Aldeia Nagô
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Eu mereço ser amada. Por Lívia Natália

9 - 12 minutos de leituraModo Leitura
Livia_Natalia

A experiência do desamor é uma queixa comum entre mulheres negras. A cultura racista e sexista não nos criou como seres dignos de dedicação amorosa e nós, muitas vezes, não conseguimos nos compreender como sujeitos dignos de amor.

A palavra amor parece apontar para uma imaterialidade, uma interpretação. Mas nós, pelo contrário, sentimos o peso da sua materialidade cotidianamente, nós diuturnamente imaginamos que não merecemos ser amadas. A experiência do amor romântico nos foi roubada pelo processo de escravização, quando era impossível constituir ligações afetivo-familiares ou a vivência do romance, no entanto, percebemos os seus efeitos ainda hoje, nos aprisionando num lugar extemporâneo: enquanto muitas mulheres brancas querem a emancipação absoluta, inclusive do envolvimento amoroso, nós ainda precisamos do exercício do afeto, nós não aprendemos a amar.

O nó górdio da questão passa pelo gesto de auto-amor. Ouvimos todo o tempo nos dizerem que precisamos nos amar, nos valorizar, então, compramos potes de cremes e banhamos cabelo, pele, nos enfeitamos e maquiamos um sujeito completamente estilhaçado por dentro. Nós, por dentro, estamos como um campo sobrevivente a uma bomba atômica. Estamos dilaceradas. E isto, infelizmente, nos constituiu como seres humanos, estruturando a nossa subjetividade.

Nosso corpo, que jamais foi pensado como possível destino de afeto amoroso, foi sistematicamente vilipendiado durante a escravização e, depois, nos tornamos, ora sonho de consumo do macho branco, ora inimiga da mulher branca e, outras vezes, prêmio de consolação para o homem negro, quando não as três coisas ao mesmo tempo. O mundo da branquitude e do sexismo nos resumiu a uma genitália: nela se entra para alcançar o prazer, dela saem crianças para o mundo. E nós, sempre secundarizadas pela vagina, que, com o tempo, tornou-se tão alheia a nós que quase se converteu numa inimiga. Afinal, era graças a ela que éramos tratadas como cidadãs de segunda classe.

Ângela Davis, em Mulher, raça e classe, nos explica como se organiza esta equação: se fomos sempre corpos de uso, somos nós as últimas a ter direito de uso sobre nossos próprios corpos. O feminismo não nos abrigou, as mulheres negras eram, justamente, as inimigas das brancas, pessoas que precisavam ter seu desvalor continuamente afirmado por elas, inclusive pela sistemática exclusão das pautas destas mulheres dos interesses pelos quais lutava o movimento feminista, podíamos figurar para dar corpo ao movimento, mas continuávamos sendo as ladras de seus maridos.

O lugar de vítima nos foi, ora negado, ora impingido. Às mulheres brancas era impossível compreender que a hierarquia de raças enfraqueceria o movimento, aos homens brancos era essencial – inclusive no processo de conquista de direito ao voto – garantir que o sexismo se exercesse, tolerando o voto dos homens negros, mas não das mulheres. E prosseguimos sendo continuamente rechaçadas.

Mulher negra e afetividade

Quando penso na minha formação enquanto mulher negra, compreendo que ela se deu muito tarde. A despertença do corpo se dá de maneira muito eficiente. Nossos cabelos nunca são bons o suficiente, nossa beleza não pode soar excessiva – e, até hoje, luto contra o ímpeto de rebolar ou empinar as nádegas enquanto ando –, quando nossa vida sexual começa, ela costuma vir cedo demais, e nasce, muito comumente, de um afeto unilateral: nós amamos aqueles homens, que não nos amam. Em casa, na escola, na adolescência e na vida adulta, nós amamos como quem buscasse fugir, a todo custo, da casa vazia e do dedo sem aliança e os homens nos amam “do seu jeito”.

Peço desculpas pelo centramento na heteronormatividade das relações aqui pensadas, mas só me é dado, neste ínterim, falar deste lugar. As relações afetivas entre homens e mulheres negras sempre se dá num desnível afetivo, porque os homens negros não aprenderam a expressar afeto. Nós, que vivenciamos o sistemático recalque do afeto dentro das famílias, que aprendemos com nossas mães a sermos ferozes para proteger nosso casamento das outras negras aventureiras e das brancas que buscavam novidade sexual, nós, ensinadas pelas mulheres da nossa família a cuidar do nosso homem e, ao mesmo tempo, a evitar depender financeiramente deles, nós, com o tempo, fomos aprendendo a amar, mas da maneira errada.

