Segurança ou liberdade? por Contardo Calligaris
As proibições protegem nossa segurança; mas qual liberdade é certo sacrificar para sermos mais seguros?
Passei
a semana em Nova York e devorei "Só Garotos" (Companhia das Letras), o
livro em que Patti Smith, poetisa, artista e roqueira, conta a história
de seu amor por Robert Mapplethorpe, desde o encontro dos dois no parque
de Tompkins Square, em 1967, até a morte do artista e fotógrafo, 20
anos depois, de Aids.
A
leitura conjurou fantasmas de meu passado: como Smith e Mapplethorpe,
fui jovem no fim dos anos 60 -e um tempo em Nova York. Vestindo jeans
pata-de-elefante e uma jaqueta militar surrada, errei do Brooklyn ao
Lower East Side de Manhattan, frequentei o parque de diversões de Coney
Island e os inferninhos da rua 42 ao redor de Times Square.
Talvez
Smith amenize um pouco os fatos, para proteger a imagem de
Mapplethorpe, ou talvez minhas extravagâncias passadas pareçam maiores
do que foram (sempre idealizamos nossa rebeldia). Seja como for, lendo o
livro, achei que minha turma era, no mínimo, tão louca quanto
Mapplethorpe e Smith.
Não
penso na promiscuidade sexual ou nas "experimentações" com tóxicos
ilícitos. A verdadeira loucura de todos estava na intransigência da
liberdade. Smith, numa época em que a fome era violenta, para não
desistir (e voltar para a casa dos pais), repetia o mantra "Eu sou
livre, eu sou livre".
Essa
liberdade corajosamente defendida não se confundia com a preguiça de
uma vida à toa. Smith e Mapplethorpe queriam se afirmar como artistas,
únicos, diferentes.
Se
não se confundiam com os demais, não era por eles não serem devorados
por um sonho de sucesso. Ao contrário, suas ambições eram tamanhas que
eles estavam dispostos a lhes sacrificar todo conforto e segurança.
Nisto eram diferentes: não havia preocupação com conforto e segurança
que pudesse induzi-los a moderar a liberdade de seus sonhos.
Todos
nós fumávamos como se o tabaco fosse um vegetal em extinção (será mesmo
que não sabíamos que era nocivo?). Transávamos sem camisinha e ao
deus-dará (tudo bem, não havia Aids, mas havia gonorreia, sífilis,
chatos e maníacos sanguinários). Dirigíamos com o pé na tábua (não havia
limites de velocidade, mas sabíamos como tinham morrido James Dean e
Albert Camus). Cuidado, não havia nada de suicida nessas atitudes: ao
contrário, viver nos importava muito -sobreviver, muito pouco.
Em
Nova York, mexi em pertences e documentos de meu filho -claro, a pedido
dele. Aprendi assim que, nos anos em que morou em Nova York, apesar de
minha oposição furiosa, ele tinha uma motocicleta. Passei da irritação
ao riso: justamente em 1967, em Ibiza, num estado mental nada indicado
para pilotar, eu aluguei uma moto e abracei uma árvore a 60 por hora
-sem capacete.
Imediatamente,
de Nova York, postei no meu Twitter (@ccalligaris): Sem dúvida, as
proibições podem aumentar nossa segurança. Mas que liberdades seria
correto sacrificar para sermos mais seguros?
Alguns
lembraram uma frase de Benjamin Franklin: os que renunciassem à
liberdade essencial para comprar um pouco de segurança temporária não
mereceriam nem a liberdade nem a segurança.
1)
As liberdades "inessenciais" são apenas aquelas às quais já
renunciamos, covardemente. 2) Há 20 ou 30 anos, estamos no meio de uma
negociata, da qual sairemos com alguma segurança e liberdade nenhuma.
Não vou exemplificar: só faça a lista das atividades que, 30 anos atrás
ou menos, não eram sequer regulamentadas.
Na
luta entre segurança e liberdade, a liberdade está sempre em
desvantagem, pois, assim que começarmos a prezar a segurança, como
correremos algum risco para defender nossa liberdade?
Alguém
observará que os "garotos" sempre vivem como se não houvesse amanhã.
Concordo, mas não acho que seja apenas porque, em tese, eles estão ainda
longe da morte.
Há
uma outra razão. 1) Em geral, a juventude é o tempo durante o qual mais
acreditamos num sentido da vida; 2) o que dá sentido à vida também dá
sentido à morte: sempre vale a pena arriscar a pele por uma ideia ou
esperança que pareça justificar a existência (no caso de Mapplethorpe,
vale a pena sacrificar-se pela arte); 3) inversamente, quando não
acreditamos num sentido, estamos muito preocupados com nossa segurança,
pois este é o paradoxo: QUANTO MENOS sentido a vida tem, TANTO MAIS
valorizamos (mesquinhamente) o simples fato de sobreviver.
Fonte: Blog Contardo Calligaris