Apocalypsis Carnavalis por Zuggi Almeida
A festa começou na quarta-feira sinalizando que os dias seguintes seriam de muita euforia e êxtase. Bandinhas de músicos de sopro e percussão faziam o revival levando os saudosistas aos mais distantes
recantos do passado da festa de Momo. No ar, pairava um aroma de espetinho de carne assada e cerveja. Muita cerveja, e logo o odor do mijo estaria incorporado à atmosfera da folia. E assim, raiou o segundo dia da esbórnia.
Chegaram os garis e deu-se início a coleta das sobras da festa. Os trabalhadores estranharam o imenso volume de latinhas de alumínio espalhadas ao longo do circúito. Poderia ser um indício do aumento no consumo das bebidas -e, aquela festa foi programada pra ser a maior dos últimos tempos. No recolhimento da manhã da sexta-feira a quantidade acumulada de vasilhames era o dobro do dia anterior. Isso difilcultoua execução dos serviços. Boa parte das latas não recolhidas foram deixadas em áreas improvisadas.
Aí, deu-se a conclusão do obvio: o imenso exército de anônimos catadores de latinhas não se fez presente nos dias anteriores. Nenhum dos representantes da tropa foi encontrado em meio a algazarra garimpando latas entre os pés dos foliões indiferentes.
O problema chegou ao conhecimento das autoridades, a imprensa despertou preocupada com o destino da festa e a empresa de recolhimento de lixo admitiu não conseguir coletar o absurdo de latinhas abandonadas nos circúitos do carnaval.As latinhas estavam nas ruas, praças, vielas, portarias, corredores e após um temporal obstruíram as canaletas e bueiros. Os alagamentos vieram em seguida e o sábado e o domingo foram de trabalho duro para empresa de águas e esgotos.Pessoas ficaram ilhadas nos camarotes, os trios elétricos retidos num engarrafamento monstruoso, ambulâncias e viaturas policias soavam freneticamente imobilizadas em meio ao caos.
O prefeito ocupou as redes de tvs anunciando que estava empenhado em resolver a situação.Apelou para o sentimento solidário que emana no carnaval baiano, da importância da limpeza, do valoroso trabalho realizado pelos catadores de latinhas e o equlíbrio ecológico e haja blá,blá,blá.
A festa desandou, os camarotes ficaram inacessíveis – e qual vip colocaria suas sandálias de grife no meio daquele lamaçal fétido? Os caminhões de apoio dos blocos tornaram-se inúteis, e pela primeira vez ninguém brincou na segunda-feira do carnaval.
Terça-feira do carnaval.Cinco horas da manhã.Eles surgiram aos montes, milhares. Vindos de das mais diversas direções.Homens, mulheres e crianças esqueléticas e maltrapilhas portando sacos de plástico preto nas mãos e ágeis como répteis deram início a uma frenética caça aos vasilhames de alumínio.
Logo, o alagamento foi saneado, os caminhões movidos lentamente, os carros pipas iniciaram a lavagem das ruas e o prefeito anunciou que aquela festa ficaria marcada nos registros dos anais da cidade. Rápidos como surgiram, os catadores foram embora levando nas costas os sacos pretos recheados de esperança.
Não ficou uma latinha siquer no circúito pra contar a história.
– Zuggi Almeida é baiano, escritor e roteirista