Conheço mulheres negras, extremamente empoderadas, bem sucedidas e belíssimas que se expõem a relacionamento abusivos. Eu mesma fui uma delas. E o que mais nos machuca, é que, primeiramente, muitas vezes não percebemos que estamos sendo violadas por uma relação abusiva, e, depois, nós aprendemos a encontrar, à força, em nós mesmas, a justificativa para o abuso, seja ele qual for.

Conheço mulheres que fazem a sua vida orbitar em torno de um “ele”, deixando-se construir, diuturnamente, pelos humores da relação. Todas nós vivemos ou viveremos uma relação estruturada nesta desproporção afetiva. Chamo assim o desnível de afeto e envolvimento entre homens e mulheres. Cabe a nós alimentar a relação, como os alimentamos de comida e sexo. Cuidamos dos nossos parceiros e os maternamos exercendo sobre eles o lugar feminino que, muitas vezes, é o único, na visão masculina, digno de dedicação amorosa.

Nós eventualmente tentamos substituir as mães, na esperança de aumentar as possibilidades de amor. E ele, na maioria das vezes, não vem.

Desproporção afetiva

A desproporção afetiva também pode emanar de outros modelos de relação: se ganhamos mais, se somos altivas, bravas, intensas o homem negro não nos quer porque a possibilidade da preponderância sobre o feminino está perdida. Se nós não somos protegíveis, muitos homens entendem que não há espaço para eles na relação. Quando não, alguns se encostam confortavelmente no lugar (sob nossos proventos) aproveitando-se da histórica dificuldade financeira dos homens negros, e passam a ser, afetiva e financeiramente, dependente de nós, enquanto passeiam pela vida brincando com a autoestima de outras mulheres negras.

Os homens negros com a desculpa de que não puderam construir laços afetivos, uma vez que não os aprenderam, não receberam o exemplo, muitas vezes aproveitam-se desta situação não para se repensar, mas para justificar as infidelidades e sucessivos abandonos de suas mulheres e filhos. Nós os amamos, eles nos amam do jeito deles, e esta equação não pode dar certo.

Nós amamos da maneira errada porque os espelhos não nos abrigam, eles nos machucam. Amamos da maneira errada porque superficializamos nosso auto-amor, centrando-o na beleza física e desprezamos a mulher que vive por detrás daquela imagem. bell hooks, em Vivendo de amor, debruça-se sobre o tema do envolvimento amoroso, demonstrando que, infelizmente, nos falta um afeto que nos proteja de relações doentias e opressoras.

Não há mais chance de esperarmos que os nossos homens nos amem, principalmente se nós não somos capazes de fazê-lo. Aqui tomo o cuidado para não nos vitimizar, nem nos colocar no lugar de algozes de nós mesmas, mas sei que nós aprendemos a temer a solidão. Antes só do que mal-acompanhada, muitas vezes sai da boca de uma mulher que dorme sozinha, com uma cama recheada de travesseiros. Ninguém quer, deliberadamente, ser sozinho. Se o somos, é porque nossos homens não ‘deram conta’ de nós. Se o somos, é porque a relação degringolou em traições ou descuidos que geraram uma solidão terrivelmente acompanhada. O feminismo negro nos ampara, trazendo estas angústias para um conjunto, para a sensação de que não estamos atravessando sozinhas esta mata fechada que é o afeto, e, uma vez feministas, as nossas relações com os homens médios está fadada ao fracasso. Chimamanda Adiche afirma em Sejamos Todos Feministas que ela está com raiva, e a raiva nos é necessária ante tantas opressões sistemáticas.

A raiva é pedagógica, ela é potência! Mas, na maioria das vezes, estamos tão feridas que perdemos a força da nossa raiva enquanto mobilizadora de outras formas de relação: sobra uma fera raivosa e ferida. A raiva, boa parte das vezes, nasce de um corpo alquebrado, sim, porque a depressão gerada pela falência amorosa ecoa no nosso corpo também. Parte do que compreendo como auto-amor passa por lamber nossas feridas e seguir. Alimentar a raiva como potência de vida, e não de morte, ela é combustível, não cotidiano. Muitos nos feriram, muitos vão nos ferir, mas cuidar de nossa raiva, gerenciá-la, apontá-la para o inimigo certo nos poupa muito sofrimento.

Quando terminei a primeira versão deste texto, que recebeu a leitura de mais de cem pessoas, ainda insistiam em mim, duas questões. A primeira delas dizia respeito a minha escolha do verbo merecer. A segunda, sobre qual o papel dos homens negros no gesto amoroso. Começarei por esta.

A mulher negra, o homem negro: gestos de amor

Certa vez, conversando com um homem negro, afirmei que eles não sabiam amar as mulheres negras. Ele me indagou então, como eles deviam fazer isso. A minha resposta sobre como os nossos homens podem nos amar aparece aqui mais desenvolvida, e serve como resposta também a este homem.

