Souza e Valim: Por trás da condenação de Lula está a exclusão de classes sociais
O doutor em sociologia Jessé Souza e o doutor em Direito Rafael Valim publicaram juntos, nesta terça (23), um artigo no UOL sobre as questões políticas, sociais e econômicas que estão por trás do julgamento de Lula por causa do caso triplex, em segunda instância.
No artigo, os dois autores lembram que há julgamentos que ficaram marcados na história porque o Direito foi abandonado excepcionalmente para que se pudesse impor mudanças políticas em algumas sociedades. Eles citam episódios na França e Estados Unidos.
Nessas conjunções, as lutas e os sofrimentos de várias gerações ou de toda uma sociedade atingem o seu clímax e o que é julgado não é um homem ou uma mulher específica, mas a própria sociedade como um todo.”
“O julgamento de Lula no dia 24”, dizem, “é um desses instantes históricos em que uma sociedade inteira diz quem ela é. Se o processo judicial contra Lula, como nos dois casos históricos elencados acima, é, segundo os mais respeitados juristas nacionais e estrangeiros, eivado de nulidades e contradições, além de faltar qualquer prova contra o acusado, o que está, na verdade, em julgamento neste processo?”, provocam.
Na sequência, Souza e Valim respondem: “O que está sendo julgado aqui é o recente processo de incorporação, ainda que muito incipiente e parcial, das classes sociais secularmente excluídas no nosso país, que é precisamente o que a figura de Lula representa. A corrupção é tão pouco o objeto deste processo quanto foi a causa da ida dos setores conservadores da classe média às ruas entre 2013 e 2016.”
E acrescentam:
“Que sociedade queremos? Que tipo de gente nós somos? Uma que abandona a maior parte de sua população à pobreza e à miséria sem qualquer chance de vida digna, ou uma que finalmente irá aprender a superar a fronteira da convivência entre gente e sub-gente que herdou da escravidão. Assim como nos casos dos processos históricos mencionados acima, esse é o aprendizado histórico que se materializa nessa luta aparentemente jurídica.”
Opinião: O julgamento de nossa história
Há ocasiões em que os destinos de indivíduos condensam processos coletivos e seculares de aprendizado histórico em um evento singular. Os julgamentos de certos processos judiciais possibilitam – talvez como nenhuma outra circunstância – esse encontro fortuito entre destinos individuais e coletivos em um amálgama que revela as entranhas da história de uma sociedade inteira. Nessas conjunções, as lutas e os sofrimentos de várias gerações ou de toda uma sociedade atingem o seu clímax e o que é julgado não é um homem ou uma mulher específica, mas a própria sociedade como um todo.
Foi assim, por exemplo, no famoso caso Dreyfus na França do final do século 19 e foi assim no julgamento de Sacco e Vanzetti nos EUA do primeiro pós-guerra. Em ambos os casos o Direito foi colonizado e tornado secundário por motivos políticos. Afinal, o que estava em jogo, na verdade, eram lutas sociais e políticas que de muito ultrapassavam o objeto jurídico processual.
Se no caso Dreyfus a querela tinha a ver com o antissemitismo da sociedade francesa, no caso de Sacco e Vanzetti o que estava em jogo era a oposição e o racismo das elites e das classes médias anglo-saxãs contra as novas hordas de imigrantes latinos, entre eles os italianos.
Na verdade, o que está em julgamento é a sociedade como um todo nesses casos, ou seja, o seu patamar de aprendizado moral e político. O julgamento de um indivíduo é apenas a forma e a expressão fortuita e contingente em que se condensa e se expressa o desenvolvimento ou o atraso do aprendizado moral da sociedade em questão.
O julgamento de Lula no dia 24 de janeiro de 2018 é um desses instantes históricos em que uma sociedade inteira diz quem ela é. Se o processo judicial contra Lula, como nos dois casos históricos elencados acima, é, segundo os mais respeitados juristas nacionais e estrangeiros, eivado de nulidades e contradições, além de faltar qualquer prova contra o acusado, o que está, na verdade, em julgamento neste processo?
O que está sendo julgado aqui é o recente processo de incorporação, ainda que muito incipiente e parcial, das classes sociais secularmente excluídas no nosso país, que é precisamente o que a figura de Lula representa. A corrupção é tão pouco o objeto deste processo quanto foi a causa da ida dos setores conservadores da classe média às ruas entre 2013 e 2016.
Afinal, se tivesse sido o real motivo, a corrupção dos outros partidos, hoje filmada e comprovada com detalhes sórdidos de práticas de assassinato como procedimento normal, deveria ter despertado milhões e milhões de indignados. Ninguém saiu às ruas. Prova irrefutável de que a corrupção é mero pretexto para estigmatizar líderes das classes populares.
A causa dos protestos foi, na realidade, a pequena ascensão dessas classes e os medos e ressentimentos que isso provocou nas frações conservadoras da classe média. Basta lembrar os “rolezinhos”, aeroportos cheios e, last but not not least, a entrada de pobres nas universidades e, portanto, de indesejáveis competidores no mercado de trabalho.
Entre nós, desde 1930 o pretexto já quase secular da corrupção dos tolos – aquela só da política e nunca do mercado financeiro e de seus donos, os verdadeiros corruptores – tem a função de tornar invisível esse desejo de preservar a distância social entre as classes. Esse é também o verdadeiro núcleo do julgamento de Porto Alegre.
Que sociedade queremos? Que tipo de gente nós somos? Uma que abandona a maior parte de sua população à pobreza e à miséria sem qualquer chance de vida digna, ou uma que finalmente irá aprender a superar a fronteira da convivência entre gente e sub-gente que herdou da escravidão. Assim como nos casos dos processos históricos mencionados acima, esse é o aprendizado histórico que se materializa nessa luta aparentemente jurídica.
Lula é o primeiro grande líder político a incorporar a esperança de vida digna e de representação política sempre negada à maioria de excluídos e humilhados. A decisão confiada aos juízes do TRF4 é sobre este objeto, não sejamos ingênuos. Esperemos que os juízes estejam à altura da história. Aliás, como nos ensina a História, se perpetrada a injustiça, a cobrança por justiça virá mais cedo ou mais tarde.
*Jessé Souza, 57, é doutor em sociologia pela Universidade de Heildelberg (Alemanha) e professor da UFABC; Rafael Valim, 35, é doutor em direito pela PUC-SP e professor da faculdade de Direito da PUC-SP.
Artigo publicado em https://eleicoes.uol.com.br/2018/noticias/2018/01/23/opiniao-o-julgamento-de-nossa-historia.htm