Você busca perfeição ou excelência? por Kau Mascarenhas
Contam que à beira-mar um jovem perguntou ao seu mestre zen
qual o sentido da linha do horizonte. O velhinho respondeu que ela só existe
para lembrar que a perfeição é uma ilusão, palidamente imaginável mas
verdadeiramente impossível e, assim sendo, estimula em cada ser humano sua
capacidade de ser humilde.
O escritor uruguaio
Eduardo Galeano alicerça esse pensamento, propondo uma analogia entre o
horizonte e a utopia, e fala de uma outra utilidade: "A utopia está lá no
horizonte. Eu me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez
passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isto: para que eu não deixe de
caminhar".
De
fato, a
perfeição é uma utopia útil ao nosso processo contínuo de evolução.
É
profundamente inspirador saber que sempre haverá algo novo a aprender, uma
dimensão maior de felicidade a alcançar, um patamar de crescimento superior a
atingir.
A orientação de Jesus "sede perfeitos como o Pai é perfeito" pode
ser compreendida como um chamado, um incentivo. Entretanto será profundamente
equivocada a atitude daquele que se arvorar a alcançar perfeição absoluta,
considerando essas palavras como um comando factível de ser obtido numa única
encarnação.
O perfeccionismo de acordo com diversos pensadores, sejam eles
pertencentes às escolas psicológicas ou mestres de estradas espirituais, produz
mais dores que benefícios.
Listo aqui algumas características do
perfeccionista clássico:
– Intolerância com aqueles que não alcançam os
padrões previamente definidos como perfeitos;
– Ansiedade crônica e grande
stress por conta da auto-crítica excessivamente severa;
– Desânimo, e falta
de motivação para arriscar e tomar iniciativa, por conta do medo de não acertar
("prefiro não fazer do que arriscar fazer de forma imperfeita");
–
Estabelecimento de posturas internas auto-punitivas, formas de pensamento
torturantes que chegam a se concretizar em doenças no corpo físico.
Quando se
trata de aspectos relacionados ao âmbito moral, esse processo se mostra ainda
mais sério levando o perfeccionista a sofrer demasiadamente como se não fosse
digno de uma vida feliz e de obter sucesso.
Muitas vezes o perfeccionista
sofre de um grande complexo de superioridade e atribui aos seus critérios o
status de divinos, ou seja, ele se considera capaz de dizer o que é bom ou ruim,
certo ou errado, perfeito ou imperfeito. Pode ser que, paradoxalmente, mesmo se
mostrando em atitude humilde, carregue em si uma forte vaidade que não lhe
permite a possibilidade de errar. Não admite a mais simples idéia de ser
admoestado ou criticado e, assim sendo, prefere não fazer algo uma vez que
exista algum risco, mesmo remoto, de não atender aos padrões vigentes ou
previamente por ele estipulados.
O mais curioso é que alguns perfeccionistas
passam um bom tempo sem errar pelo fato de não agir, já que temem a imperfeição.
Assim eles não erram, mas nunca aprendem. Normalmente são seres em cujas vidas
se notam muitas omissões, e poucas realizações.
Há, entretanto, muitas
pessoas empreendedoras que se dizem perfeccionistas.
Ouso afirmar que na
verdade não o são.
São meticulosos, atentos à qualidade, enérgicos na busca
de sucesso, e muito comprometidos com seus propósitos. Mas não os chamo de
perfeccionistas.
Tenho um outro nome para essas pessoas que atingem grande
sucesso em diversos âmbitos e que estimulam o crescimento de quem as cerca com
seus grandes feitos.
São os "buscadores da excelência".
Um buscador da
excelência sabe que perfeição é algo absolutamente relativo, por isso prefere
definir alguns padrões que podem representar sucesso em seus papéis de pai ou
mãe, filho, cidadão, profissional, companheiro, cristão e amigo, e segue esses
padrões.
Ele está igualmente convicto de que esses padrões podem mudar, já
que sobre todos nós age uma lei inexorável que é a Lei da Evolução.
Aquilo
que é um bem hoje poderá se constituir num mal amanhã.
Assim sendo, os
padrões de excelência são mutáveis. Eles também evoluem.
O perfeccionista
quer manter em mente a idéia de uma regra absoluta para as formas de conduzir
sua vida.
O buscador da excelência, no entanto, está aberto a mudar de idéia
e tem todo o direito de agir de acordo com cada contexto em que esteja
inserido.
O perfeccionista pode se utilizar de inúmeras máscaras por conta da
imagem rígida que criou para si mesmo.
Não quer ser visto pelos outros de uma
forma "menor", e assim joga em sua sombra uma série de falhas, equívocos e
incongruências. Características que ele não aceita em si precisam ser
escondidas.
O buscador da excelência, por sua vez, reconhece a sua humanidade
e está disposto a aprender com seus erros e, se fica evidente algum deles,
procura reorganizar-se, tirar daí a melhor lição, corrigir o que for possível e
não repetir a falha. Sem auto-punição, sem crises de consciência, sem dores
injustificáveis.
Em meu trabalho costumo sugerir que as pessoas saiam do
arrependimento vazio e partam para um trabalho mental que se chama "editar a
fita".
