Rússia–Irã–China: Todos por um e um por todos? Por Pepe Escobar
Artigo publicado originalmente no Brasil 247
Embora isso talvez ainda não seja óbvio a Washington, uma guerra dos Estados Unidos contra o Irã será entendida como um ataque também à Rússia e à China
Rússia e Irã estão na vanguarda de um processo multidimensional de integração eurasiana – o mais crucial dos desdobramentos geopolíticos do jovem século XXI.
Ambos são membros do primeiro escalão dos BRICS+ e da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Ambos estão seriamente envolvidos na liderança da Maioria Global visando à criação de um mundo multipolar multinodal. E ambos assinaram em fins de janeiro último, em Moscou, uma detalhada e ampla parceria estratégica.
O segundo governo do Presidente Donald Trump, partindo da palhaçada da “pressão máxima” empregada pelo bombástico Dono do Circo em pessoa, parece ignorar esses imperativos.
Coube ao Ministério das Relações Exteriores russo reintroduzir racionalidade naquilo que vinha rapidamente se convertendo em uma competição de berros fora de controle: essencialmente, Moscou, juntamente com sua parceira Teerã, simplesmente não irá aceitar ameaças externas de bombardear a infraestrutura nuclear e energética do Irã, insistindo na busca de soluções negociadas viáveis para o programa nuclear da República Islâmica.
E então, com a rapidez de um relâmpago, a narrativa de Washington mudou. O enviado especial dos Estados Unidos para Assuntos do Oriente Médio, Steven Witkoff – não exatamente um Metternich e anteriormente um defensor linha-dura da “pressão máxima – passou a falar da necessidade de “construir confiança” e até mesmo de “resolver as divergências”, implicando que Washington começou a “considerar seriamente, segundo os proverbiais “altos funcionários”, conversas indiretas sobre assuntos nucleares.
Essas implicações se converteram em realidade na tarde de segunda-feira, quando consta que Trump pegou de surpresa o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu com o anúncio de “uma reunião muito grande” com autoridades iranianas nos próximos dias. Mais tarde, Teerã confirmou a notícia, com o anúncio feito pelo chanceler iraniano Abbas Araghchi, de que ele se engajaria em negociações nucleares indiretas com Witkoff, em Omã, no sábado.
É como se Trump, pelo menos, tivesse dado ouvidos aos argumentos expostos pelo Líder Supremo da República Islâmica, o Aiatolá Ali Khamenei. Mas o fato é que ele pode mudar de ideia de uma hora para a outra à la Trump New York.
Os pontos mais específicos do eixo Rússia–Irã–China
Os antecedentes indispensáveis para decifrar a charada do “a Rússia irá ajudar o Irã?” podem ser encontrados nas tão diplomáticas conversas que tiveram lugar no Clube Valdai, em Moscou.
Os pontos principais foram colocados por Alexander Maryasov, embaixador da Rússia no Irã de 2001 a 2005. Maryasov afirma que o tratado Rússia-Irã não é apenas um marco simbólico, mas que “serve como mapa de percurso para o avanço de nossa cooperação em praticamente todas as áreas”. Trata-se mais de um “documento de relações bilaterais” – não sendo um tratado de defesa.
O tratado foi extensivamente discutido – e em seguida aprovado – como um contraponto “à intensificação das pressões militares, políticas e econômicas exercidas por países ocidentais sobre tanto a Rússia como o Irã”.
O principal embasamento lógico do tratado foi a necessidade de lutar contra o tsunami de sanções.
Embora não se constituindo em uma aliança militar, o tratado detalha as providências previamente acordadas caso haja um ataque ou ameaças à segurança nacional de qualquer uma dessas nações – como, por exemplo, as irresponsáveis ameaças de Trump contra o Irã. O tratado define também a vasta abrangência da cooperação nas áreas tecnicomilitar e de defesa, incluindo, o que é da máxima importância, conversas regulares sobre inteligência.
Maryasov identificou os principais pontos de segurança como sendo o Cáspio, o Sul do Cáucaso, a Ásia Central e, por último mas não menos importante, o Oeste Asiático, incluindo a amplitude e o alcance do Eixo da Resistência.
A posição oficial de Moscou sobre o Eixo da Resistência é uma questão extremamente delicada. Por exemplo, olhemos para o Iêmen. Moscou não reconhece oficialmente a resistência iemenita encarnada no Ansarallah, que tem sua capital em Sanaa; ao contrário, tal como Washington, a Rússia reconhece o governo-fantoche de Aden, que, na verdade, funciona em um hotel cinco estrelas de Riad, patrocinado pela Arábia Saudita.
