Aldeia Nagô
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Rompendo Os Limites do Possível por Átila Roque

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura

O FSM já cumpriu a sua missão inicial. Reduziu o Fórum
Econômico de Davos a sua pequenez simbólica, expressão de um auto-contentamento
neoliberal incapaz de escapar do círculo de giz conceitual, que um dia almejou o
fim da história e a vitória absoluta do mercado.


O Fórum Social Mundial realiza neste final de semana a sua oitava
edição, demonstrando que é possível manter viva e pulsante a energia trazida
pelo processo desde a primeira edição do evento em 2001, em Porto Alegre. Ao
longo desse período, o processo FSM ganhou densidade política, espalhou-se pelo
mundo e revelou a tremenda capacidade inovadora contida no chamado movimento por
uma outra globalização. Os eventos anuais, os fóruns regionais, nacionais e
temáticos, milhares de ações, lutas e campanhas – algumas locais e nacionais e
outras efetivamente globais -, realizadas sob o guarda-chuva do FSM, legitimaram
o processo como expressão da diversidade dos movimentos que se contrapõem à
globalização neoliberal.

Os primeiros três anos em Porto Alegre
surpreenderam por sua novidade, pela capacidade de mobilizar milhares de pessoas
e pelo impacto político no confronto com a globalização
econômico-financeira. Depois ganhou raízes na Índia, em 2004, quando
realizou o primeiro evento mundial fora do Brasil, na cidade de Mumbai. A Índia
foi um choque cultural de grandes proporções que contribuiu imensamente para
expandir o universo de pertencimentos do FSM. A presença massiva dos movimentos
de pobres e excluídos, dos discriminados e submetidos, cores e sabores de um
país pouco conhecido do resto do mundo, reforçou em muitos a convicção de que o
destino do FSM era mesmo se espalhar pelo mundo, aceitar a diversidade das lutas
e dos movimentos, sem abdicar dos preceitos expressos na sua Carta de
Princípios.

Após um retorno a Porto Alegre, em 2005, o FSM parte para a
reinvenção de novos léxicos organizativos e se propõe, em 2006, como evento
policêntrico, realizando fóruns mundiais em Caracas, na Venezuela, em Bamako, no
Mali, e em Karachi, no Paquistão. Em 2007, o evento mundial volta a se
concentrar em apenas um país, desta vez no Quênia, na África. Em Nairóbi, o FSM
não apenas realiza o que pode ser considerado o maior evento da sociedade civil
mundial jamais organizado na África, mas – ainda mais importante do que isso –
resgata o continente e as suas lutas para a linha de frente das lutas sociais
por um outro mundo.

Este ano, mais uma vez, o FSM inovou em seu formato e
radicalizou a aposta na descentralização, na capacidade de iniciativa das
organizações das sociedades civis nacionais e na mundialização da ação política,
sem sacrifício das diversidades locais. Ao convocar para esta semana uma Jornada
de Ação e Mobilização Global e escolher o dia 26 de janeiro com o Dia de Ação
Global, o conselho internacional do FSM confirma a sua aposta em uma outra
maneira de fazer política em tempos de globalização. Pelo mundo inteiro serão
centenas, talvez milhares, de eventos, manifestações, concertos, debates – todos
conectados e mobilizados em torno da idéia de que é preciso expressar o
descontentamento e explorar as alternativas que brotam da vivência e das lutas
sociais.

Finalmente, gostaria de ressaltar algumas das características do
processo FSM e dos desafios que estão colocados, na minha perspectiva, diante de
todas que se identificam com o que Boaventura Santos chama de "movimentos
contra-hegemônicos":

• Processo/evento em estado permanente de
mudança. Muda-se tudo o tempo inteiro no processo FSM desde o primeiro evento.
Com isso, o Fórum se reconhece e quer ser reconhecido como espaço de invenção
permanente de novas formas de fazer política e experimentação. Contra o velho
mundo da política e da ideologia neoliberal não se trata de erguer outro dogma,
mas sim reconhecer a diversidade e disputar os conceitos de justiça social,
direitos e democracia;

• Aposta deliberada na mundialização das lutas por
outra globalização. As lutas sociais modernas são potencialmente mundiais, mesmo
quando localizadas, o que renova o conceito de solidariedade internacional a
partir de processos de conhecimento e auto-reconhecimento, entre atores
sociais distintos, que criam novas identidades políticas, plurais e
multiculturais;