Reveja aquele comportamento que você não considera interessante com
olhos amorosos. Perceba que fez aquilo muito mais por ignorância que por
maldade. Perdoe-se sinceramente e em seguida edite a fita, ou seja, reconstrua
na mente a forma mais interessante de agir. Use o poder mental que se assemelha
ao de um possível cineasta que ao mesmo tempo fosse
autor-roteirista-diretor-cinegrafista-ator. Reconstrua na mente toda a cena de
maneira melhor, tomando as atitudes mais interessantes, e arquive dentro da
mente essa nova "ocorrência". Numa situação futura semelhante àquela seu cérebro
terá um arquivo a mais, bastante positivo, para tomar como referência.
Quem
pode dizer o que é a perfeição? Aquilo que para mim é perfeito, para você pode
nem ao menos ser aceitável.
E se imaginarmos a diversidade cultural que engloba os seres
humanos no que diz respeito ao entendimento do que é moral, bom, valioso e ético
nos diversos países, a complexidade dessa questão se torna ainda
maior.
Perfeição, portanto, é uma realidade
inatingível para nós que somos humanos. A dimensão da perfeição pertence ao
divino. Excelência, no entanto, é uma busca feliz de nossa natureza
humana.
Existe uma figura lendária chamada
"famaliá". Trata-se de um pequeno demônio que se for preso numa garrafa atende a
todos os pedidos do seu dono, tornando realidade qualquer um dos seus
desejos.
No entanto, algumas correntes de
estudo dessa lenda dizem que o famaliá na verdade detesta a perfeição e, por
conta disso, o seu possuidor deve dar um jeito de fazer algum pequeno defeito
existir em cada desejo concretizado. Por exemplo, se ele pede uma casa
maravilhosa ao seu diabinho, que dê um jeito de criar uma pequena rachadura em
alguma vidraça, ou uma sujeirinha no tapete ou, quem sabe, desfie um pedacinho
da cortina. Dessa forma o famaliá não será agredido pela perfeição. Caso
contrário ele pode se irritar e destruir tudo.
A mitologia grega também aponta o aparecimento de castigos
severos àqueles que se dispõem a desafiar os deuses querendo trazer para o mundo
uma perfeição que é encontrada apenas entre os habitantes do
Olimpo.
Psiquê, por exemplo, sofreu terríveis
agruras com os desafios e torturas impostos por Afrodite, somente por ser uma
mortal detentora de uma beleza perfeita. Assim, despertou ciúmes e gerou mágoa
na deusa.
Algumas pessoas adoram exaltar sua
família perfeita, sua casa perfeita, seu cônjuge perfeito, sua saúde perfeita.
Exaltam seu estilo de vida, suas posses e a excelsitude de tudo o que possuem e
dos que as cercam. É como se vivessem num conto de fadas eterno no qual não pode
haver qualquer ponto negativo. Quem sabe estão cegas às pequenas ou grandes
imperfeições que se caracterizam como absolutamente normais em se tratando da
vida humana.
Se é desagradável ouvir alguém
falar demasiadamente que tudo é perfeito em sua existência, imagine o quanto
igualmente é cansativo escutar o extremo oposto. Também não é nem um pouco
sadio. É muito difícil estar ao lado de alguém que vive acreditando que nada
presta em seu mundo. Coitado de quem se aproxime de uma pessoa dessas e faça um
inocente cumprimento perguntando "como vai você?". Terá que suportar uma
avalanche de queixumes nos quais o outro exporá todas as suas
mazelas.
Portanto, evoco a importância de se
perceber que somos todos humanos e que é natural existirem aspectos não muito
angelicais em nossa realidade de seres em processo evolutivo, e de que em nossas
vidas podem estar situações que merecem receber energia
transformadora.
Mesmo imperfeitos e vivendo
num mundo imperfeito, que sejamos felizes e capazes de mudar para melhor,
percebendo que já possuímos dentro de nós e ao nosso redor tudo de que
precisamos para uma vida plena e feliz.
E as
coisas só podem ser resolvidas se tivermos a ousadia de encará-las, ao invés de
escondê-las sob o tapete.
Parece-me inclusive
que quanto mais ficamos ansiosos em parecer perfeitos, mais os erros se
sucedem.
E muitas vezes aquilo que parece
imperfeito é justamente o que vai mais encher nossa vida de valor pelo
inusitado, pelo surpreendente, pelo criativo.
Na arte humana podemos perceber isso, bem como na própria
natureza.
Uma obra de Picasso que mostra um
rosto deformado propõe corajosamente uma beleza diferente, antes de tudo pela
própria atitude do artista rompendo regras e padrões clássicos
pré-definidos.
Uma pérola barroca se destaca
por não ser lisa nem absolutamente redonda como as suas irmãs.
Sim, o horizonte existe e está lá, a nos inspirar. E sabendo
que é inatingível, podemos nos colocar em atitude respeitosa no que tange ao
ritmo da nossa jornada evolutiva.
É importante
continuarmos sempre aprendendo, mudando e crescendo, ao mesmo tempo em que nos
tornamos flexíveis para perceber que a idéia absoluta de perfeição não
existe.
O valor que você tem está, antes de
tudo, no fato de você ser como você é.