No último verão, duas delegações iemenitas diferentes visitaram Moscou. Eu mesmo pude testemunhar que a delegação de Saana teve tremendos problemas para conseguir marcar reuniões oficiais.
É claro que predomina uma simpatia pelo Ansarallah nos círculos militares e de inteligência de Moscou. Mas, tal como confirmado em Sanaa por um membro do Alto Conselho Político, esses contatos ocorrem por intermédio de “canais privilegiados”, e não de forma institucional.
O mesmo se aplica ao Hezbollah do Líbano, que foi um importante aliado da Rússia na expulsão do ISIS e de outros grupos extremistas islâmicos durante a guerra na Síria. Quando se trata da Síria, a única coisa que realmente importa para a Moscou, depois que extremistas ligados à Al-Qaeda tomaram o poder em Damasco em dezembro último, é manter as bases russas em Tartous e Hmeimim.
É fora de dúvida que o debacle sírio foi um revés de extrema gravidade para Moscou e Teerã, agravado ainda mais pela incessante escalada de Trump quanto ao programa nuclear do Irã e por sua obsessão com a “máxima pressão”.
A natureza do tratado Rússia-Irã difere substancialmente da do tratado Rússia-China. Para Pequim, a parceria com Moscou é tão sólida e se desenvolve de forma tão dinâmica que eles sequer precisam de um tratado: “eles já têm uma “parceria estratégica ampla”.
O Chanceler chinês Wang Yi, em sua recente visita à Rússia, após cunhar a pérola – “aqueles que vivem no século XXI, mas pensam em termos de blocos da Guerra Fria e jogos de soma zero estão atrasados no tempo” – resumiu de forma clara as relações sino-russas em três vetores: os dois gigantes asiáticos são “amigos eternos e jamais inimigos”; igualdade e cooperação mutuamente benéfica; não-alinhamento com blocos; não- confrontação; e não-hostilização de terceiros. Então, enquanto temos um tratado Rússia-Irã, entre China e Rússia e China e Irã, temos, essencialmente, estreitas parcerias.
Observe-se, portanto, os quintos exercícios navais conjuntos Rússia–Irã realizados anualmente, que tiveram lugar no Golfo de Omã, em março. Essa sinergia trilateral não é nova, ela vem-se desenvolvendo há anos.
Mas seria descuidado caracterizar esse triângulo Primakov aperfeiçoado, o RIC (Rússia–Irã–China, em vez de Rússia–Índia–China) como uma aliança. A única “aliança” que existe hoje no tabuleiro geopolítico é a OTAN – uma organização belicista composta de vassalos intimidados encurralados em bando pelo Império do Caos.
Muda a cena para uma outra irresistível pérola de jade de Wang Yi: “Os Estados Unidos estão doentes, mas forçam outros a tomar o remédio”. Conclusões: a Rússia não vai mudar de lado, a China não será cercada e o Irã vai ser defendido.
Quando o novo triângulo Primakov se encontrar em Pequim
Na discussão de Valdai, Daniyal Meshkin Ranjbar, professor assistente do Departamento de Teoria e História das Relações Internacionais na Universidade RUDN, sediada em Moscou, colocou um ponto de importância fundamental: “Pela primeira vez na história, as perspectivas diplomáticas da Rússia e do Irã convergem”. Ele está se referindo aos paralelos óbvios entre as políticas oficiais: o “pivotar para o Leste” da Rússia e o “olhar para o Leste” do Irã.
Todas essas interconexões, obviamente, passam desapercebidas pelo novo governo de Washington, como também o fato de que a bombástica retórica Trump–Netanyahu tem zero de base na realidade – embora o Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos tenha admitido que o Irã não esteja construindo uma bomba nuclear.
O que nos traz ao Grande Quadro.
O Dono do Circo – pelo menos até que ele mude de novo de opinião – está, essencialmente trabalhando em um acordo triangular, supostamente oferecendo à Rússia uma estrutura de transporte, acesso a exportações de grãos no Mar Negro e a retirada dos bancos russos da lista de sanções do SWIFT, para que ele possa fazer o seu “pivotar” para em seguida atacar o Irã (incluindo-se aí o prazo final dado a Teerã).
E caso a Rússia defenda o Irã, nada feito.
Isso é tão desonesto quanto a pressão máxima ao estilo da Máfia, a “oferta que não dá para recusar”. O Chanceler Adjunto russo Sergey Ryabkov – um diplomata excepcionalmente capaz – destruiu toda essa construção lógica: “A Rússia não pode aceitar a proposta americana de pôr fim à guerra na Ucrânia em sua forma atual porque essa proposta não resolve os problemas que Moscou vê como sendo as causas do conflito”. Embora Moscou “leve muito a sério o modelo e as soluções propostas pelos americanos”.
