Zumbi, Gardel e Ban Ki-Moon por Sérgio São Bernardo
O Tango conhecido na voz romântica e triste de Carlos Gardel, ao expressar uma das facetas do povo argentino e do mundo europeu, tem recebido substanciais pesquisas que atestam as influências da musicalidade afro-americana em sua formação.
O reconhecimento
de que as danças e as canções africanas nas Américas moldaram aquilo que
denominou-se de Tango é um dado irrecusável. O Tango é negro! Esta é mais uma
justiça histórica a favor das civilizações que formaram o mundo como o
conhecemos.
A dança corporal
que comunica entrelaçamentos e desejos, é a dança da aproximação, do toque e do
convívio. A música e a poesia navegam melancolicamente na dança da sedução
e do compartilhamento. È isso que significava o Tango para os africanos na
América. No baile dos negros dançava-se Milonga como se fosse Tango, como nos
diz Roberto Selles no livro "A história do Tango – La Milonga. Muito se
festejava na Bacia do Plata enquanto morriam caudalosamente no barco ou no
galpão, na guerra ou de doença, como ainda se morrem negros que dançam…
Este não é um debate
pacífico, entretanto, a influência das manifestações culturais africanas, desde
o Candombe (Batuque dos negros do Rio do Prata), o Tangano (origem Banto da
palavra quilombo), até a Milonga e a Habanera (danças e músicas negras e
caribenhas praticada no Rio do Plata), permeadas por suas corruptelas,
hibridismos e recomposições plasmaram o Tango moderno. Levado para Europa no
início do século XX foi adaptado a novas formas e instrumentos. Sofreu
influências da musicalidade européia – Polca, Mazurca e o Tango Andaluz, e
aqui nas Américas a musicalidade brasileira na Bacia do Plata, o toque do
tambor e das tanguerias converteram-se na dança esquemática e
erudita da alma portenha. Sua origem etimológica está na corruptela da palavra
Tambor (que também é uma corruptela de shangó) e era o lugar onde os negros
cultuavam os Candombes e a Milonga.
Já Oscar Natale, em seu
livro "Buenos Aires, Negros y Tango" menciona que, desde as sociedades de
negros mutualistas, perseguidas pelo Estado Argentino, entusiasmado pelas
doutrinas raciológicas já se defendia abertamente o atavismo e a inferioridade
dos hermanos do Plata, isso foi visto, por exemplo, na ação do governo de
Martín Rodríguez em 1821 quando propôs a regulamentação dos bailes de Tambor,
impedidndo sua proliferação.
Todas as
sociedades são sociedades multiculturais e o nosso desafio é assegurar meios,
os mais criativos e emancipatórios, de se viver e ter uma vida digna nos
lembrando de onde viemos e o que queremos. Como Zumbi nunca morre e nunca deixa
de lutar por seus ideais de liberdade e justiça, inspiremo-nos no Tango que
compartilha laços após cotidianos dissabores. Se nada aprendemos com o
Tango nas últimas dezenas de anos e não soubemos dançar o
compartilhamento numa região onde milhões foram massacrados, dancemos o
Tango, com Zumbi, Gardel e Ban Ki-Moon no Ano Internacional da Afrodescendência
no mais inebrioso dos perfumes de uma vida plural e justa!
Sérgio São Bernardo, Advogado, Mestre em Direito Público-UNB e Professor da Uneb.