Singela homenagem a Jorge Amado, 99,100 por Xico Sá
Pendores exageradamente graciliánicos me fizeram demorar a gostar de Jorge Amado. Que erro. Primeiro porque um não exclui o outro. Segundo porque eram os melhores amigos.
Assim na literatura como na militância comunista.
Mas como hoje em dia eu aprecio este homem.
Como
escrevia fácil e sem frescura literária o marido de dona Zélia. Como
sabia contar uma história com cheiro de dendê e coentro.
Há
também um cheiro de cominho a cada página. Que me desculpe aí seu
Proustizinho, mas a escrita de Jorge é a mais cheirosa do universo.
Dá
vontade de agarrar a nega na cozinha, quando o tempero da comida sobe,
saborear-te, como no trocadilho que domina a culinária de Dona Flor,
aquela peste capaz de endoidar o cabeçote de qualquer sujeito.
Como era gostosa no papel, mesmo antes de ser Sônia Braga nas telas.
E
como é delícia agarrar uma mulher que a gente ama por trás na cozinha o
tempero subindo nos ares. Dá aquela encoxada, experimentar o caldinho
que amolece o peixe, tomar uma cachaça e dizer pro horizonte, de modo
que o pescador escute, "que vidinha mais ou menos me deste, Deus".
Como o camarada Jorge botou, como nenhum um outro escritor brasileiro, sexo na nossa prosa.
Como
brincou também de entretenimento, coisa que muito falta na nossa
escrita, segundo reclamou um dia, cheio da razão, o sábio crítico e
poeta José Paulo Paes.
É,
meu velho e bom Jorge, nunca esquecerei teu olho molhado de amor
olhando pra Zélia, quando me recebeste para uma entrevista na tua casa,
finalzinho dos ditos anos 80. Piscou pra mim e disse: "Se for amor,
assenta a poeira e demora".
Só agora eu entendo disso. Acho.
Como escrevi hoje para o Correio da tua Bahia, Jorge, só existem dois tipos de homens, amigo, os Vadinhos e os Teodoros.
Ou se é um ou se é o outro.
O
primeiro não presta, mas derrete o coração das mulheres com a sua
canalhice; o segundo é um cabra direito, virtuoso, o objeto de desejo de
uma fêmea quando está sofrendo, no dia-a-dia do lar, com um macho
desmantelado.
Os
dois se completam. Os Vadinhos jogam, bebem e são raparigueiros,
piolhos de cabarés, só voltam para casa quando fecha a última barraca do
mercado do Peixe, o único mercado à prova de crash.
Os Teodoros não deixam faltar nada em casa, homens corretos, responsáveis, cumpridores dos seus deveres.
Como
de besta não tinha nada, Dona Flor, por força da quentura do corpo e de
alguma espiritualidade, conseguiu o milagre de viver com os dois
maridos ao mesmo tempo, o safado e o virtuoso. Ô morena gulosa.
Mas fez por merecer em vida o banquete, a moqueca de macho fervida no óleo da testosterona.
Fora dos livros e do cinema, pode ser que o esquema não funcione a contento, mas Jorge Amado realizou o desejo secreto das mulheres, aquela vontade guardada lá no fundo do pote do juízo.
Grande Jorge, o homem que inventou a ideia de Brasil para os estrangeiros e também para os nativos que o desconhecem. Grande.
Hoje
é dia de Jorge, dia de tomar uma com o mulato Porciúncula, aquele dos
olhos sempre em brasa de tanta cachaça. Dia de imitar o Quincas Berro
D´Água. Dia de lembrar a Gabriela, a do livro, da novela ou do filme,
trepando no telhado, rumo à cumeeira do gozo imaginado.
Dia da pureza e da safadeza de Jorge.
Hoje começa o ano do centenário de nascimento do marido de dona Zélia.
Que amor lindo e eterno viveram os dois. Uma lição pra esse povo todo que vive se estranhando.
O
menino grapiúna faria agorinha mesmo 99 anos de vida. Faria não, fez,
está vivinho e aceso nas Tietas que vão e voltam, está vivinho na sua
profecia social dos Capitães de Areia, hoje zumbis perdidos na fumaça
azulada do crack.
Jorge
vive no suado bate-coxa das negras de todas as cores que descem e sobem
ladeiras. Ele inventou, entre nós, esse vício bom danado de gostar
tanto das moças. Docemente morrerei disso.