Enquanto o ângulo russo da triangulação de Trump cambaleia, Teerã não se limita a assistir o rio correr. A forma pela qual o Irã, durante décadas, se adaptou ao tsunami de sanções gerou um firme corpo de conhecimentos hoje compartilhado em sua inteireza com Moscou, como parte de sua cooperação cada vez mais profunda sacramentada no tratado.
Apesar de toda a volatilidade de Trump, as vozes do Beltway não contaminadas pelo sionismo vêm, lenta mas firmemente, defendendo a visão racional de que uma guerra contra o Irã seria absolutamente suicida para o próprio Império. Volta a surgir a possibilidade de que as saraivadas verbais do Trump 2.0 talvez venham a abrir caminho para um acordo temporário que será exagerado e floreado – afinal, essa é uma guerra de narrativas – a ponto de soar como uma vitória diplomática.
Já se aposta que o único líder no planeta capaz de fazer com que Trump entenda a realidade é o presidente russo Vladimir Putin, em seu próximo telefonema. Afinal, foi o Dono do Circo em pessoa quem criou a nova versão do drama do “Irã nuclear”. O RIC – ou o novo triângulo Primakov – tratou conjuntamente da questão em uma importantíssima reunião recentemente realizada em Pequim que, por discrição, não recebeu qualquer publicidade, tal como confirmado por fontes diplomáticas.
Essencialmente, o RIC desenvolveu um mapa de percurso para o “Irã nuclear”. Esses são os pontos principais:
- Diálogo. Nenhuma escalada. Nenhuma “pressão máxima”. Avanço passo-a-passo. Construção de confiança mútua.
- Enquanto o Irã reafirma seu veto ao desenvolvimento de armas nucleares, a tão debatida “comunidade internacional”, na verdade o Conselho de Segurança da ONU, reconhece, mais uma vez, o direito iraniano à energia nuclear para uso pacífico nos termos do Tratado de Não-Proliferação.
- De volta ao Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA) – a ser reinicializado. Para fazer com que Trump aceite voltar a conversar, será extremamente difícil convencê-lo a aceitar essa a reinicialização.
Esse mapa de percurso foi ratificado durante a segunda rodada das conversas trilaterais do RIC, ocorrida em Moscou, na terça-feira, onde autoridades das nações aliadas discutiram os esforços colaborativos visando a tratar dos desafios enfrentados pelo Irã.
Aquela cúpula em Moscou
No pé em que as coisas andam, esse mapa de percurso é apenas isso: um mapa. O ofegante eixo sionista, de Washington a Tel Aviv, continuará a insistir em que o Irã, caso atacado, não venha a contar com o apoio da Rússia, e que mais uma rodada de incessante “pressão máxima” forçará o Irã a, em algum momento, ceder e abandonar seu apoio ao Eixo da Resistência.
Tudo isso, mais uma vez, fica longe da realidade. Para Moscou, o Irã é uma prioridade geopolítica absoluta. Para além do Irã, mais a leste, está a Ásia Central. A fantasia obsessiva do sionismo, de mudança de regime em Teerã, mascara a intenção da OTAN de penetrar na Ásia Central, ali construir bases militares e, ao mesmo tempo, bloquear diversos projetos estrategicamente cruciais da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR). O Irã é tão essencial à política externa de longo prazo da China quanto o é para a Rússia.
Não é por acidente que China e Rússia irão se encontrar em nível presidencial – Vladimir Putin e Xi Jinping – em uma cúpula a ter lugar em Moscou por volta de 9 de maio, o Dia da Vitória na Grande Guerra Patriótica. Eles irão analisar em detalhe o próximo estágio das “mudanças nunca vistas em cem anos”, tal como formuladas por Xi a Putin no divisor de águas que foi o verão de 2023 em Moscou.
Eles, é claro, discutirão os sonhos do Dono do Circo de pôr fim a uma Guerra Eterna só para começar outra: o espectro de um ataque Estados Unidos-Israel a seu parceiro estratégico – complementado pelo contragolpe de bloquear o Estreito de Hormuz (por onde transitam 24 milhões de barris de petróleo por dia); com o preço do barril de petróleo disparando para 200 dólares, ou ainda mais, e o colapso da enorme pilha de 730 trilhões de dólares em derivativos na economia global.
Não, Presidente Dono do Circo: você não tem as cartas.
Tradução de Patricia Zimbres
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor