Aldeia Nagô
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Toque de recolher, medo e indignação por Lazaro Ramos

4 - 6 minutos de leituraModo Leitura

Cheguei aqui em Salvador há quatro dias. Vim para filmar Ó Paí Ó, que agora está
tendo um desdobramento, virando série para ser exibida na TV. Só no domingo
consegui ir visitar uma parte da minha família que mora na Federação. Ao chegar
lá, às 19 horas, percebi que a rua estava vazia. Imaginei ser o vazio normal e
soturno dos fins de domingo, que nos prepara para começar a semana. Ao chegar em
casa, alguns dos meus parentes e vizinhos estavam lá, assistindo televisão.
Começaram a me contar as novidades. Lá para as tantas perguntei por que eles
estavam em casa e fui surpreendido como que por um soco, com a informação de que
era por causa do "toque de recolher".


Não entendi. Não consegui crer que,
nas ruas onde eu fui criado e podia brincar, até pelo menos 23 horas com
tranqüilidade, as pessoas não tenham mais o direito de pôr o rosto na janela de
suas casas a uma hora daquelas. Não consigo crer que vários assassinatos de
policiais, traficantes e inocentes estejam se tornando uma constante.

Conflito armado! Aqui, eu abro parênteses para dizer que, mesmo morando no
Rio, ouvi falar de alguns casos de violência ocorridos nesta região de Salvador.
As histórias me mobilizaram e entristeceram, mas pensei que eram casos isolados
como os que acontecem esporadicamente em todas as grandes capitais.
Infelizmente, ouvi a frase que mais me amedrontava: "Isto aqui está parecendo
alguns lugares do Rio".

Moro no Rio de Janeiro há oito anos. Gosto muito,
sou bem tratado. Reconheço todas as suas qualidades, geográficas, de
oportunidades, de luta das pessoas para resolver os problemas que a história
carioca gerou.
Mas, nunca me acostumei com a idéia de que, em algumas
localidades, havia toque de recolher, e a idéia de que o tráfico de drogas e
conflitos armados causavam tantos danos a várias vidas, estejam elas envolvidas
ou não com o crime.

Recentemente, fiz uma novela que, da maneira que o autor
pôde ou quis, discutia a vida numa comunidade. De forma não explícita,
percebíamos códigos que uma comunidade como aquela criava para sobreviver.
A
equipe técnica do programa que dirijo e apresento (E spelho, Canal Brasil) é
toda composta por ex-alunos formados pela Central Única das Favelas (Cufa) –
organização que busca dar uma outra alternativa para os jovens dessas
comunidades, seja profissionalmente, seja no campo do referencial. No primeiro
momento, incorporei esses jovens ao programa como uma atitude política. Depois,
isso virou uma necessidade profissional: são competentes e agarraram a
oportunidade com unhas e dentes. Ou seja, o tema não está longe da minha vida.

Mas não há como chegar e ver o Garcia, a Federação, o Calabar e tantos
outros bairros passando por essa situação, e não ter um sentimento como o que
estou tendo agora.
Então, como primeiro passo, escrevo.

Escrevo para
falar com meus conterrâneos. Escrevo para falar aos envolvidos nessa situação;
sejam aqueles que estão envolvidos no tráfico e matam seu irmão; sejam os
policiais que estão enfrentando essa situação, que é uma bomba-relógio; sejam os
que perderam seus entes queridos. E, principalmente, para falar às autoridades e
a todo aquele que não sabe o que está acontecendo, ou aquele que, como eu, sabe
dessas situações e, de alguma maneira, está protegido com a falsa distância.
Falsa, porque essa situação está muito próxima de nós, por mais que não
percebamos tudo isso mais claramente.

Agora me vêm a mente várias perguntas:
o que eu posso fazer? O que eu vou fazer? No que se transforma o personagem que
estou fazendo no Ó Paí Ó? Qual o sentido da arte? Como o Estado vai intervir
nisso? O que nós faremos para acabar com esse absurdo? Por que o morador da
mesma cidade, uma cidade cheia de questões para serem resolvidas, mata o outro
desse jeito? Qual a alternativa que vamos dar às nossas crianças e adolescentes?
Pergunto, também, o que as autoridades farão para conter essa situação? Esta
pequena reflexão é um desabafo, esperançoso de que nosso esforço coletivo e
emergencial vá mudar esse quadro.
Tenho esperança. Na conversa com a minha
família e vizinhos, o tom em que eles falavam ainda não continha o conforto e a
acomodação. Eu vi desconforto, medo e, principalmente, inadequação à realidade
como esta.
Não merecemos isso.

Ainda tenho esperança de ver, nesta mesma
rua que passei minha infância, outras crianças brincando – e tendo outra
alternativa que não o medo e a ilusão de que o seu futuro não pode ser melhor. O
Futuro pode ser melhor, sim! P.S.: ao sair da casa da minha família, uma viatura
passou por mim em alta velocidade, os policiais com armas em punho.

Bem no
lugar onde antes eu me escondia para não ser encontrado, pois estava brincando
com meus amigos…

Por Lázaro Ramos, ator.

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