• Catalisador da revolta e do protesto. O processo fórum
demonstrou ser capaz de catalisar um sentimento de revolta e protesto que se
expressa desde a década de 1980 nas diferentes lutas contra as políticas
neoliberais e a militarização. O exemplo mais impressionante disso foi a
mobilização mundial contra a guerra do Iraque no dia 15 de fevereiro de 2003,
quando cerca de 11 milhões de pessoas se mobilizaram em cerca de 800 cidades do
mundo. Na ocasião, o New York Times descreveu a sociedade civil global
como sendo o "a segunda superpotência" no mundo;

• Ampliou o campo do
possível e fortaleceu o sentido utópico da ação política. O FSM faz parte de um
processo – expresso nas manifestações de Seattle e em muitas outras
manifestações da revolta global – de ruptura com o mantra da falta de
alternativas, do modelo único, do fim da história e todas as teorias
paralisantes e conformistas difundidas pelas mídias dominantes. Ao dar
visibilidade às lutas e propostas nascidas de mobilizações e lutas de
resistência em diferentes partes do mundo, o processo FSM amplia o campo do
possível e resgata e alimenta as utopias;

• Incorporou à esfera pública
global setores e movimentos antes excluídos ou marginalizados, ampliando e
diversificando os circuitos de conversação política da chamada "sociedade civil
global". A diversidade afirmada como princípio é também encontrada entre os
atores que participam do FSM. A mundialização permitiu a conexão entre lutas
sociais que tinham o seu campo de expressão reduzido aos territórios ou
temáticas específicas;

• "Woodstock de esquerda". O FMS é sim uma festa,
um lugar de celebração e trocas multiculturais, surpresas e descobertas de novas
formas de expressão políticas, artísticas, religiosas, comportamentais, entre
outras. O FSM é antes de tudo provocação simbólica, espanto com o novo,
reconhecimento (auto-reconhecimento) do velho, revolução cultural no
sentido pleno;

• Protagonismo do Sul. O FSM trouxe para o centro do
debate político global uma perspectiva de luta social nascida nos países
localizados no Sul político do mundo, nos países submetidos à hegemonia do
Norte, dos países ricos. O fato de uma iniciativa deste porte nascer no Brasil –
e a partir de Porto Alegre chegar a Mumbai, Karachi, Bamako, Caracas, Nairóbi,
apenas para citar os lugares que receberam os eventos mundiais – é por si só um
acontecimento político de grandes proporções. Mas o FSM também mobilizou o
chamado "Sul" que vive no Norte – as lutas sociais dos excluídos da Europa e dos
Estados Unidos -, elevando o patamar das relações políticas do tipo Norte-Sul.
Os eventos do FSM na Europa e, mais recentemente, nos Estados Unidos, revelam o
potencial do "processo FSM" para renovar a vida política nos países
ricos.

Enquanto isso, em meio à neve, os participantes do Fórum de Davos
mal conseguem domar os próprios demônios e prometem passar os próximos dias
falando da crise financeira que, mais uma vez, "assusta o mercado", esse animal
sem rosto ou coração que se presta aos mais puros jogos do poder hegemônico.

Por tudo isso, eu acredito que o FSM já cumpriu a sua missão inicial.
Reduziu o Fórum Econômico de Davos a sua pequenez simbólica, expressão de um
auto-contentamento neoliberal incapaz de escapar do círculo de giz conceitual,
que um dia almejou o fim da história e a vitória absoluta do
mercado.

Agora é preciso continuar a acreditar que a mudança e as
revoluções precisam ser inventadas a cada dia através das lutas sociais e do
conflito. O mundo não se encontra dividido entre anjos e demônios. Deuses e
diabos, sejam lá os nomes que tenham, convivem faceiros entre nós, às vezes até
esquecidos deles mesmos. Apenas a participação plena de todas as pessoas, com
suas contradições, erros e acertos, cores música, inquietações e sonhos, será
capaz de destilar as escolhas que vão delinear o mundo em que os nossos filhos e
netos viverão. Um mundo que, espero, seja colorido e diverso como Porto Alegre,
Mumbai e Nairóbi. Um mundo que o processo do FSM tem sido capaz de mostrar que é
possível.

Átila Roque é membro do Colegiado de Gestão do Instituto de
Estudos Socioeconômicos (INESC)

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