
surgidos de processos democráticos fizeram o seu. Em verdade, cada
partido político busca tirar proveito de sua passagem pela função
pública. Em certas ocasiões, um mesmo partido que tem responsabilidades
de governo local e utiliza discricionariamente os recursos públicos
disponíveis em seu nível, critica seu opositor que governa em nível
nacional por praticar a mesma política que utiliza em nível local. Logo,
a situação política muda e as acusações se invertem.
Existem normativas que regulam o uso dos recursos
púbilcos e também órgãos de controle que devem velar por sua justa
aplicação. Não obstante, a capacidade de evadir essas regulações parece
ser moeda corrente em todas as administrações.
Uma situação delicada e complexa se apresenta quando
grandes oligopólios midiáticos controlam a informação e a investigação
jornalística. Como somente os governos estão em condições de
enfrentá-los, a confrontação entre ambas as forças faz que ao viés
midiático se oponha o viés governamental. Enquanto perdurar essa
polarização, será difícil transformar um viés independentemente do
outro. A resposta mais construtiva passa pela democratização do acesso e
de conteúdo desmontando simultaneamente o viés midiático e o viés
governamental.
O financiamento da política
Tem havido múltiplas tentativas de regular o
financiamento da política de modo que os grandes aportadores não
obtenham privilégios em troca de suas contribuições. Isto é bem difícil
de evitar já que, inclusos os casos onde existem recursos públicos para
financiar os partidos, o plus que se obtém de aportadores diretos pode
representar grandes diferenças operacionais entre um partido ou outro.
Essas diferenças se expressam com maior virulência em fases de campanhas
eleitorais quando se aumenta a dependência dos partidos com os grandes
meios que privilegiam em sua cobertura aos que têm afinidades com eles.
Financiar a política também implica resolver como se
sustentam os políticos, isto é, os que nos representam. Quando são
eleitos, seus salários surgem do orçamento desse nível de governo, mas,
enquanto não ocupam postos públicos, não fica sempre claro como se
financiam. Isto é mais grave para os que poucas vezes são eleitos. Para
algumas correntes políticas, o setor público é avaliado como um botim a
conquistar, como um sistema para financiar a militância.
Uma infinidade de perguntas buscam apropriadas
respostas. Como surgem os políticos?; como emergem no seio de uma sorte
de agremiações de políticos profissionais?; quantos podem se dedicar por
inteiro a seus labores políticos e quantos trabalham em atividades não
políticas que lhes asseguram renda?; como correm com vantagens aqueles
políticos que pertencem a famílias abastadas?; como convivem com a
corrupção e a outorga de prebendas e privilégios? Que graus de liberdade
e imparcialidade conseguem ter os que são subsidiados por aparatos
corporativos, midiáticos, sindicais ou religiosos?
E nesse complexo contexto, como se formam os políticos e
como se consegue melhorar a qualidade dos representantes? Mais ainda,
em que termos se mede a qualidade política: como habilidade para gerir?;
como destreza para gerar acordos?; como capacidade de ganhar eleições?;
como engenhosidade para camuflar interesses? Têm melhor desempenho os
políticos profissionais que acumulam experiências e relações? As castas
fechadas que se perpetuam, asfixiam a renovação e a emergência de novas
perspectivas?; empobrecem a diversidade?; limitam as opções em defesa de
seus próprios minúsculos interesses?; estão mais expostos à submissão e
à chantagem por delitos ou ações mal havidas?
Desvirtuação do debate político
O debate eleitoral se apresenta como um elemento-chave
para conhecer suas posições, as propostas, a criatividade e a destreza
dos que solicitam nossa representação; é uma oportunidade para conhecer e
compreender o que acontece; para captar a personalidade dos que
competem por nosso voto. Não obstante, e com frequência, o debate
político fica esvaziado de conteúdos e de significação.
Em lugar de informar e fazer conhecer, o debate e o
próprio processo eleitoral passa a ser uma operação de marketing sobre
nomes e "marcas". O eleitor é manipulado de forma parecida a como o é o
consumidor que enfrenta uma diversidade de ofertas de produtos: pesam
muito mais as embalagens, as mensagens subliminares, as marcas e as
evocações que, por meio de artimanhas, procura associar com os
candidatos/produtos; ficam atrás, bem atrás, se é que acaso permanecem,
as propostas, as metodologias de ação, as utopias referenciais, os
rumos, as trajetórias, as estratégias. Em lugar de contrastar visões,
programas, projetos e formas de funcionar, as preferências se sustentam
em empatias impostadas, teatralidades orquestradas, reiteração de lemas e
consignas; é um constante deslizar para cenários de fantasia onde
apitos, balões, cortinas musicais, gestos e sentimentos preparados
procuram remedar situações de "alegria", de "felicidade", de
"satisfação", de cuidadosamente fabricadas poses "informais" e
"espontâneas".
Estamos diante de um penoso esvaziamento da discussão
substantiva, da hierarquização da política, do debate sobre ideias e
propostas. Em seu lugar, erigem-se as campanhas publicitárias, os
consultores de imagem, os vendedores de ilusões, os especialistas em
ganhar a qualquer preço: a quem importa que se acuda ao engano, à
mentira, à chicana! Fica consagrada a manipulação de consciências e da
quantia dos recursos disponíveis que são, em definitivo, os que permitem
contratar esse exército de produtores e ilusionistas que transformam a
política em teatro e sabem camuflar interesses que não poderiam ser
defendidos abertamente. De outra parte, quem monitora o cumprimento das
promessas e mentiras eleitorais?; a quem importa as prestações de contas
quando em poucos anos uma nova equipe de filmagem voltará a blindar-nos
das consequências de nossos procederes e oferecerá a maquiagem que
oculta a palidez de penas, tristezas, injustiças e traições?
Desassossego e épica
O desengano e o desassossego são encarados com trabalho,
com novas buscas, com o esforço de justos e a determinação de valentes,
com o compromisso de compreender e construir mais além de supremacias e
do imposto pensamento hegemônico.
É a ação concertada de milhares que alimenta e renova a esperança; o pensamento estratégico protege da desorientação.
Diante do cambalacho marqueteiro, requeremos estabelecer
utopias referenciais capazes de melhor alinhar os múltiplos interesses e
diversas necessidades do conjunto social. O reto pensamento precede ao
reto proceder. Que ninguém se engane: é altíssimo o preço que haveremos
de pagar se renunciarmos a compreender, organizar, gerir, refletir,
retificar erros, ajusto o rumo, aproximar o futuro.
Nem lamento, nem olhar atordoado. É que segue em jogo o porvir distante e os caminhos do presente.
O desafio é forte; terá que ser épica nossa resposta.
Artigo originalmente
publicada na revista online Opinión Sur. http://opinionsur.org.ar
Roberto Sansón Mizrahi, economista, planificador urbano regional, co-editor de Opinión Sur, autor de artículos, columnas periodísticas y libros, el último de los cuales se titula Un País para Todos de la Colección Opinión Sur. Es fundador de Sur Norte Inversión y Desarrollo, South North Development Initiative y Grupo Esquel. Consultor en países de América Latina y de Africa en temas de desarrollo sustentable, asistencia a pequeñas y micro empresas, movilización productiva de la base de la pirámide social, desarrollo local, estrategias para abatir desigualdad y pobreza.