Infelizmente, não tenho receita (estaria rica se a detivesse), mas tenho intuições, sentimentos e impressões. Antes de tudo, nos respeite. Respeite a complexidade da relação, tenha-a como relevante, essencial no seu cotidiano. Não podemos ser essenciais apenas para encontros fortuitos. Faça com que o afeto seja recíproco, cuidadoso, mas não opressor. Deseje o nosso corpo, precisamos disso, mas o acolha tudo que o acompanha, as demandas boas e as ruins.

Não nos oprima. Não seja abusivo. Reconheça em nós uma companheira, não uma companhia. Eu sei, isso tudo é uma dança cheia de movimentos complicados.

Se quisermos, em algum momento, falar de filhos, fale conosco sobre isso. E seja honesto. Machuca muito mais ouvir o que precisamos e não ter o que queremos do que a escuta de uma negativa sincera. Preocupe-se, junto conosco, com a contracepção, se for o caso. Deixar por nossa conta algo que deve ser pensado pelos dois é demais.

Sustente-se financeiramente e afetivamente (ou seja, não caia na armadilha óbvia do machismo, compreendendo a traição como afirmação da masculinidade). Use a intuição. Penteie os cabelos de nossas filhas, eduque nossos filhos, partilhando a responsabilidade amplamente, não como se fosse uma “ajuda”.

Não grite. Não nos diminua. Não nos abandone.

Sim, é demais, mas nós, mulheres negras, estamos condicionadas a sempre dar mais do que podemos, e isto está ficando pesado.

Auto-amor: algumas pistas

Nós merecemos ser amadas, sim. Mas o amor que qualquer parceiro pode nos dar, passa pela compreensão de que ainda nos amamos pouco e, infelizmente, estamos ainda longe de resolver isso. Não fomos formadas para nos amar apenas porque as mulheres e homens de nossas famílias não sabiam ou não podiam fazê-lo. Alimentar, sustentar financeiramente, dar abrigo físico são os meios de demonstração de afeto que nossos familiares tinham para nós. Infelizmente, dizer que ama não é algo natural entre famílias negras, certamente por que não se ouviu isto, certamente porque nossos pais precisaram nos criar para sermos fortes, para resistir.

O amor cura. Precisamos compreender que nossas lágrimas precisam ter lugar, nossas angústias, sejam elas quais forem, precisam ser ouvidas por nós mesmas, calar a dor é sofrer duas vezes. E a nossa alegria? Nosso sorriso, nosso contentamento, a dança que nosso corpo rotundo faz quando andamos, precisamos reconhecer nisso tudo partes do que somos.

Enquanto treinamos o afeto amoroso por nós mesmas, precisamos também fazer circular esta experiência. Somos muitas mulheres negras. Pela lógica, somos a maioria, e passamos pela vida muitas vezes sozinhas. Precisamos buscar construir a sororidade. Sair do eixo de rivalidade entre mulheres – construído também pela lógica sexista de poder – ela não pode ser a nossa prática cotidiana. A outra mulher negra não pode ser a nossa inimiga, precisamos irmanar nossas histórias.

Amar cura.

Penso que precisamos aprender a amar, amando a nós mesmas e às outras mulheres negras. Reconhecendo a irmandade que nos une, as questões pelas quais todas nós atravessamos. Valorizar-se e sentir-se digna de amor é um percurso trabalhoso para quem aceita a travessia. Não é fácil. Passa por relativizar o peso das relações afetivas, amando os homens do nosso jeito mas com reservas afetivas que nos protejam. Passa por entender a mulher que se olha no espelho, de findar com as angústias que cercam nossa autoestima. Vivenciar nossos cabelos, nossos narizes, nossas ancas largas como um percurso longo, às vezes difícil, mas absolutamente nosso.

A travessia de nós a nós mesmas, nós, ora sozinhas, ora juntas, é que precisamos fazer.

Eu mereço ser amada. Nós todas merecemos. E tudo começa nos amando em nossos defeitos, na raiz de nossos cabelos, nas nossas dúvidas e medos. Toda caminhada começa sondando o terreno, mas ninguém anda sem tropeçar: sejamos tolerantes com nossas fraquezas, julguemos menos os nossos atos, atribuamo-nos menos defeitos aprendamos a recomeçar.

O primeiro amor falhou, o segundo não deu, o terceiro quem sabe? Mas, antes de tudo, eu mereço ser amada por mim mesma.

*Com o meu agradecimento a Cidinha da Silva, Dayse Sacramento, Urânia Muzanzu e outrxs leitores que se dispuseram a ler a primeira versão deste texto.

** Prof.ª Dr.ª Lívia Natália é Chefe do Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras, Adjunta do Setor de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia.

Artigo publicado originalmente em https://favelapotente.wordpress.com/2016/04/11/eu-mereco-ser-amada/

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